Capítulo 14
Passamos a noite inteira em claro, conversando.
Depois da declaração inesperada de Seth, o clima ficou um pouco estranho, então ele deu um tempo ao fugir para o banheiro para tomar banho. Quando finalmente retornamos para o quarto, já estávamos num clima mais ameno, e se manteve assim.
Eu não quero olhar para a situação e fingir que não aconteceu. Seria muito simples ignorar tudo isso em prol de preservar também a nossa amizade do jeito que estava, mas seria errado simplesmente ignorar o sentimento que ele fez questão de expressar. Suspirei. Responsabilidade afetiva é foda.
Seth me arrastou escada abaixo para que a gente pudesse tomar café da manhã. Quando chegamos à cozinha, ele paralisou. Observei o homem alto e de aspecto simples parado em frente ao fogão, fritando alguma coisa. Olhei para Seth e arqueei uma sobrancelha.
- É meu pai – murmurou, e eu confirmei. Embora eu já frequente a casa de Seth há algum tempo, é a primeira vez que eu vejo algum de seus pais. Aparentemente eles viajam muito à trabalho, então Seth está sozinho basicamente o tempo todo.
Antes que eu pudesse falar ou fazer alguma coisa, o homem olhou para trás, finalmente nos notando parados ali.
Seus olhos se arregalaram um pouquinho pela surpresa, mas ele não demorou a sorrir.
- Bom dia, filho – me olhou, especulativo. Senti um bolo se formar em minha garganta de tão sem graça que eu fiquei com o olhar intenso que ele me direcionava.
- Erm... Bom dia, pai. Eu não sabia que você voltaria para casa hoje – Seth falou, meio desesperado, me olhando de canto de olho. – Essa é a Samanta. É minha amiga da escola, e faz parte do time feminino de vôlei – me apresentou. O homem se aproximou de mim, me estendendo a mão enquanto sorria de forma cúmplice.
- Bom dia, Samanta. Meu nome é John, muito prazer – apertei sua mão em um cumprimento rápido. – Pode me chamar só de John mesmo – sorriu.
- Bom dia, Senhor John – falei, me sentindo desconfortável com a intimidade imposta. – O prazer é meu.
- Eu estou preparando o café da manhã. Vocês querem comer comigo?
Seth concordou e se sentou, me puxando para sentar ao lado oposto do lado que seu pai sentaria. Pensei em falar alguma coisa, mas ele me lançou um olhar me alertando. Dei de ombros.
- Vocês estão juntos há quanto tempo? – o pai de Seth falou do nada e se virou para a gente, colocando uns pãezinhos e várias outras coisas na nossa frente. Seth soltou minha mão como se tivesse levado um choque e olhou sem graça para o pai dele. Segurei o riso, embora eu também estivesse quase morrendo por dentro. Pelo menos eu não sou a única que passa vergonha na frente dos pais.
- A gente não está namorando – Seth esclareceu. – Eu falei: é amiga da escola.
John riu e olhou para o filho.
- Você não é de trazer amigos para casa, por isso pensei que estavam namorando – arqueou a sobrancelha, como se quisesse dizer algo a mais, mas preferiu deixar para lá.
- Só ignora – Seth falou baixinho, perto do meu ouvido, para garantir que seu pai não iria escutar.
- Se você quer que ele pare de pensar que a gente está junto, essa não é a melhor atitude a se tomar – murmurei e sorri sarcasticamente quando ele se afastou tão bruscamente de mim que quase caiu da cadeira. Agarrei seu braço por puro reflexo, puxando ele de volta pra perto de mim. Tentei segurar o riso, mas quando ele abaixou a cabeça e colocou a mão em seu rosto eu não aguentei e comecei a rir.
Seu pai observava nossa interação como quem assiste a um filme no cinema.
- Desculpa – Seth falou por fim.
Comemos em silêncio e logo depois fui arrastada de volta para o quarto de Seth.
- Por que todo esse desespero? – perguntei, sentando em sua cama.
Ele suspirou.
- Meu pai é complicado. Eu não sabia que ele voltaria para casa hoje. Até onde eu sei, ele só voltaria para casa mês que vem.
Pensei em pressionar. Não era comum ele agir dessa forma. Como se percebesse meu pensamento, ele se sentou de pernas cruzadas ao meu lado e me virou de frente para si.
- Lembra o que eu falei há algum tempo? Aquele dia, no carro, enquanto a gente voltava pra casa? Que meus pais são zero mente aberta pra qualquer coisa e são quase fanáticos religiosos... – concordei com a cabeça. – Minha surpresa foi tão grande ao ver ele parado ali na cozinha que eu entrei em desespero. Por algum motivo na minha cabeça veio o aviso de que ele olharia para você e veria alguma coisa...
- Alguma coisa? – perguntei, arqueando a sobrancelha.
- Desculpa, eu estou tentando não ser um babaca e não falar merda, então eu vou falar isso com muitas aspas, então não leva pro pessoal, por favor – pediu. – Eu achei que ele olharia para você e veria alguma coisa "de errado" – assenti, entendendo. Devo admitir que eu estava mais casual do que estaria normalmente, justamente por achar que seria desnecessário me preocupar. – Não faz essa cara. Eu falei isso só pra poder explicar.
- O que? – voltei a prestar atenção em Seth e ele parecia meio nervoso por pensar que eu estou brava com ele. – Ah, desculpa. Tá tudo bem. Eu só estava pensando, eu não estou com raiva e nem chateada com você. Eu acho que você já deu provas o suficiente para provar que não pensa mais dessa forma...
Ele sorriu aliviado.
- Você já parou para pensar o que faria se eu tivesse respondido de outra forma ontem? – perguntei. Embora eu não quisesse falar sobre sua declaração, ainda mais agora, tem uma única coisa que está me incomodando no meio de todo esse papo em relação ao pai dele: o fato de, indiretamente, ele dizer que nunca assumiria que eu sou trans para seus pais, por medo de suas reações, ou por vergonha. – Se nós namorássemos, você esconderia dele quem eu sou? – a pergunta pegou ele totalmente desprevenido. Tudo o que ele pôde fazer foi me encarar, calado. – Seu silêncio já é resposta o suficiente – falei, olhando para o outro lado. Tentei não me sentir magoada.
- Na verdade – pigarreou e segurou minhas mãos antes que eu pudesse me levantar. – Eu penso sobre isso todos os dias. Em como eu falaria para eles. Em qual seria a reação dos dois. Eu penso em tudo isso. Mas a minha preocupação não é o que eles vão fazer ou falar pra mim – sorriu tristemente. – Minha preocupação é que você sofra alguma coisa por minha causa. Se um dia você me der uma resposta positiva, eu nunca iria querer ser o cara a causar dor a você...
- Desculpa. Eu presumi algo errado – falei.
Deu de ombros.
- Seria apenas lógico isso te incomodar. Seria péssimo namorar uma pessoa que tem vergonha de você e esconde isso de todos, como se fosse, sei lá, errado – sorri. Em pensar que eu ouviria isso dele algum dia... Ele mudou bastante. Para melhor, ainda bem.
- Mas é sério, eu preciso ir. Seu pai pode entender errado a gente ter se trancado aqui em cima.
- É mais fácil ele estar lá embaixo se vangloriando ao mandar mil mensagens para a minha mãe falando que eu trouxe uma mulher pra casa – respondeu, irônico.
- Você nunca trouxe uma namorada para cá? Ou para eles conhecerem? – ele sorriu sem graça, coçando a nuca.
- Não... Eu não trazia ninguém aqui em casa também porque eu não via o sentido de apresentar alguém para eles, já que nenhum dos dois quase nunca estão em casa... Sobre trazer amigos ou visitas... – deu de ombros. – Sei lá, eu só nunca quis trazer...
Ri.
- Ok, ok – me joguei pra trás, deitando na cama, e fiquei olhando o teto. – Será que seu pai viria aqui no quarto se a gente não tivesse esbarrado com ele na cozinha?
- Por que pergunta? – ele se deitou também, apoiando a cabeça em sua mão.
- O carro da minha mãe ainda está estacionado na frente da sua casa... – relembrei ele.
- Ah é – por mais que eu não possa ver seu rosto, eu sei que ele está sorrindo. – Será que a Lucy já acordou? Eu não quero ficar aqui porque eu sei que ele vai querer falar sobre você.
- Liga pra ela e acorda ela.
- Tá doida? A Lucy vira um demônio quando acordam ela... – revirei os olhos e me sentei novamente, pra poder encarar ele.
- Você tem medo dela?
- Pra caralho – falou, o que me fez rir. – Ela já me jogou um livro por causa disso... Junto com várias outras coisas, fora os tantos palavrões que ela até inventou na hora – tremeu.
- Mas ela parece uma bonequinha – falei, só pra implicar. A verdade é que eu também já acordei ela, e embora ela não tenha sido agressiva, ela passou o resto do dia reclamando.
- Só se for a Annabelle... – ri, provavelmente mais do que eu devia. Poucos segundos depois sua risada se uniu a minha.
- Então vamos – falei, quando finalmente consegui parar de rir.
- Pra sua casa?
Neguei com a cabeça.
- Vou te mostrar um lado meu que ninguém conhece também – pisquei um olho e peguei minha mochila para poder escovar os dentes e trocar de roupa. Aproveitei e mandei uma mensagem para a minha mãe avisando que voltaria mais tarde.
Depois que a gente terminou de se trocar, descemos e saímos da casa. Entramos no carro e eu dei partida logo em seguida.
Parei no primeiro posto de gasolina que encontrei pela frente para poder encher o tanque.
- Esse seu mistério está me matando – resmungou. – Para onde vamos?
Sorri travessa.
- Não sei – ele parou de fitar a estrada e me olhou, desconfiado.
- Como assim não sabe?
- Eu não sei, ué.
- Então você vai simplesmente pegar o carro e sair por aí dirigindo?
- Exatamente – meu sorriso se alargou quando ele fez uma cara de descrença.
- Tá falando sério? – perguntou após alguns minutos de silêncio, quando eu não desmenti e entrei em uma rua totalmente aleatória, saindo da cidade.
- Seríssimo – respondi, tentando não rir. – Quando eu não queria ficar em casa ou alguma outra coisa, eu simplesmente pegava o carro e começava a dirigir. Eu já cheguei a sumir por uma semana inteira...
- Eu estou começando a ficar com medo de você – falou pausadamente. Bufei.
- Eu não estou te sequestrando, caramba! Pode confiar em mim, por favor? – resmunguei, acelerando quando a gente chegou à interestadual.
- Você realmente não tem a mínima ideia de onde está indo, não é?
Neguei com a cabeça.
- E como a gente volta? Você já se perdeu alguma vez?
- Algumas – admiti, envergonhada. – Mas isso acontecia antes porque eu realmente não prestava atenção para onde estava indo. Eu simplesmente ia... Depois de um tempo eu passei a prestar atenção no caminho, então é mais fácil. Além do mais, é só usar GPS...
Ele suspirou e depois sorriu seu sorriso de garoto, me empolgando também.
Acabou que eu dirigi por muito tempo. Talvez duas ou três horas. E acabei chegando em uma área litorânea, que eu nem sequer sabia que existia.
Parei o carro em um refúgio e olhei em volta. Apesar de ainda estar cedo, o lugar está vazio. Dei de ombros e comecei a procurar um lugar para estacionar que não me renderia multas ou um reboque.
- Você tem certeza de que quer parar aqui? – perguntou quando eu saí do carro. Ele olhou em volta, apreensivo. – Aqui tá deserto, você é louca? A gente tá literalmente no meio do nada! Nem eu sei que lugar é esse!
Tirei os tênis e a meia, jogando dentro do porta malas. Tirei também o casaco, ficando só com a roupa que eu estava por baixo.
- Relaxa, Seth – segurei sua mão e o reboquei pela areia, não sem antes ele tirar os sapatos e camiseta.
Me sentei relativamente perto da água, e o puxei para se sentar ao meu lado.
- Você realmente gosta disso? De sumir sozinha, se sentar e ficar observando o horizonte, essas coisas.
Sorri brincando com a areia em minhas mãos.
- Sim. Eu sempre gostei. É uma sensação de liberdade indescritível.
- E ninguém sabia disso – ele continuou. Sua voz estava carregada com algum sentimento que eu não consegui identificar, então levantei meu rosto, olhando para ele. Seus olhos brilhavam.
Olhei para as minhas mãos novamente.
- Nunca contei pra ninguém que eu gosto de fazer isso. Muito menos levei alguém comigo.
- Obrigado – falou, sincero, e deu um beijo em minha bochecha. E em seguida se levantou, me erguendo em seus braços.
Agarrei seu pescoço com os braços por puro reflexo, com receio de cair. Ele riu. Sua risada reverberou por meu corpo, me fazendo tremer.
- Mas é claro que a gente não veio até aqui para não entrar na água, não é? – falou, ameaçadoramente, dando o primeiro passo – olhei freneticamente pela areia à procura de alguma placa de aviso de tubarão ou qualquer coisa do gênero, mas não tinha nada. Aparentemente a praia só é no meio do nada o suficiente para não chamar a atenção.
- Você vai realmente me jogar na água? Eu te trouxe em uma aventura incrível – falei inocentemente. Quando ele deu mais alguns passos eu sorri, aceitando minha derrota.
Pouco depois senti a água gelada me atingir nas costas, fazendo eu me agarrar em seu pescoço novamente, só que dessa vez eu me puxei, tentando me afastar da água e me libertar de seus braços.
- Puta que pariu! – choraminguei quando ele me segurou mais forte, indo para mais longe da areia e mais fundo dentro da água. – Seth, eu espero que você se lembre que eu sou menor que você e se você me soltar mais para frente do que isso, eu não vou conseguir tocar a areia sem me afogar – falei quando a água começou a atingir minhas costelas.
- E quem disse que eu vou te soltar? – deu mais alguns passos mas parou. A água estava batendo em seu peito. – Ou talvez eu faça isso mesmo – sorriu malicioso e afrouxou o aperto, fazendo meu corpo afundar logo em seguida, mas dessa vez eu tinha sido esperta o suficiente para não largar ele, então eu estava relativamente segura.
Meus braços rodeando seu pescoço era meu único apoio até seus braços me rodearam novamente. A água batia quase no meu queixo, mesmo comigo na ponta dos pés.
- Isso foi maldade, sabia? – falei, sentindo um espasmo de frio.
- Eu tenho certeza que você entraria na água de qualquer forma. Eu só acelerei o processo – riu, me apertando contra seu corpo.
- Ia, mas não de uma vez só! – ele apoiou sua testa à minha. Seus olhos estavam fechados e um leve sorriso adornava seus lábios.
- Você quer voltar pra areia? – perguntou baixinho, mas seus braços ao redor do meu corpo não cederam nem por um milímetro. Fiz que não com a cabeça, me sentindo confortável em seus braços, mesmo com a água gelada.
Fechei os olhos, relaxando. O barulho das ondas que se chocavam levemente na orla me envolveu, junto com a sensação da água que passava pelo meu corpo.
Me soltei do pescoço de Seth, me afastando um pouco, e isso fez com que ele abrisse os olhos para poder me encarar. Sorri e me virei de costas para ele, para poder voltar a olhar o horizonte. O céu está nublado e está começando a ventar um pouco mais forte, mas eu não acho que vai chover. Pelo menos não agora.
- O que mais você costumava fazer quando saía assim? – perguntou.
- Dependia do meu ânimo no dia, ou do lugar que eu acabei chegando. Geralmente eu evito praias porque ou tem muita gente, ou é um lugar perigoso para se ficar sozinha, mas nas poucas que eu arrisquei, eu só fiquei sentada, olhando para o nada.
- Então você realmente não ia entrar na água? – me virei para poder encará-lo e ele sorria um pouquinho, parecendo se desculpar.
- Talvez – ri. – Mas vou admitir que eu estava com vontade de entrar, por isso tirei os sapatos e o casaco. Vou usar depois pra não ferrar tanto o banco do carro...
- Se é assim, então eu me sinto menos culpado agora.
- É uma praia bem calma – comentei. – Quase não tem onda, e as que se formam, não dá sequer para chamar de onda...
Seth mergulhou, provavelmente para terminar de molhar o corpo. Quando emergiu, seu cabelo ensopado estava todo lambido. Soltei uma risadinha.
Estiquei minha mão até sua direção, bagunçando seu cabelo.
- Agora sim, bem melhor – falei, satisfeita.
- Então você prefere meu cabelo bagunçado? – falou, apalpando cuidadosamente seus fios, para tentar ter uma noção de como estava, mas ao mesmo tempo sem desfazer o ''penteado'' que eu fiz.
Dei de ombros.
- É só gosto pessoal – respondi. – Não se aplica exclusivamente a você.
- Eu acho que lembro que seu cabelo estava bem nesse padrão naquela foto que você nos mostrou... – ele relembrou e eu grunhi.
- Vamos voltar pra areia – falei. – Caso contrário a gente não vai secar e vamos ter que entrar no carro assim...
Me sentei na areia, finalmente começando a sentir os efeitos de ter passado a noite acordada. Bocejei longamente, sentindo um cansaço repentino.
- Você não acha que seria melhor a gente voltar? Você parece que vai virar pro lado e dormir a qualquer momento – Seth falou, preocupado.
- Talvez fosse interessante eu realmente fazer isso... Tirar um cochilo antes de voltar. Eu estou realmente me sentindo cansada agora – apoiei minhas mãos na areia atrás de mim e me inclinei olhando para o céu.
- Você quer dormir? Aqui? No meio do nada? – Seth me olhou descrente.
- Sim, por que não? – ele fez uma careta.
- Talvez porque é perigoso? – deu bastante ênfase na palavra 'perigoso'.
- Eu não estou sozinha – ressaltei o óbvio. – Com você aqui comigo não é tão perigoso assim...
- Alguém precisa avaliar seu senso de perigo, Sam. Porque isso é insano em um nível que eu nunca vi. Tudo isso, aliás.
Revirei os olhos.
- Não é para tanto... – me levantei e comecei a andar em direção ao carro. – Mas se insiste tanto, então vamos.
- Você ficou chateada comigo? – perguntou, tentando me alcançar.
Fiz que não com a cabeça enquanto forrava o banco do motorista com meu casaco. Suspirei. Acho melhor tirar pelo menos a calça molhada, senão só esse casaco não vai segurar a água. Fora que a calça tá com muita areia, porque eu me sentei no chão molhada...
Fiquei encarando minha mochila, até decidir que era realmente melhor trocar pelo menos a calça.
Abri a mochila e tirei a parte inferior da roupa que eu usei para 'dormir' na casa de Seth hoje.
- Eu vou trocar a parte de baixo – avisei. – Você pode usar meu casaco para forrar o banco, já que não tem nada para trocar a roupa molhada. Só espera aqui – peguei a peça e fui andando para lugar nenhum, procurando qualquer proteção para poder trocar a calça. Não que eu não confie nele, até porque eu sei que ele não tentaria espiar, mesmo se eu decidisse tirar as calças em sua frente. Minha preocupação mesmo é alguém passar na hora.
Eu não precisei ir longe, já que na parte oeste da praia tinha algumas pedras. Quando retornei, ele estava encostado no carro, parecendo culpado.
- Por que essa cara? – falei, jogando a calça molhada no porta-malas. Coloquei minhas meias só para não precisar dirigir descalça.
- Porque eu acabei com o clima – ele respondeu, sem me fitar. Suspirei e andei até o outro lado do carro, parando à sua frente.
- Seth, você achou mesmo que eu dormiria aqui? No meio do nada, na areia de uma praia deserta?
- Bom, sim – respondeu, me arrancando uma risada. Ele me encarou confuso. – Eu realmente não duvidaria, já que você simplesmente entrou no carro e dirigiu por 3h sem ter nenhum rumo. Dormir em lugares aleatórios talvez seja dentro do seu padrão quando sai assim...
- Não vou dizer que nunca fiz isso – admiti. – Mas eu geralmente dormia no carro... Além do mais, se a gente não voltar em algum momento, vai ficar tarde. Eu, sinceramente, se não tivesse aula amanhã e estivesse sozinha, provavelmente procuraria algum hotel ou abrigo e continuaria por aqui por mais algum tempo.
- Você fala isso com uma tranquilidade tão grande que me faz querer realmente seguir essa ideia: procurar um lugar, um abrigo, sei lá, e ficar aqui por mais alguns dias...
- Não me tente – avisei, meio brincando, meio falando sério.
Fiquei olhando para ele, ponderando.
- Talvez você também devesse tirar a calça – falei, sem considerar que ele não teria o que vestir. – Esquece – falei, coçando a nuca, sem graça. – Eu não pensei bem nisso tudo antes de falar...
- Bom, eu poderia amarrar o seu casaco na cintura como forma de solucionar isso – disse. – Mas eu espero que você não queira realmente que eu faça isso...
Ri.
- Ah, claro. Eu adoraria – pisquei um olho para ele, sorrindo maliciosamente, muito mal contendo a vontade de rir.
- Ok – ele disse e deu de ombros. Pegou meu casaco do banco do carro e desabotoou a calça. Eu arqueei uma sobrancelha, sem a mínima reação. Seu rosto plácido se desfez em uma risada que veio do fundo da alma. – Você devia ter visto sua cara – respirou fundo, tentando se recompor. – Você achou mesmo que eu faria isso? – perguntou. Neguei com a cabeça.
- Eu sei que você não teria essa coragem – provoquei. – Além do mais, isso seria insano.
- Não duvide de mim – avisou. – Existem coisas que eu não posso ignorar, como esses desafios e essa sua descrença – revirei os olhos.
- Claro, claro. É melhor a gente começar a voltar logo. Desse jeito a gente só vai chegar quando anoitecer.
- Você não sabe brincar – resmungou, forrando meu casaco no banco do passageiro novamente e fechando o botão de sua calça em seguida. Entrei no carro e peguei meu celular para poder programar o GPS.
- Por mais que eu quisesse ver você sem as calças, não acho que esse seja o momento certo para isso – ele tossiu e se virou para me encarar. – O que? – perguntei inocentemente.
- Você realmente quis dizer isso ou só está implicando comigo de novo? – perguntou enquanto esfregava sua camisa nos cabelos, tirando um pouco o excesso da água.
- O que você acha? – perguntei, ligando o carro e voltando para a estrada.
- Sinceramente? Não sei! – ri. – Eu nunca sei quando você está falando sério ou está brincando.
- Então eu vou deixar sua imaginação trabalhar na resposta – falei simplesmente e ele me encarou, frustrado.
Ouvi o som de um trovão e o clarão que iluminou momentaneamente o céu. As gotas de chuva atingiram o vidro do carro, primeiro não mais do que um chuvisco, e então com uma violência que dava até medo.
- Legal... – fiz careta e liguei o limpador de para-brisa, que mesmo na maior velocidade quase não dava conta. Continuei fuzilando com o olhar a estrada à minha frente, diminuindo drasticamente a velocidade do carro.
- Acho que você não gosta de dirigir na chuva – Seth brincou, deixando uma risadinha escapar quando olhei pra ele de cara feia.
- Se continuar assim, vou parar no primeiro alojamento de beira de estrada e só volto pra pista quando essa palhaçada parar...
- Quer que eu dirija? – perguntou.
- Não é esse o problema. Eu iria querer parar mesmo que não fosse eu quem estivesse dirigindo. A gente tá no meio do nada e não sabemos absolutamente nada sobre o lugar. Uma chuva dessa magnitude significa acidente fácil.
Ele fez um sinal com a cabeça, entendendo aonde eu queria chegar.
- Nem tudo são flores quando você faz esse tipo de coisa – continuei. – Eu já passei por algumas situações para saber que esse clima sempre dá merda.
- Então o que você quer fazer? A gente tá longe pra caramba de casa. E nessa velocidade, a gente vai chegar ainda mais tarde do que a gente tinha previsto. Se a gente encontrar algum lugar para nos abrigarmos, certamente vamos ter que faltar amanhã.
Suspirei.
- Vamos continuar. Talvez com o triplo de cuidado nada aconteça. Vocês têm pouquíssimo tempo até as partidas oficiais começarem. Cada dia a menos de treino pesa muito no resultado final...
- "Vocês"... – Seth suspirou. – Você não vai mesmo participar?
Ele ainda não sabe que o endocrinologista deu o aval para eu participar, sem precisar alterar nada.
Fiz uma cara desolada e fiz que não com a cabeça, tentando segurar o sorriso.
- Você quer tanto assim que eu participe? – perguntei calmamente. Eu não sei de onde eles tiram essa confiança em mim, mas se eles realmente acham que eu vou ser uma adição positiva ao time, por mim tudo bem.
- Seria uma boa chance das garotas chegarem ao nacional – falou, me fazendo arquear a sobrancelha. Eu realmente não sei de onde eles tiram essa confiança em mim...
- Eu acho que eu não tinha comentado antes isso... – falei, como se estivesse triste por não poder participar e ajudar as garotas. – Mas eu vou poder participar do campeonato!
- É sério? – falou animado. Concordei com a cabeça. – Por que não me contou antes?
- Eu esqueci – admiti envergonhada. – Mas eu só confirmei isso recentemente, então não faz tanta diferença assim... E vocês já estão arrancando nossa alma nos treinos – dei de ombros.
Rangi os dentes quando um relâmpago soou, parecendo bem perto. O temporal estava cada vez mais forte e não tinha sinais de que iria ceder tão cedo.
- Eu acho melhor a gente esquecer essa ideia de voltar por hoje – Seth comentou, olhando para o céu. – Acho que vai ser melhor se a gente se abrigar em algum lugar, como você disse. Com sorte a gente consegue sair amanhã cedo o suficiente para poder ir pra aula.
- Com que roupa? – perguntei. Não é uma má ideia, na verdade, mas a gente sequer tem roupa limpa para poder trocar hoje. Teríamos que ir em casa antes...
- Com muita sorte encontramos um lugar onde a gente poderia usar uma máquina de lavar? – disse incerto. Ri.
- Acho mais fácil a gente encontrar uma loja e comprar as roupas... Ainda não está tarde, então pode ser que na cidade vizinha a gente consiga tudo isso... – enquanto eu dirigia, o Seth pegou o meu celular para mudar o GPS para algum shopping ou hotel próximo. A gente já não estava mais no meio do nada, então dá para acreditar que saindo da interestadual, dá para achar uma cidade facilmente.
- Tem lojas e algumas pousadas e hotéis a uns 30 minutos de onde estamos – falou, enquanto recolocava o celular no suporte. Agradeci com um movimento de cabeça, prestando atenção na rota nova que o celular me dava.
- Sabe que a gente vai ter que sair absurdamente cedo, não é? – falei. – Isso se tiver parado de cair o céu amanhã de manhã...
- Eu sei – suspirou. – Estou me questionando se vale realmente a pena todo esse esforço. Talvez seja melhor a gente simplesmente faltar ou então chegar lá quando der para chegar, nem que seja só para o treino...
Sorri.
- Por mim – dei de ombros. – Mas você é tão certinho – falei com sarcasmo. – Será mesmo que não vai te prejudicar? As pessoas vão falar que eu sou uma má influência para você... – ele bufou, mas não me respondeu. Soltei uma risadinha. – A gente consegue chegar na hora. Se quiser, pode dormir na volta, eu não me importo – falei. – Eu que te coloquei nessa furada, para início de conversa...
- Passar algumas horas com você ou acordar de madrugada para poder voltar dirigindo direto para a escola... A escolha não é difícil – sorriu animado. – Além do mais, a gente não dormiu nada essa noite. Eu duvido que eu seja capaz de acordar três e pouca da manhã...
- Ok – sorri. – A escolha foi sua.
Algum tempo depois já estávamos no shopping olhando as lojas rapidamente. Andei apressada pelo local, me sentindo desconfortável pelo short de dormir que usava e pela forma que as pessoas nos encaravam.
- Vamos entrar nessa – Seth falou, me parando. – Parece que tem tudo o que a gente precisa. Uma calça e uma camisa é o suficiente para mim – concordei, seguindo ele para dentro.
Olhei rapidamente as roupas, não me sentindo particularmente interessada em nenhuma, mas pegando uma calça jeans mesmo assim.
- Você não precisa ficar fuzilando tudo com os olhos – ele murmurou perto do meu ouvido, me sobressaltando. – Por que essa cara?
- Nada – falei, me virando para ir para o provador. – Eu só odeio ter que fazer isso – ele pareceu confuso. – Escolher roupas, comprar roupas, essas coisas. Nunca tive muita paciência pra nada disso – esclareci.
- Ah... – ele olhou em volta e depois para mim. – Só vai comprar essa calça? Vai continuar com a blusa molhada? – dei de ombros, sem querer admitir que não achei nada que me interessava. Ele bufou e começou a andar pelos corredores, voltando poucos segundos depois com um cabide em mãos. – Toma – estendeu para mim. – Eu vi essa peça quando a gente entrou e achei que combina com você... – arqueei a sobrancelha para a blusa de manga caída que Seth me oferecia, mas não discuti. Peguei o cabide de sua mão e fui para o caixa. – Você não vai nem provar?
- Pra quê? – perguntei. – Ela obviamente serve em mim...
Ele balançou a cabeça em descrença.
- Você é incrível... Ah, espera – disse enquanto se afastava. Virei para olhar aonde ele ia, mas fiz o que ele me pediu. Me remexi inquieta quando percebi que ele entrou na sessão de roupas íntimas.
Fiz uma careta quando ele voltou e sorriu maliciosamente.
- Eu não consigo ficar só com a calça – murmurou perto do meu ouvido. – Se quiser, eu te empresto uma – riu com a minha careta.
- Está pensando em cumprir o que você não pôde no carro? – sorri maliciosamente.
O atendente do caixa olhou estranho pra gente, provavelmente porque escutou o que eu falei, mas não me importei. Ele não sabe sobre o que eu estou falando mesmo...
- Quer comer alguma coisa? – Seth perguntou depois de sairmos da loja, o atendente ainda olhando pra gente.
Concordei enquanto ele me arrastava para a praça de alimentação.
Comemos e enrolamos o maior tempo que pudemos, com a esperança da chuva cessar, mas não teve jeito. Quando finalmente resolvemos ir para o hotel, já estava tarde e nós dois estávamos exaustos.
Deixei Seth ir na frente para cuidar das formalidades do check in, enquanto eu ligava e explicava o que tinha acontecido para a minha mãe. Embora ela seja super tranquila com isso, e saiba que eu vou voltar em algum momento, eu prefiro que ela pelo menos saiba que eu estou viva e bem, assim a preocupação diminui um pouco.
- Sam – Seth me chamou, acenando, quando me aproximei. – Parece que nós não fomos os únicos que procuraram abrigo por causa da chuva – falou. – E o senhor também me disse que essa época do ano é alta temporada para algum evento que vai ter – concordei com a cabeça. Eu só quero poder tomar um banho e dormir... – E parece que só tem um quarto disponível.
- Ahhhh... – falei, finalmente entendendo. – Ok. Não vejo problema.
- E o quarto é de casal – ele avisou novamente, reprimindo um sorriso.
- Você pode dormir no chão – falei e o recepcionista olhou para nós dois, assustado. Ri. Seth me olhou incrédulo.
- Você realmente vai fazer isso comigo? Eu pensei que você me amasse! – choramingou, fazendo o cara que nos atendia rir, logo em seguida disfarçando com uma tosse.
- Sem drama, ok? Pelo menos você não vai precisar dormir no porta-malas do carro – sorri irônica.
- Você devia me tratar melhor... – resmungou, pegando seus documentos de volta enquanto eu entregava os meus. – Você nunca vai arrumar alguém tão bom quanto eu.
- Não precisa dramatizar tanto – falei, achando a interação divertida.
- Vocês formam um belo casal – o recepcionista comentou, me entregando o formulário. Apenas sorri, com preguiça demais para corrigir ele.
- Nós não somos namorados – Seth falou e me olhou com uma cara estranha. Dei de ombros.
- Desculpe o comentário então – o homem falou, parecendo sem graça.
- Não se preocupe com isso – falei, devolvendo o formulário e guardando meus documentos. – Você não é o único que tem essa impressão.
- Então talvez seja só uma questão de tempo – sorriu gentilmente para nós.
- Talvez – concordei, sem querer estender mais o assunto. Peguei o cartão magnético que o homem me oferecia e me despedi, indo em direção ao elevador com Seth me seguindo, calado.
- Você quis dizer isso mesmo? – perguntou, soando um pouquinho esperançoso. Fiquei com medo de acabar magoando ele, mas preferi ser o mais sincera possível.
- Você se abriu e me disse como se sente, não é? Eu reconheço seu sentimento. Foi isso o que eu quis dizer... – fiquei brincando com o cartão, sem saber o que mais dizer. – Eu sei que você espera uma resposta minha, Seth...
- Tudo bem – ele disse, colocando meu cabelo atrás da minha orelha. – Eu já falei que eu vou esperar você estar pronta para me dar a sua resposta, seja para o sim ou para o não. É só que eu não esperei que você fosse fazer aquele comentário.
- Eu não coloquei muito pensamento na resposta, na verdade. Todos que sabem que a gente não namora acham que a gente vai começar eventualmente – abri a porta do quarto e joguei minha mochila no chão ao pé da cama. – Eu não me importo que pensem assim. Eu sou mais o tipo de pessoa que pensa que se for para dar merda, vai dar e pronto.
- Então você pensa nisso? Na possibilidade – dei de ombros, andando até o banheiro.
- Não. Nunca pensei – me virei para olhá-lo e ele de fato parecia magoado. Suspirei. Me aproximei, parando na frente dele. – Seth, eu não sou o tipo de pessoa que fica planejando relacionamento. Não veja mais em minhas palavras do que eu realmente disse. Eu acabei de falar: eu sou o tipo de pessoa que vai conforme o fluxo. Se tiver que acontecer, vai acontecer independente de eu pensar nisso ou não. Você não precisa ficar inseguro.
Ele sorriu fraquinho, mas concordou com a cabeça.
- Você devia tomar logo seu banho. Antes que você durma em pé – debochou, me fazendo rir.
- Pode acontecer – entrei na brincadeira. Voltei para a direção do banheiro, mas ele me parou. Seth enfiou a mão em uma das sacolas que ele estava segurando e me jogou uma boxer. Olhei para a peça de roupa que eu peguei no ar por puro reflexo, sem a menor reação. Ele ficou parado, me observando, com a maior cara de paisagem que tem, até explodir em gargalhadas. Respirei fundo, tentando não jogar a peça de volta nele. – Obrigada – falei, seca, e entrei no banheiro.
Quando saí do banho, fiz questão de deixar a calça um pouco mais baixa só para ser possível de ver que eu usava a boxer que ele me deu em tom de piada. Verdade seja dita que eu não me preocupei com peça íntima e que a sensação do jeans é incômoda pra caramba... Então de certa forma eu agradeço a ele...
Já Seth não sabia que reação ter. Se ficava feliz por eu ter aceito, ou se ficava intrigado por eu ter aceito. De qualquer forma, ele ficou me encarando meio pasmo. Sorri maliciosamente.
- Obrigada – falei novamente. – Vou sempre me lembrar de você quando usar – ele desviou o olhar, meio envergonhado, mas me deu um sorrisinho.
Quando Seth entrou no banheiro eu me joguei na cama, exausta. Eu não sei quanto tempo ele demorou lá dentro e muito menos quanto tempo eu demorei para pegar no sono, mas em algum momento eu senti a leve pressão na beira da cama quando ele se deitou ao meu lado.
Escutei o meu celular tocando. Me estiquei minimamente para poder pegar ele de cima da cômoda, ao lado da cama, e atendi ainda de olhos fechados.
Escutei minimamente a pessoa falando do outro lado, já que não está no viva voz e eu não coloquei o celular no ouvido para poder escutar. Na verdade, eu muito mal estou segurando o celular. Resmungando, finalmente abri os olhos, dando de cara com o sorriso malicioso de Lucy na chamada de vídeo. Ah, merda... Por ser chamada de vídeo já estava no viva voz, ela só estava quieta mesmo. O barulho que eu ouvi parecia vim de sua televisão.
- Bom dia, Sam – falou, a voz carrega de malícia. – Vejo que não vem à aula hoje, não é? Sua mãe mandou uma mensagem pra me avisar que não era bom te esperar, senão eu me atrasaria... Ela falou que você saiu sábado e não voltou mais...
- Bom dia – respondi, ignorando todo o resto e seu sorriso malicioso, assim como seu olhar que me atravessava.
- Aonde você está? – tentei me lembrar o nome da cidade, que eu acabei descobrindo, quando fui fazer o check in no hotel. Dei de ombros, lutando para manter os olhos abertos. Tentei me mexer na cama, mas os braços de Seth me apertaram um pouco, me puxando para mais perto de seu peito. Arregalei os olhos, finalmente prestando atenção na expressão de Lucy. – A noite foi boa? – seu sorriso se alargou um pouquinho. Suspirei.
Se eu tivesse me dado ao trabalho de abrir os olhos para ver que era uma chamada de vídeo, eu nunca teria atendido ela. E se eu também tivesse sequer me lembrado que o Seth dormiu comigo. Suspirei. Em algum momento da noite ele acabou se virando para o meu lado e me abraçando...
- Você sabe que não aconteceu nada – finalmente falei, ignorando quando ela arqueou a sobrancelha. Ele tá sem camisa e pelo ângulo do celular, também parece que eu estou. Aliás... Por que ele está sem camisa?!
- Aonde vocês estão? Por que faltaram? – falou, dessa vez parecendo menos maliciosa e mais preocupada.
- A gente ficou no meio de uma tempestade. Decidimos que era melhor nos abrigarmos em algum lugar do que tentar voltar – simplifiquei a história. Pelo barulho que tá fazendo, a chuva não cedeu nem um milímetro. – Se continuar assim, não sei se a gente vai ser capaz de voltar hoje.
- Ok, mas isso não responde à minha pergunta: aonde vocês se enfiaram? Não está chovendo aqui...
- Fomos à praia... – Seth se remexeu, inquieto, provavelmente incomodado com o barulho. Tentei olhar para ele, mas ele colocou o rosto em meu pescoço, ainda dormindo. Senti um leve arrepio quando seus lábios tocaram minha pele. Fechei os olhos e me foquei em Lucy novamente, achando melhor ignorar ele totalmente.
Olhei para a varanda que tinha no lado oposto do quarto, mas ainda está escuro e não dá pra ver nada. Me sentei na cama, me afastando de Seth.
- O que diabos vocês foram fazer na praia? – ela falou enquanto terminava de se arrumar para a escola. Dei de ombros.
- O que alguém faz na praia, Lucy? – perguntei retoricamente. A verdade é que a gente encontrou uma praia. A ideia não era ir pra ela de fato, então eu, sinceramente, não tenho resposta para a pergunta dela. E eu obviamente não vou falar que eu só queria dirigir até achar algum lugar e depois parar pra ficar olhando pro nada...
- Depende da pessoa – riu cheia de malícia.
- Pessoas normais, Lucy. Pessoas normais... – revirei os olhos. – A gente não foi pra praia pra transar ao ar livre – bufei. Embora a praia fosse tão deserta e no meio do nada que se a gente quisesse, a gente não teria problema nenhum em fazer. E nem precisaríamos nos esconder na água para isso...
- Sei lá... Pela mensagem que sua mãe mandou, eu imaginei que tinha sido alguma coisa desse tipo...
- A gente vai voltar quando der para voltar – falei, mudando de assunto e já respondendo a pergunta que ela me faria em algum momento. – E o seu encontro, como foi? – sorri quando seu rosto corou um pouquinho.
- Foi legal...
- Mas?... – sua feição suavizou em um sorriso meigo.
- Ele me pediu em namoro – falou por fim.
- E o que você respondeu? – ela desviou o olhar, e não era preciso ser muito inteligente para saber que ela aceitou. – Eu fico feliz por vocês – falei com sinceridade.
Seth se remexeu na cama e depois se sentou, coçando o olho. Olhou para mim confuso por eu estar sentada, ao invés de dormindo.
- Bom dia, dorminhoco – Lucy falou, sobressaltando ele, que se aproximou para olhar por cima do meu ombro. Ele sorriu sem graça, como se tivesse sido pego no flagra fazendo algo errado.
- Yo – falou e apoiou a testa no meu ombro, ressonando. Revirei os olhos. Ele parece uma criança...
Lucy sorriu, provavelmente pensando a mesma coisa que eu.
- Bom, preciso ir – falou. – Mais tarde eu falo com vocês de novo. Qualquer coisa mandem notícias.
- Até mais, Lucy – Seth acenou, sem se dar ao trabalho de levantar a cabeça. Depois que ela desligou eu caí pro lado, fazendo ele tombar também. Ri, feliz.
- Você parece de bom humor – falou se ajeitando na cama, parecendo um pouco mais acordado agora. Apoiou a cabeça na mão e me fitou.
- E estou. Embora a gente esteja preso aqui, já fazia tempo que eu não passava por uma experiência dessas – sorri e ele me acompanhou. – Aliás, Seth... Poderia me dizer porquê você está sem blusa?
- Eu usei a que estava para me secar.
- E você não comprou outra? – falei.
- Eu não quis usar – sorriu amarelo e eu suspirei, deixando o assunto de lado. Não faz diferença, na verdade. – O que você quer fazer hoje? Temos o dia todo para aproveitar.
- Nada? Tá chovendo pra caramba e eu não tô realmente no clima de sair da cama, não... – puxei o cobertor novamente e me cobri, me encolhendo sob ele.
- Vou buscar alguma coisa pra gente poder comer – falou, se levantando. Agarrei o bolso da sua calça e o puxei de volta para a cama.
- Tá cedo ainda – murmurei fazendo ele sorrir. Reprimi um bocejo enquanto ele se enfiava embaixo do cobertor comigo.
- Você fazendo manha? – disse, meio incrédulo e meio brincando. – É por isso que tá chovendo tanto – soltei uma risadinha e ele sorriu.
- Vocês me levam muito à sério. Às vezes eu também quero fazer manha.
- Claro, claro. À vontade. Na verdade, você abaixar a guarda assim perto de mim me deixa feliz. Talvez você não veja nada de mais nisso, mas para mim quer dizer muita coisa.
- Eu acho que você tá certo – admiti. - Não é com qualquer um que eu sou tão transparente assim. Poucas pessoas conhecem esse meu lado.
Seu sorriso se alargou um pouquinho.
- Eu não quero voltar – ele falou, do nada. Senti seu olhar pesar em mim e eu tive a certeza que ele sabe que eu penso a mesma coisa.
- Eu também não...
- Eu acho que entendo porquê você faz isso... Sumir assim do nada, pegar o carro e sair dirigindo...
- Ah é? Por quê?
- Fugir da realidade. Ter uma sensação de liberdade que você nunca teria no dia-a-dia.
- Você entendeu quase tudo – sorri.
- Quase tudo? Tem outro motivo pra você fazer isso?
- Sim e não – falei, mas não continuei. Ele ficou calado, esperando algum complemento. Eu demorei bastante tempo até decidir continuar. – A primeira vez que eu fiz isso, eu só queria um lugar pra ficar sozinha. Então foi literalmente só isso... eu queria ficar sozinha. Claro que depois eu descobri coisas como essas que você disse. A sensação de estar vivendo uma vida que não era a minha, poder me deslocar de tudo o que eu estava sentindo, pensando etc. Mas primordialmente, tudo o que eu queria era sentar em um lugar que ninguém conhecia e ficar lá sem a menor chance de alguém me encontrar.
- Você não gosta de ter gente por perto? – perguntou.
- Estou me acostumando – respondi com sinceridade. – Antes era só eu e, bom... Era só eu e Jack – sua expressão não traiu nenhum sentimento, então eu acho que ele já estava esperando algo do tipo. – Eu tendia a ficar o menor tempo em casa possível, para não esbarrar com meu pai. Quando eu não estava com alguém, eu estava com ele.
- Eu não consigo imaginar o estresse psicológico e a pressão que você deve ter sentido a ponto de precisar procurar um lugar para se refugiar... – falou baixinho. Suspirei.
- Minha vida não era de todo ruim – afirmei. – Aconteceu muita merda, mas tiveram coisas boas também...
- Você sente falta dele? – suspirei pesadamente. – Me responde com sinceridade... – pediu. - Eu sei que a minha atitude aquele dia foi infantil. Eu não posso exigir que você apague seu passado e finja que ele não esteve presente ao seu lado. E eu também não quero que você faça isso. Eu entendo que ele foi uma parte importante da sua vida e que você provavelmente foi capaz de lidar com tudo isso porque ele esteve sempre lá...
- Sinto – respondi depois de analisar bem sua expressão, sem encontrar nenhum traço de incerteza ou insegurança em seus olhos.
- Mas... – me incitou.
- Mas nada. Não tem um "mas". Mesmo que eu voltasse, eu não sei o quão diferente as coisas seriam. Não é como a gente fosse voltar a namorar ou as coisas fossem voltar a ser "perfeitas" como eram antes. Ele mudou. Eu mudei. E é isso...
- Se você pudesse, você voltaria com ele? - suspirei.
- Por que perguntar coisas que você não quer realmente saber a resposta?...
- Eu quero saber a resposta... Mesmo que eu possa me arrepender um pouco de perguntar, a sua resposta pode me esclarecer muita coisa...
- Sério? Então o que você diria da minha resposta se eu falasse que você não tem chance? Ou que se eu pudesse voltar ao passado e evitar que eu me autodestruísse o suficiente para achar melhor terminar com ele eu voltaria sem pensar duas vezes? – olhei para ele séria. Esperei sua reação, mas ela não veio. Trinquei o maxilar. – Desculpa – respirei fundo. Seth não tem culpa de como as coisas terminaram entre nós dois e descontar nele é babaca da minha parte. – Tem muita coisa que eu me arrependo. Terminar com ele é uma delas. Isso pesou por muito tempo em mim – falei com sinceridade. Pude ver o vislumbre de mágoa no fundo de seus olhos, mas ele não disse nada. – Mas eu sinceramente não me vejo mais nessa situação. Eu não sei se eu voltaria com ele se eu tivesse essa opção, mas a resposta é "provavelmente não". Eu nunca parei para pensar nisso. Eu sinto falta dele, mas na maior parte do tempo, eu sinto falta do meu amigo, e não do meu namorado.
Seth concordou com a cabeça, porém permaneceu calado.
- Era por isso que eu não queria responder – suspirei.
- Não, tudo bem. Eu só estou pensando. Eu não estou magoado e nem chateado com você – seus olhos diziam o contrário. Por que tem que ser tão complicado?
-Seth, você se prende demais ao meu passado. Talvez você devesse parar de se focar tanto no que aconteceu antes e se focar no presente. Você também teve experiências passadas. Ou uma namorada ou alguma pessoa que marcou sua vida. É a mesma coisa... Isso quer dizer que você voltaria com alguma delas se tivesse oportunidade?
Ele ficou em silêncio, pensativo, até negar com a cabeça.
- Não voltaria. Por muitos motivos. Os principais são porque não terminou exatamente amigável – soltou uma risadinha -, e porque eu estou interessado em outra pessoa agora, que deixa qualquer uma delas no chinelo – revirei os olhos.
- Esquece isso, ok? Vamos dormir. Ainda tá cedo pra caramba e eu estou morrendo de sono...
- Eu quero conversar mais! – resmungou.
- Não, senhor – falei. – Por agora chega. Antes que você fique realmente magoado com alguma coisa que eu disser.
- Eu quero saber se...
- Seth! – cortei, olhando para ele de cara feia.
- OK! – riu. – Cadê aquela Sam manhosa de alguns minutos atrás? – arqueei a sobrancelha. – Tá, tá. Já entendi! – virou de costas para mim, fazendo drama. Sorri.
Apoiei minha testa em suas costas para saber qual seria sua reação, mas tudo o que ele fez foi procurar minha mão, puxando meu braço por cima de sua costela, entrelaçando seus dedos aos meus. Senti vontade de morder suas costas, mas me controlei, desviando minha atenção para outras coisas.
Senti sua pele morna na palma da minha mão e então ele estremeceu, soltando um leve grunhido. Eu demorei um tempo para entender que como forma de distração eu estava seguindo o contorno de sua pele levemente com minha unha ou com a ponta dos dedos.
- Foi mal – falei, me sentindo envergonhada pelo deslize.
- Eu gosto – ele praticamente ronronou, me fazendo rir, então eu continuei, dessa vez consciente do que estava fazendo.
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