Capítulo I - O Monastério
"Quem come a minha carne e
bebe o meu sangue permanece em mim
e eu nele."
— João 6:56
19 de dezembro de 1808
Toledo, Espanha
O corpo do homem pesava sobre os estreitos ombros de Luna. Era um enfermo esquelético, porém, por estar desfalecido, a inconsciência o fazia pesar mais do que a jovem noviça conseguia suportar. No entanto não havia escolha. Precisava tirá-lo dali.
Luna andava curvada, amparando a parte superior do tronco do enfermo, enquanto desviava das pedras e madeiras que caíam ao seu redor. As explosões feriam seus ouvidos, mas não pareciam acordar o homem. Ela olhou, de relance, para trás. A enfermaria, que havia deixado há menos de cinco minutos, já não existia. Apenas destroços e escombros ocupavam o caminho de volta. A única certeza era que precisava seguir em frente.
Já era a segunda vez naquele ano que as tropas de Napoleão invadiam a cidade. No entanto, Luna nunca imaginara que a guerra pela independência da Espanha poderia trazer tamanha destruição ao mosteiro. O fogo se instalava por toda parte, enquanto ela tentava desesperadamente salvar o homem em seus braços.
De repente, o peso sobre seus ombros se tornou mais leve. Encostada contra o seu pescoço, a cabeça do homem começava a se mover. Seus pés começavam a tocar o chão por conta própria e não mais a se arrastarem obedientes aos movimentos impostos por Luna.
— Senhor! Acorde, senhor! Os franceses chegaram ao monastério. Precisamos fugir!
Ele tossiu, deixando um pouco de sangue manchar o hábito branco de Luna.
— Onde...? — Sua frase foi interrompida por uma explosão que os empurrou para frente, fazendo Luna perder o equilíbrio. O homem tentou segurá-la, mas foi inútil. Ambos caíram no chão, catapultados um sobre o outro.
A noviça rapidamente se pôs de pé, tirando seu corpo de cima do dele.
— Vamos! Precisamos chegar às catacumbas, senhor. Levante-se!
Ele fez um muxoxo.
— Eu estou atrapalhando, o melhor é deixar-me. Salve-se, senhorita.
Luna olhou para o homem. Mesmo depois de tanto tempo dedicando cuidados a ele naquela enfermaria, era como se, naquele momento, o enxergasse pela primeira vez. Por trás das elevadas maçãs do rosto raquítico, havia um jovem. Devia ser tão jovem quanto ela, cerca de dezesseis anos. Seus olhos estavam cansados e seu rosto angular dava ares de fragilidade, no entanto, suas palavras tinham força. Queria que ela seguisse sem ele.
Apesar de ser noviça há quase um ano naquele monastério, Luna não havia escolhido por opção própria uma vida religiosa. Contudo, ser boa não dependia disso. Independentemente do que ele dizia, jamais o abandonaria. Jamais abandonaria alguém.
— Desculpe a franqueza, senhor, no entanto, devo ressaltar que, no tempo que estamos perdendo com a sua melancolia, já estaríamos a salvo.
Ele pareceu chocado com o comentário, mas assentiu. Forçou o corpo a se erguer e se apoiou novamente em Luna. Os pedaços de madeira e rocha continuavam a cair em torno das duas figuras, que seguiam sem olhar para trás.
— Não!
Luna nunca fora uma pessoa derrotista, contudo a visão do acesso às catacumbas coberto por pedras a fez titubear. Entre os escombros, a mão de alguém que havia sido atingido estava decepada ao lado de um braço soterrado.
O enfermo tentou proteger os olhos da jovem para que não visse a cena. Luna tirou sua mão da frente, de forma abrupta, e focou no que importava.
— Precisamos entrar.
— Como, senhorita?
Ela se virou para ele como se subitamente despertasse.
— O altar!
Apoiou novamente o braço do rapaz sobre seus ombros e partiu para o interior da igreja sem esperar por uma validação do homem.
O percurso até a igreja foi a visão mais assustadora que Luna já havia experienciado. As balas de canhão já tinham passado por ali, transformando o frio caminho em um verdadeiro inferno na Terra. Corpos mutilados, cabeças sem dono e rostos familiares sem vida ornavam sua triste marcha, matando toda e qualquer esperança que ainda alimentava.
O corpo do homem que segurava roçava contra o seu, sujando ainda mais seu hábito. Todos à sua volta estavam mortos. Porém, não aquele homem. Apesar desses pensamentos que tentavam tomar conta, ela percebeu que, enquanto ele vivesse, sua esperança também viveria.
Chegaram ao altar. Luna sentou o doente em um longo banco de madeira que ainda resistia intacto.
— O que a senhorita fará?
Ela ignorou a pergunta. Por mais rebelde que fosse aos olhos de seu pai, sempre fora extremamente educada e, em uma situação normal, jamais teria deixado uma pessoa sem resposta. Entretanto, a polidez teria que esperar.
A jovem segurou a beirada do pesado altar de ouro e recuou o pé esquerdo para ganhar estabilidade. Jogou seu corpo para frente, usando toda a sua força para tentar mover o móvel, contudo, sem sucesso.
Ela percebeu que suas roupas a limitavam. Jogou os sapatos para o lado sem cerimônias e aproveitou uma parte despedaçada da barra do seu hábito para aumentar o rasgo e ganhar amplitude no seu movimento. Sua perna esquerda ficou completamente aparente, revelando as suas roupas de baixo, mas Luna não se importou. O tempo para pudores, assim como o para polidez, havia acabado.
Levou sua perna esquerda mais para trás, conseguindo a liberdade de movimento que tanto buscava. Seus pés no chão frio de pedra criavam uma tração maior, trazendo estabilidade. O enfermo estava sentado fora do seu campo de visão. O que estaria pensando daquela mulher exposta e descalça profanando um altar católico era um mistério.
Os esforços serviram seu propósito. Luna conseguiu mover o altar, arranhando o chão com o ouro do pé da mesa. Depois de mais alguns impulsos de seu corpo, misturando força e jeito, ela conseguiu finalmente expor o alçapão.
— Venha rápido, senhor. — disse correndo para ajudar o doente a se levantar.
Eles desceram a escada que se revelara embaixo da portinhola no chão. Estava escuro, mas isso não impediu Luna de fechar a escotilha. No breu, tateou em busca de um cadeado que sabia que estaria por perto. Encontrou o pequeno objeto e o usou na tranca da porta.
Voltou-se para trás procurando o jovem enfermo. Sua mão encontrou o peito do homem. Luna exalou um ar de alívio.
— Aí está, senhor. Com a graça de Deus!
Num ímpeto que não pôde controlar, abraçou-o. O rapaz devolveu o gesto.
— A senhora... Não me abandonou. — cochichou no seu ouvido.
Luna imediatamente se afastou, separando seus corpos.
— Precisamos de luz. Sei que deixam uma lamparina com velas em algum lugar por aqui.
Assim que a luz se fez, Luna observou melhor o ambiente. O túnel perto da escada dava para o caminho que encontrara soterrado antes de se dirigir à igreja. Do outro lado da pequena câmara onde estava, podia ver a estreita entrada das catacumbas. As pedras frias que os cercavam estavam empoeiradas pelos mais de mil anos sem visitas. Aquele local havia sido criado para esconder os corpos cristãos de grupos pagãos, mas com o avanço do cristianismo, tornara-se obsoleto. Agora as catacumbas só eram usadas para os castigos das noviças. E para isso não havia necessidade de limpar nada.
— O senhor consegue andar?
O jovem tentou responder, porém foi interrompido por uma tosse intensa. Aparou os lábios com a manga da sua camisola bufante branca, que ficou repleta de respingos de sangue.
— Tenho que conseguir, senhorita.
Luna assentiu.
— Eu o ajudo.
Ela levantou o braço com os pingos de sangue e o passou por cima de seus ombros, tornando-se, mais uma vez, a muleta do enfermo, e começou a andar lentamente. Tentava focar no homem que precisava salvar e não nos barulhos distantes das explosões que, infelizmente, persistiam.
— Senhorita, desculpe-me, porém não sei seu nome. Adoraria saber o nome... — Ele tossiu entre as palavras. — O nome da minha salvadora.
— Luna. Luna Ortiz, senhor. — respondeu.
— Luna... — repetiu o enfermo. — É um nome encantador, Doña Luna. A senhorita me trouxe luz quando me resgatou daquela enfermaria fétida e agora é meu farol nesta catacumba escura. Um farol assim como a Lua é todas as noites em que aparece no céu. Nome acertado. Escolhido por Deus, tenho certeza.
Ela não pôde deixar de sorrir. Fazia um ano que estava no monastério de San Juan de los Reyes, contra a sua vontade. Sentia-se perdida e desesperançosa. Ser chamada de farol dava a entender que sabia a direção a seguir. E isso não foi verdade ontem e não seria verdade hoje.
— E o seu nome, senhor? Adoraria saber o nome do meu iluminado.
— Santiago Vázquez, ao seu dispor, Doña Luna.
Santiago, pensou Luna. Nome santo.
O corredor ficou mais apertado, impedindo que os dois seguissem um do lado do outro. Luna o ajudou a se apoiar nas paredes e ficou atrás, seguindo seus passos de perto.
As paredes. O local de túmulos milenares. Túmulos que ela tinha que tocar para poder sair com vida da invasão francesa.
— Ouça, Doña Luna. — ele disse, parando de caminhar.
Luna forçou os ouvidos.
— Não ouço nada.
— Exatamente, senhorita. As explosões pararam.
— Deus seja louvado!
— Amém, senhorita. Amém.
— Ainda precisamos sair daqui. — disse Luna, retomando seus passos e gentilmente tocando o ombro de Santiago para que fizesse o mesmo. — Não temos como voltar para trás, pois os soldados da tropa de Napoleão devem estar buscando sobreviventes neste momento. Precisamos seguir em frente.
— A senhorita sabe onde esse caminho vai nos levar?
— Mais um quilômetro e encontraremos a cripta da Santa Missa, onde uma escada de pedra leva a um alçapão para a superfície. Sairemos atrás da hacienda Gonzales e, se Deus permitir, longe das tropas francesas.
— Doña Luna parece conhecer muito bem esse lugar. Já esteve aqui antes?
— Para a nossa sorte, eu não sou a noviça que os Franciscanos da Observância esperavam que eu fosse. Fui castigada algumas vezes, obrigada a ajoelhar em milho enquanto rezava nessas catacumbas. E eles têm o hábito de se esquecerem de mim aqui embaixo, o que me permite explorar.
— Para a nossa sorte, certamente.
Foi como Luna dissera. A cripta, repleta de imagens santas em vitrais castigados pelo tempo, era ampla e gélida. No canto direito, a escada de pedra trazia a esperança de salvação que eles tanto desejavam.
Ela sentou Santiago no primeiro degrau e subiu os outros cinco para tentar abrir a porta dupla do alçapão. Curvou-se embaixo da porta e usou a força de suas pernas para tentar fazê-la se abrir. Uma resistência de fora deixou claro que a passagem estava trancada.
— Senhor Deus misericordioso! — murmurou Luna. Santiago se virou para ela, entendendo que precisava de ajuda.
— O que passa, Doña Luna?
— A culpa é minha. — disse, sem perceber a intromissão de Santiago em seus pensamentos.
— Doña Luna?
Ela se virou para ele, sentando-se no degrau mais alto.
— Eu fiz isso. Padre Gómez deve ter ficado cansado das minhas escapulidas e resolveu acabar com a minha chance de fuga. A porta está trancada por fora. Estamos presos aqui.
Santiago não respondeu, apenas a observou.
— O senhor não vai dizer nada?
— A senhorita é admirável, Doña Luna.
— Admirável? Eu estou lhe dizendo que nos sentenciei à morte por prisão perpétua e o senhor me diz que sou admirável?
Ele deu de ombros com um sorriso no rosto.
Luna riu em resposta. Ela segurou a saia rasgada e desceu até o degrau de Santiago, sentando-se ao seu lado.
— Perdoe-me, senhor Vázquez. Não fui um farol muito bom, não é?
— A senhorita salvou a minha vida. Isso, com certeza, lhe dá o direito de me chamar de Santiago.
— Santiago. — repetiu. — Só Luna para mim então.
— Luna... Eu a chamarei assim. Afinal, é um nome muito lindo para ter qualquer outra coisa no seu caminho.
— O senhor é bondoso demais. — Luna parou para fitar a porta trancada que zombava da sua esperança. — Estou com medo.
Ela se virou na direção de sua própria mão. Santiago a segurava gentilmente, mas de maneira firme. Olhava fixamente para o seu rosto.
— Eu também, Luna. Medo e gratidão são os dois sentimentos que gerem minha alma. — A tosse veio intensa, fazendo com que Santiago tivesse que soltar a mão de Luna.
Assim que terminou a crise, ela buscou a mão dele e a segurou novamente.
— Enquanto nós dois estivermos vivos, ainda há uma chance.
— Luna... — A tosse tornou a interrompê-lo. — Não sei por quanto tempo consigo continuar vivo.
— Você não pode me deixar aqui sozinha, Santiago.
— Não estou ajudando muito. Mas você vai ficar bem, tenho certeza. Você é boa, Luna. Pessoas assim merecem ficar bem.
As cavidades fundas dos olhos daquele homem corroboravam o que dizia. Não havia muito tempo para ele. O fim estava próximo e não tinha nada que ela pudesse fazer para impedir.
Ela levou uma de suas mãos ao rosto dele e o acariciou suavemente. Era um gesto íntimo demais, algo que Luna nunca havia feito antes, mas a fuga os aproximara de uma maneira inesperada. De uma hora para outra, ele havia se tornado a única pessoa que ela tinha no mundo.
Santiago virou a face para se apoiar no toque de Luna, demonstrando que o gesto dela era bem-vindo. Ela queria acalmá-lo, dizer que se curaria e que os dois sairiam daquela situação impensável. Aquele jovem não merecia essa dor. Ele também era bom. No entanto, ela sabia que a vida dele não estava nas suas mãos.
— Não quero que você morra. — disse, tentando controlar as lágrimas sem sucesso.
Santiago deixou o pranto acontecer.
— Eu também não. Não hoje. Não depois de conhecer você.
Ele aproximou o rosto, apoiando sua testa na de Luna. Por mais que a proximidade lhe trouxesse um pouco de medo, ela não se afastou. Continuou a carícia em Santiago, continuou a segurar sua mão.
Se aquele era o fim, que fosse nos seus termos: regido pelo seu coração.
No entanto, o barulho do alçapão abrindo revelou que não era o fim. Aquele era o começo de uma nova luta. Uma luta contra os dois soldados franceses que a fraca luz da noite revelava do outro lado.
***
— Arrête-la!¹ — gritou o soldado que prendia o rosto de Santiago contra as pedras da escada e imobilizava seus braços. Luna queria impedir, mas o outro homem a agarrou por trás, impossibilitando seus movimentos.
Ela se remexia querendo se libertar o mais rápido possível. Sabia muito bem o fim que a esperava. Santiago seria morto em breve e, depois, os dois homens a jogariam contra o chão e a fariam desejar a morte. A pior dor de uma mulher. Ela seria invadida. Seria destruída por dentro e por fora. E, quando não achasse que poderia enfrentar mais dor, seria cruelmente assassinada aos pés do altar da cripta, sob os olhares atentos dos santos nos vitrais.
O soldado que segurava Santiago tirou uma adaga da sua bota e puxou os cabelos do rapaz, virando brutalmente o frágil corpo com a clara intenção cortar sua garganta.
Luna continuou sua luta. Precisava parar o homem que o ameaçava. A única coisa a que tinha acesso era o francês que a segurava. Ela aproveitou que ele a apertava fortemente pelos braços para levantar as duas pernas e empurrar o altar à sua frente, impulsionando os dois sobre Santiago e o outro soldado. O homem que segurava a adaga levou um susto com os corpos que iam em sua direção e, por instinto, levantou os braços, deixando a adaga atravessar a nuca do seu companheiro.
Ele empurrou para longe os dois corpos que o soterravam. Luna caiu no chão e se desvencilhou do soldado que estava morrendo.
— Idiot! Qu'est-ce que t'as fait?² — esbravejou o homem, olhando o amigo engasgar-se no próprio sangue.
Ele caminhou na direção de Luna, contudo ela correu para o soldado agonizante e pegou a adaga que ainda o sufocava.
O que estava de pé não parecia ter medo. A raiva pela perda do amigo deu lugar a uma estranha alegria. Ele ria da imagem daquela mulher com o hábito branco rasgado empunhando uma adaga e tentando proteger um enfermo que já estava mais morto do que vivo. Os olhos de Santiago estavam fechados. Talvez já estivesse morto, mas ela não podia desistir. Não agora.
— Tu penses que tu peux me tuer? Toi? Une femme?³
Ele investiu contra Luna, fazendo com que os dois tombassem sobre o corpo desfalecido de Santiago. Segurou a adaga com as duas mãos em torno das de Luna, tentando levá-la a ferir o próprio rosto. Ele era forte. O peso do seu corpo contra o de Luna fazia ela ficar sem ar. Não tinha de onde mais tirar forças. Todavia, se ela não estava ficando mais forte, teria que fazer com que ele ficasse mais fraco. Ela colocou seu joelho entre as pernas do soldado e dobrou a perna com força; ele gritou com a dor aguda, perdendo sua atenção por um segundo. Foi o suficiente para que ela ganhasse a disputa pela adaga e enfiasse o objeto dentro da boca aberta do soldado, que rugia de dor.
O sangue jorrou, caindo sobre o rosto de Luna, que imediatamente empurrou o corpo do francês para o lado, deixando-o para a própria morte. Ela continuou deitada sobre o peito de Santiago. Lágrimas vieram aos seus olhos. Ela estava viva e imaculada. Tinha vencido. Sua felicidade ficou completa ao sentir a respiração de Santiago debaixo dela. Levantou-se correndo e se virou para ajudá-lo. Mas aquele homem não precisava de ajuda.
A mudança acontecia diante de seus olhos. Santiago tentava limpar o sangue do soldado que tinha caído sobre a sua boca enquanto se levantava. Queria entender como poderia estar se sentindo assim. Seu corpo ganhava massa, ganhava altura. Parecia sadio, sem as olheiras fundas e as maçãs do rosto protuberantes que Luna observara durante tantas noites na enfermaria. Ele estava se curando.
De seu corpo, assim como do de Luna, ainda pingava o sangue do morto, no entanto ela não se deixou intimidar pela cena grotesca. Algo muito mais importante acontecia. Ela caminhou na direção de Santiago sem quebrar o contato visual. Chegou tão perto que conseguia sentir o calor da expiração contra a sua face. Ele estava tão mais alto! Contudo, sua cabeça se voltava para baixo, observando com espanto a jovem noviça, sem entender o que estava acontecendo.
Luna levantou a mão na direção do rosto dele, acariciando o sangue e as maçãs do rosto que agora compunham uma fisionomia tão diferente. Apesar de ainda parecer muito jovem, Santiago tinha contornos de homem. Músculos surgiram onde antes havia apenas pele. Luna desceu as mãos devagar, assim como o seu olhar. Tocou-lhe os ombros, seus braços, seu peito. Ela mantinha o cenho franzido enquanto explorava cada centímetro dele. Ao contrário de São Tomé, ver não era o suficiente para crer. Ela precisava tocá-lo.
— Luna...
A voz de Santiago também saiu diferente. Mais grave, mais intensa. Aquele homem era a coisa mais hipnotizante que Luna já havia visto. Seu nome naqueles lábios chamou de volta a sua atenção para o rosto dele. Os olhos de Santiago continuavam fixos nela. A intensidade deles era demais para suportar. Parecia que ele conseguia vê-la por inteiro, através de suas roupas e de sua pele. Ela engoliu em seco com o peso daquele olhar.
— Eu não entendo... Como? — questionou a jovem.
— Eu também não entendo, Luna.
Aquele som. Ela sabia que era seu nome sendo dito novamente por ele, mas, cada vez que saía da boca de Santiago, parecia que era uma palavra nova que ela nunca tinha ouvido antes.
— É um milagre! Deus nos deu um milagre em meio a esse caos e essa destruição, Santiago. Você está curado! Está... está... lindo.
Estavam ensanguentados, sujos, cansados e com corpos mortos ao seu redor, porém, não viam nada disso. A mão de Luna continuava no peito de Santiago, sentindo o seu coração. Aquele coração, que há pouco quase havia parado de bater, agora estava em um ritmo acelerado e sufocante.
Ele ajeitou uma mecha do cabelo de Luna que estava caída, colocando os fios juntos atrás da orelha da jovem. O toque suave fez com que ela fechasse os olhos e inspirasse fundo. Algo correu pelo seu corpo queimando e surpreendendo-a. Era ele. Ele fazia isso.
Santiago não tirou a sua mão dali. Desceu seus dedos, passando pelo pescoço de Luna e tocando-a de um jeito que ela nunca havia experienciado antes. Havia ousadia no movimento, que ampliava o ardor que ela sentia naquele instante, deixando um rastro de brasas por debaixo de sua pele.
Quando seu toque chegou ao peito, espelhando a posição em que a mão de Luna estava, Santiago parou. Ficaram os dois assim, sentindo o ritmo frenético das batidas internas que os despia de qualquer segredo. Ambos sabiam o que queriam, sabiam o que precisavam.
— Luna. — Ela abriu os olhos, tomando a voz de Santiago como um comando. Ele estava mais próximo, despertando seus sentidos. O peito dele parecia que fazia parte da sua mão; a respiração, rápida e ritmada, era uma brisa intensa contra a pele de Luna e atordoava seus ouvidos; a visão dela mostrava apenas ele e, então, apenas a sua boca.
Os lábios se tocaram antes que qualquer um dos dois pudesse parar o que estava acontecendo. As mãos permaneceram onde estavam, sentindo como aquele contato os atormentava e os deliciava por dentro. Logo, Luna as levou para a nuca de Santiago, puxando-o mais ainda para perto de seu corpo. Ele retribui abraçando sua cintura, enquanto suas tímidas línguas abriam espaço entre os lábios, buscando desesperadamente uma à outra.
Suor. Sangue. Santiago. Os sabores eram diversos e todos, inebriantes. Luna não sabia o que estava acontecendo, só sabia que não queria parar.
Continuaram trancados naquele beijo durante um tempo que pareceu uma eternidade, mas que também não parecia ter durado o suficiente.
Santiago apoiou sua testa na de Luna e ficou assim, parado naquele abraço. Eles tentavam recuperar o fôlego e acalmar seus corações, embora sem sucesso.
— Eu... — Luna colocou o dedo contra os lábios de Santiago antes que ele pudesse completar o que falaria.
— Nada do que você possa dizer será melhor do que ficar assim. Não se afaste, Santiago. Eu te imploro. Não se afaste de mim. — Sua súplica era a coisa mais verdadeira que poderia expressar.
— Eu não sonharia com isso, Luna. Acho... — Ele engoliu com dificuldade, parecia temer o impacto de suas palavras ou de seu sentimento. — Acho que não tenho como me manter longe de você. Nunca mais.
Santiago levou uma de suas mãos até o rosto de Luna. Suavemente, com o polegar traçava os contornos dos seus lábios, enquanto a jovem noviça tentava controlar a sua respiração.
Os dias no monastério eram sempre iguais: frios e vazios. As poucas felicidades que Luna tinha eram encontradas em seus raros momentos de liberdade, como correr pelo pasto da hacienda Gonzales ou aproveitar a acústica da igreja para cantar. Nada disso era visto como algo bom pelo Padre Gómez. A cada segundo de liberdade, vinha sempre uma punição em resposta, sendo a grande maioria exercida dentro daquelas catacumbas. A sensação de poder encontrar a felicidade ali, naquele abraço, naquele beijo, a dominava e a libertava ao mesmo tempo. E era isso que significava estar nos braços de Santiago: felicidade.
No entanto, como toda a alegria que ela buscava com tanto afinco nos seus dias de penitência naquele lugar, aquele momento não poderia durar para sempre. Luna abriu os olhos e percebeu de soslaio os corpos dos soldados mortos. Na mesma hora, tornou-se cruelmente consciente do sangue que cobria o seu corpo e o do homem à sua frente. A cena linda e perfeita que criara no seu imaginário estava manchada pelo terror da guerra.
Santiago observou seus olhos se movimentando na direção dos cadáveres e percebeu o que a afligia.
— Venha, Luna. — Ele segurou uma de suas mãos. — Temos que sair daqui antes que mais soldados apareçam em busca dos amigos.
Luna assentiu. Era estranho estar sendo carregada por Santiago. Até aquele momento, ela havia sido a sua guia. No entanto, ele demonstrava que também queria cuidar dela e ela permitiu.
Subiram as escadas de pedra e se depararam com a escuridão da hacienda. Santiago apressou o passo, quase correndo com Luna ao seu lado. O frio cortante de dezembro os atingia. Na segurança das catacumbas, e até mesmo entre os escombros do monastério, estavam protegidos dos elementos, mas agora haviam ficado expostos. Ele tinha apenas uma camisola de doente envolvendo seu corpo, enquanto as vestes de noviça de Luna estavam rasgadas, deixando as baixas temperaturas invadirem o seu íntimo com facilidade.
Santiago passou o braço em seu entorno, tentando protegê-la mais uma vez. Por mais que estar perto dele lhe oferecesse um calor interno, não estava conseguindo minar o frio de suas extremidades, principalmente de seus pés descalços que estavam em contato com a grama gelada. Mesmo assim, novamente, ela permitiu. Muito havia sido tomado de Santiago; quase morrera uma morte assustadoramente horrível depois de tanto tempo doente. Agora, podia finalmente resgatar a sua vida, tomar as rédeas que há tanto tempo tivera que soltar devido à sua enfermidade. Ela o deixaria guiar para que ele se familiarizasse com aquele sentimento — o de ser livre.
— Ali!
Santiago apontou para um varal com peças de roupa perto do riacho que atravessava a hacienda. Luna correu para lá rezando para que estivessem secas, e estavam. Ele pegou alguns itens e saiu do campo de visão da jovem. O tempo foi o suficiente para que uma estranha solidão se apossasse de Luna. Ela sabia o que ele estava fazendo, sabia onde estava e que não ia demorar, mas, mesmo assim, a sensação não passava.
O retorno do rapaz trouxe um alívio intenso. Ele havia lavado o sangue e as marcas de cinzas no riacho, vestia uma camisa branca coberta por um sobretudo preto e calças da mesma cor que o sobretudo. Os pés estavam cobertos por galochas escuras. Aquele homem era mais lindo do que ela se lembrava.
— Achei esse par de botas perto do celeiro e encontrei outro para você. Devem ficar largos, entretanto o frio não vai alcançá-la.
Luna reparou, pela primeira vez, nos calçados que ele carregava. Seus pés frios urgiam por acalento, então ela rapidamente se calçou e foi até o riacho tentar se limpar também. A água estava quase congelada. Rasgou um pedaço pequeno da sua saia e usou como pano; não conseguiria entrar em contato direto com a água naquela temperatura. Ela se perguntou como Santiago teria feito esse mesmo processo e por um segundo se permitiu pensar nele sem suas vestes, acariciando-se com aquele líquido gelado. Ele estava com o olhar alerta e intenso — o olhar de quem não quer fugir de sensações fortes.
Ela vestiu, por cima do seu hábito, a saia pesada que havia encontrado no varal e se cobriu com um xale espesso. Quando olhou para trás de si, Santiago a aguardava com um sorriso nos lábios e a mão esticada. Ela devolveu o sorriso e correu em sua direção, entrelaçando a mão com a dele.
Juntos, eles seguiram pela escuridão. Precisavam deixar aquele sombrio dia para trás. No entanto, o mistério do amanhã trazia mais aflição do que esperança.
_____________________________________________
[1] Tradução: Pegue a garota!
[2] Tradução: Idiota! O que você fez?
[3] Tradução: Você acha que pode me matar? Você? Uma mulher?
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