Levantei da cama vagarosamente para não acordar Lucy e fui para o banheiro. Lavei o rosto e desci para preparar o café. Cansada da mesma rotina dessa vez resolvi não implicar com ela logo de manhã, e deixei o açucareiro bem ao lado do café dela. Fui à pararia e comprei algumas coisas e voltei para casa.

Subi para acordá-la, mas quando abri a porta ela já estava sentada na cama.

- Onde estava?

- Preparando o café – respondi. – Vamos. Adoça o café antes de beber pra depois não ficar reclamando – avisei. Ela sorriu e me seguiu.

Assim que terminamos de nos arrumar, escutei uma buzina na frente de casa. Suspirei. Desde que Lucy veio pra cá e eu e Seth nos entendemos, ele faz questão de nos levar e trazer pra escola. Todos os dias eu falo que não precisa e, mesmo assim, ele continua vindo.

Às vezes eu consigo convencê-lo e ele não vem de manhã, mas na hora de voltar não tem discussão, e eu já desisti. Até a Lucy desistiu de fazer birra. Quando termina as atividades do clube e a gente sai do vestiário, ela segue direto pro estacionamento e espera ao lado do carro dele.

- Ei, Seth, tá a fim de ir lá pra casa hoje? – me virei pra olhar pra Lucy, que sorria maliciosamente.

Seth me olhou de canto de olho e depois olhou para Lucy pelo espelho.

Desde aquele dia na quadra, Seth tem ido lá em casa com mais frequência, e também tem se mostrado muito interessado em entender sobre as coisas do universo LGBT, e inclusive está mais aberto e vendo as coisas com outros olhos.

Já Lucy continua a mesma sem noção de sempre. Talvez agora esteja pior. Às vezes ela surge com umas ideias tão loucas que eu não consigo sequer ter reação; ou ela simplesmente convida ele lá pra casa.

Dei de ombros.

– Pode ir se quiser – falei. Preciso começar a dar castigos nela, pra ver se ela para de ser bisonha assim...

Entramos em casa e Lucy ficou na cozinha, dizendo que ia fazer chá pra gente. Estranhei, já que ela não é muito fã da bebida, mas preferi não falar nada.

Sentamos na sala e conversamos, até ela voltar e sugerir que jogássemos Eu Nunca.

- Nem pensar – falei, me negando completamente.

- O quê? Por quê? – fez biquinho.

- Porque não. Tá maluca? Aliás, de onde você tirou essa ideia?

- Tá com medo, Sam? – provocou.

- De você e das suas ideias? Com toda a certeza! – ela soltou uma risada e se virou para Seth, tentando encontrar um aliado. – Qual o sentido disso? E eu não sei se você se lembra, mas eu não posso beber...

- Sei lá. Eu tô com tédio... E eu sei disso. Por isso pensei em uma alternativa...

Olhei para Seth, praticamente pedindo socorro. Se ele concordar, eu não vou ter muita alternativa, já que a Lucy vai me infernizar.

- Que alternativa seria essa? – ele perguntou, depois de um tempo calado, me observando.

Desabei no sofá, derrotada. Seus traidores!

- A gente pode ir tirando uma peça de rouba conforme o jogo for rolando – ela sorriu, zombeteira.

Ri alto.

- Claro, Lucy. Você acabou de me convencer – falei, sarcástica.

- E se a gente pegar umas bebidas nada a ver e misturar tudo? – Seth sugeriu.

- Boa – Lucy ficou animada. – Então, Sam? Parece que o Seth já topou – sorriu.

- Seth, seu traidor! – falei, cabisbaixa.

- Então tá combinado. Vem, Seth. Vamos preparar as bebidas. Sam, vai separando as per... – ela me olhou, desconfiada. – Deixa. É melhor eu separar, senão você só vai pegar pergunta sem graça – gesticulou pra mim e pra Seth, nos expulsando para a cozinha enquanto sentava no sofá e começava a separar algumas coisas no celular.

Peguei um monte de coisa que não tinha o menor sentido em misturar, tipo ketchup, leite condensado, suco de limão, molho shoyo, vitamina de banana etc. Já que eles querem jogar, então pelo menos vai todo mundo beber essa desgraça aqui. Joguei tudo isso e mais um monte de coisa no liquidificador e bati com um pouco de água. Vislumbrei uma leve careta que Seth deixou escapar, então parei de esconder meu sorriso de satisfação.

- Você sabe que vai beber também, não é? – perguntou quando desliguei o liquidificador e olhei a gororoba que estava dentro.

- Sim – dei de ombros. – Mas eu tenho mais resistência a ter nojo dessas coisas do que a Lucy, então pelo menos ela tá ferrada – fiz uma careta. – Ela quis jogar, não é? Então vamos jogar...

Tirei o copo do liquidificador e levei até a sala com três copos pequenos. Quando ela viu a cor do líquido, ela ficou pálida. Sorri com satisfação e coloquei tudo na mesa de centro enquanto ela pegava umas almofadas e colocava em cada canto, para nós sentarmos no chão.

- Então, vamos começar? – perguntou hesitante.

- Faça as honras – falei enquanto enchia os copos.

Seth ficou encarando o copo na frente dele, como se estivesse muito arrependido da ideia que ele mesmo tinha dado...

- Ok... – ela se ajeitou e pegou o celular para ler. – Vou começar leve, só pra não assombrar ninguém logo de cara...

- Lucy, pelo amor de deus, faz perguntas que pelo menos vale a pena a gente beber esse troço – Seth encarou o copo à sua frente.

- Tudo bem – deu de ombros. – Eu nunca fiquei com ninguém do mesmo gênero que eu.

Ela esperou alguns segundos e bebeu, fazendo muita careta de nojo. Respirei fundo e virei o meu também. Seth foi o único que não se mexeu.

- Pera, você já... – me olhou.

- Sem perguntas, sem porquês. Só segue – falei, fingindo que não era comigo. Reabasteci nossos copos.

- Quem sabe no futuro ela não te conta essa história? – Lucy falou. – Bom, eu também não sei o que aconteceu – arqueou uma sobrancelha. Encarei ela de volta. Não é inteiramente verdade o que ela disse, já que ela sabe que eu já me relacionei com mulheres no passado...

- Lê logo a próxima – falei.

- Eu nunca fingi prazer – falou depois de um tempo mexendo no telefone, provavelmente procurando alguma pergunta interessante.

Me inclinei para trás e apoiei minhas mãos no chão, sorrindo. Ela arqueou uma sobrancelha enquanto bebia.

- Eu pensei que... – deixou a frase sem terminar, tentando segurar a bebida no estômago.

- Eu disse que não foi agradável, e não que não foi satisfatório – ergui uma sobrancelha, ao dar ênfase à última palavra.

Seth apenas se mantinha calado, me observando. Fingi que não notei e segui com o jogo, enchendo novamente o copo de Lucy.

- Se quer que eu conte algo, sugiro pensar melhor nas perguntas, Lucy – sorri com certa crueldade. – Perguntas assim podem se virar contra você.

Ela bufou e voltou a atenção dela para o celular. Agora ela parece irritada comigo.

- Ok, uma leve, só pro Seth sentir esse gosto maravilhoso também – falou: - Eu nunca fiquei com alguém que eu não sabia o nome – sorriu. – E não adianta mentir.

Ele fez careta e pegou o copo, virando tudo de uma vez. Lucy também bebeu, e eu continuei sorrindo, sem me mexer.

- Você nunca... – Seth se interrompeu, colocando a mão sobre a boca, se concentrando para não vomitar. – Você nunca ficou com uma pessoa que não sabia o nome?

- Não. Eu não fico com qualquer um. Mas eu não fazia questão de decorar o nome – dei de ombros. Não tinha como eu decorar o nome, aliás...

- Eu nunca fiquei/ transei com uma pessoa e depois nunca mais falei com ela.

Meu sorriso desmanchou enquanto eu me esticava para pegar o copo. Todos beberam.

- Eu realmente não imaginei que você já teria feito isso, Sam – Lucy disse, rindo. – Eu preciso saber essa história!

- Nem pensar. Eu concordei em jogar. E só. Não vou ficar contando os detalhes dessas coisas não.

Ela riu, e eu já sabia que viria merda.

- Eu nunca brochei – leu e cruzou os braços sobre a mesa.

A encarei friamente, sem me mexer.

- Eu agradeceria se você parasse de manipular as perguntas – Seth choramingou, bebendo.

Quando ela foi ler outra pergunta, peguei o copo e virei, ainda a encarando friamente.

Ninguém soube exatamente o que fazer, então ela falou:

- Para não ser uma pergunta injusta, vou modificar um pouco: eu nunca brochei ou alguém brochou comigo na hora H – e pegou seu copo e virou.

Seth tomou o celular de Lucy.

- Eu vou escolher as perguntas agora. Você tá manipulando demais a brincadeira. Deixa eu ver... – e começou a procurar. – Eu nunca fiquei com alguém do mesmo colégio.

Lucy revirou os olhos.

- Essas perguntas não têm graça, Seth. Tem que ter mais emoção.

- Chega de emoção por hoje – ele disse enquanto eu e ela bebíamos. – Essa é especialmente para você – e olhou pra ela: - Eu nunca quis jogar Eu Nunca para saber os segredos de alguém – sorriu quando ela fez uma careta.

- Eu não quero exatamente descobrir os segredos de vocês. Eu queria mais me divertir mesmo.

- Sua intenção era fazer a gente falar alguma coisa, então você queria descobrir segredos – falei. – Pode beber – empurrei o copo dela em sua direção. Ela encarou o líquido por um tempo, fazendo careta, mas acabou bebendo.

- Eu nunca me senti atraído ou quis ficar com alguém dessa sala – ela falou rapidamente, antes que Seth tivesse oportunidade de escolher alguma pergunta.

- Você é uma diabinha, sabia? – Seth riu enquanto bebia. – Eu juro que se eu beber mais um gole desse troço, eu vou vomitar.

Olhei de relance para meu copo e para o sorriso de Lucy. Suspirando, também virei o conteúdo do meu, sentindo meu estômago embrulhar.

- Chega – falei, antes que eles começassem a procurar alguma outra coisa. Me levantei, levando os copos e a jarra do liquidificador pra cozinha e começava a lavar tudo. Senti alguém me abraçar por trás, e suspirei.

- Você tá irritada? – Lucy perguntou baixinho. – Eu juro que aquela foi só pro Seth. Eu realmente não pensei que...

Neguei com a cabeça.

- Eu não estou irritada – afirmei. – Sei que não foi de propósito.

- Então por que está assim? – sua voz era mansa, como se estivesse com medo de mim.

- Não é nada, Lucy. É só que aquilo parece uma realidade tão distante. Não parece que foi eu. Não parece que foi uma experiência minha... Eu não quero continuar vivendo aquela realidade, só isso. Quero viver essa aqui. Viver quem eu sou.

- Desculpa... – sussurrou.

- Tudo bem, Lucy. Esquece isso, ok? – falei, passando sabão em seu nariz com um sorrisinho.

- Falando nisso, nenhum de vocês parecem surpresos em saber que estão interessados um no outro...

Dei de ombros.

– A gente já tinha falado sobre isso. Nós já sabíamos – sorri quando ela fez uma careta.

- Vocês sabem e não ficaram ainda por quê?

- Porque não, ué. Só esquece o assunto, tá? – falei, me virando pra ela. – Está na hora da senhorita ir tomar banho e ir fazer os seus deveres – empurrei ela em direção ao banheiro social.

- Sim, senhora, mamãe – disse sarcasticamente. – Será que eu posso pelo menos pegar minhas roupas e uma toalha, ou você espera que eu saia andando pelada e molhada pela casa com Seth aqui?

- Se você quiser... – dei de ombros. – Eu não me importo.

- Ha ha... Vou tomar banho lá em cima, se você me permite – e deu a volta em mim, indo em direção às escadas.

Seth apareceu na cozinha fazendo careta e murmurando alguma coisa.

- O que disse? – perguntei, quando ele parou à alguns passos de distância de mim.

- Eu falei que seria maravilhoso poder escovar meus dentes agora pra poder tirar esse gosto ruim da boca – ri.

- Eu te entendo... Deve ter alguma escova reserva por aqui. Vem comigo – entrei no banheiro social e abri o armário, encontrando o que procurava.

- Obrigado, Sam.

- Vou subir e escovar meus dentes também. Já volto.

Subi e encontrei Lucy sentada na cama enquanto separava o material com os exercícios para serem feitos. Entrei no banheiro e escovei meus dentes até eu não sentir o mínimo gosto daquela bebida maligna em canto algum, e depois desci novamente.

- Você já vai? – perguntei, vendo Seth sair do banheiro. – Está ficando tarde. Ainda bem que você está de carro.

- Sim. Vou seguir a bronca que você deu na Lucy e fazer meus deveres também... Confesso que estou meio relaxado esse ano... – coçou a nuca, sem jeito.

Acompanhei ele até a porta.

- Se você quiser, você pode dormir aqui – comentei. – A gente pode contar histórias de terror a noite toda para Lucy – sorri e ele riu.

- A ideia é realmente tentadora... – ele apoiou a mão no batente da porta, ao lado da minha cabeça.

- Essa pode ser a nossa pequena vingança...

- Sua mãe não se importa?

- Não. Nunca foi um problema – ele sorriu.

- Então vamos – e entramos novamente, fechando a porta às nossas costas.

Olá, meus queridos, tudo bem? Atrasei um pouco pra postar, por questões pessoais. 

Espero que gostem do capítulo. Comentários e votos são sempre bem vindos!

Até o próximo xD

Fran