Capítulo 6 | Instintos básicos
" Eu tinha uma passagem só de ida ao lugar
onde todos os demônios vão"
— Alive, Sia
Desejei acordar...
Desejei desesperadamente acordar daquele pesadelo e fugir desse lugar maldito.
No fundo, eu sabia que nunca mais seria o que era antes. O passado, as marcas, as cicatrizes, o treinamento. O que forma quem uma pessoa é são as situações impostas a ela ao longo da vida. Definitivamente eu não tinha isso, não havia lembranças.
Não carregava nada daquilo em mim, mas Amy Murray sim. Contudo, ela morreu junto com todas as minhas memórias.
Passei dois anos em busca de algo que eu mesma não sabia o que era, e sequer chegara perto de encontrar, e por mais que no fundo sentisse que tudo que estava fazendo passava longe de me trazer de volta, ainda assim, era com um único propósito: a sobrevivência.
Precisava sobreviver, e é mais difícil sobreviver no submundo do Brooklin do que se imagina.
Eu me interessava pela minha história e a invejava, no final das contas, mesmo sem saber muito sobre o meu passado, ou por que tipo treinamento fora submetida para fazer o que eu fazia.
Já eu, fui cuspida no mundo da forma mais dura e cruel que se podia ser feita com um ser-humano, sem instrução, sem informação. Eu não passava do um resto de uma mente quebrada e fragmentada.
Encarava o mundo sob uma nova percepção. Temia a morte e não queria colocar a minha cara no meio desse tipo de coisa, mas também não ousaria colocar a vida de todas as pessoas que amo em risco para me manter protegida. Agora eu sabia que tinha um pai, e queria conhecê-lo, fazer perguntas sobre mim. Quem sabe ver o álbum de fotografias da nossa família. Talvez isso fosse o gatilho que faltava para liberar as minhas memórias. Mas primeiro era preciso tentar dar um jeito de me manter viva até finalmente poder encontrá-lo.
Apesar de não saber muito sobre mim ou sobre meu passado, de uma coisa eu sabia e acreditava piamente. Eu não faria parte de um universo onde pessoas cometiam crimes. Não seria uma assassina.
— Acorde! — Ouvi a voz masculina e grave invadir os meus ouvidos e ecoar em minha cabeça, distante do meu sono.
Remexi-me um pouco, relutante e aconcheguei confortavelmente a cabeça por cima de meu braço. Mas sobressaltei atônita, num pulo sobre a cama, ao sentir um líquido gelado banhar o meu rosto por completo. Pulei da cama. O sono fugiu tão rápido quanto às batidas frenéticas do meu coração, que ficou apertado dentro das minhas costelas.
— Mas o quê... — questionei assustada, sentando-me e encolhendo-me com urgência sobre a cama.
Precisei levar a mão sobre o peito, tentando acalmar o coração exasperado, que parecia explodir a qualquer momento. Espantada, rolei os olhos pelo cômodo praticamente vazio, constatando que não era só um pesadelo: Eu ainda estava presa na cela.
— Isso aqui não é uma colônia de férias. — Ralhou, com as mãos apoiadas no quadril e as penas afastadas.
Ergui uma sobrancelha, encarando-o de forma indignada. Uma raiva crescente se apossou de mim naquele momento. O sujeito era mesmo um tremendo cretino prepotente.
— O que você está esperando? — questionou Ernest, impacientemente, quando percebeu que eu não estava me movendo. — Levante-se daí! — Ordenou, agitando as mãos.
Antes de me levantar da cama, passei as mãos pelo meu rosto, tirando o cabelo e o excesso de água que havia se alojado em volta dos meus olhos.
Enquanto me colocava de pé, encarei o homem dentro de sua roupa informal, parando nos olhos escuros.
Maldito...
O olhar de Ernest subiu e desceu por todo o meu corpo, o que me fez sentir instintivamente forçada a retrair. Eu não queria os olhos dele sobre mim.
— Minha nossa! — Exclamou ele, virando o rosto para o outro lado, em desaprovação. — Você precisa urgentemente de um banho.
Como ele ousa? — Me questionei, perplexa.
Grande imbecil!
Retorci imediatamente minha cara, soltando um ruído de reprovação para aquilo. Eu estava ali contra a minha vontade e não estava lidando nada bem com a ideia de estar presa por tanto tempo. Desde o dia do meu sequestro, não havia feito mais as minhas higienes de forma decente.
Ignorei sua provocação e o segui em direção a porta, mas antes de atravessá-la, o homem agarrou meu braço com seus dedos afundando em minha pele, e eu ergui um olhar condenatório para ele.
— Hoje não é um bom dia, gracinha. Acho melhor não fazer nenhuma idiotice. — Alertou Ernest de forma ameaçadora, com os olhos enviesados.
Fui levada para fora da cela, passando pela grande porta cinza metálica, até chegar ao elevador.
Perguntas começaram a correr pela minha cabeça, causando-me um misto de preocupação, medo e desespero.
Para onde ele estava me levando?
O que eles fariam comigo?
Quanto tempo eu ficaria presa ali?
E o principal, que tipo de "trabalho" eu precisaria fazer? Eu realmente sairia viva no final dessa história?
O pânico me cegou por algum tempo, eu não conseguia pensar racionalmente. Eu já tinha visto isso quando assistia a filmes com Stayce. Eles chantageavam o mocinho para que fizessem o trabalho sujo com a promessa de liberdade, mas no final das contas, tramavam sua morte do mesmo modo.
Todo mundo ia morrer.
Por que fariam diferente comigo?
Eu seria uma ponta solta e todos os meus instintos me diziam que não seria de outro modo. Eu precisava aceitar e tentar dar um jeito de sobreviver. Porque eu não era uma mocinha de novela, tampouco uma heroína de quadrinhos, mas se tinha uma coisa que eu sabia fazer, era sobreviver.
Voltei a mim, no momento em que as portas do elevador me surpreenderam, abrindo-se diante de nós novamente, e eu sobressaltei, recuando num sobressalto para trás com o corpo, quando Travis passou a nossa frente, lançando de surpresa uma bolsa de viajem azul marinho na direção de Ernest, cujo bom reflexo a capturara com a mão livre. Ao passo que me recuperava do susto, não reparei para qual direção Travis seguira. Apenas tinha visto o seu vulto de relance.
Ernest me conduziu com um solavanco para fora do elevador, e eu tive contato visual com o que havia nas laterais do andar. Trabalhei minha visão para enxergar o máximo que podia em meio a escuridão, e analisei o largo corredor com pelo menos cinco portas em cada lado.
O lugar era grande, totalmente vazio e escuro. Uma lâmpada acesa no final do corredor à frente nos livrava da escuridão completa. Nossos passos ecoaram pelo ambiente isolado.
Naquele instante, me dei conta de que nós não estávamos em um prédio abandonado. Tudo estava em seu devido lugar e muito limpo. Meu cérebro começou a trabalhar em mil suposições, até meus olhos encontrarem janelas cobertas por persianas em um tom amarronzado que impedia a invasão da luz natural externa no ambiente, o que me levantou um questionamento importante, por quanto tempo havia ficado presa ali e que horas seriam agora? Dia ou noite?
Sobressaltei assustada quando ele abriu a última porta e me arrastou com brusquidão para dentro, entrando em seguida. Engoli em seco ao sentir o impacto da luz forte ofuscar a minha visão.
— O-o qu-eu... — tentei perguntar, totalmente em pânico.
O que ele estava tentando fazer?
— Você tem dez minutos! — Informou, sobrepondo minha voz com a sua ao empurrar bruscamente a bolsa para mim.
O pânico que se alojou em mim, havia me impedido de racionar corretamente, mas quando o fiz, rolei os olhos, vasculhando silenciosamente ao redor. Estávamos em um grande banheiro. Cabines sanitárias estavam alinhadas, uma do lado da outra, fechando a parede ao fundo. Três conjuntos de pias inteiriças completavam o meio da parede à esquerda, seguido de uma divisória mais alta de mármore, onde deduzi ser o chuveiro.
Peguei receosamente a bolsa e com as mãos tremulas analisei o que havia ali dentro.
Oh minha nossa!
Me alegrei internamente ao ver shampoo, condicionador, uma toalha de banho, e um conjunto de moletom acinzentado.
Eu poderia tomar um banho...
Avancei em direção a pia e coloquei a bolsa ali, pegando tudo o que precisaria para me lavar.
Ergui o meu olhar e me horrorizei com a imagem decrépita refletida no largo espelho a minha frente. Eu precisei olhar duas vezes para reconhecer a minha própria figura refletida no espelho.
Merda!
Com certeza precisaria de muito condicionador para desembaraçar o ninho que os meus cabelos se tornaram. Avancei com meu rosto, me apoiando na borda da pia, diminuindo a distância entre mim e o espelho e toquei a minha pele pálida e arroxeada, analisando minunciosamente as intensas olheiras que tomavam as extensões de meus olhos acastanhados, que agora tinha uma coloração desbotada.
Dispersei meus pensamentos e olhei ao redor, antes de rumar ao chuveiro.
— Você não vai sair? — Perguntei repreendendo-o, quando me deparei com sua presença ainda parada ali. O quadril apoiado na pia e os braços cruzados diante do peito.
Tudo indicava que não.
— Eu não sei... — comentou, franzindo os lábios — Isso pode ser divertido. — Ele arqueou a sobrancelha de forma insinuativa.
Em resposta, retorci o meu rosto em aversão.
Qual o problema com esse cara?
Ele só pode estar louco se acha mesmo que eu tiraria a roupa na frente dele. Por isso, cruzei os braços sobre o peito e o encarei fixamente com relutância. Eu só tomaria o bendito banho depois que esse maldito insolente saísse. Caso contrário, que me levasse de volta do mesmo jeito que me trouxera.
— Tanto faz... — Ernest revirou os olhos e soltou um ruído, me dando as costas, desprezando-me com um gesto de mão para cima. A porta batera logo em seguida.
Depois que Ernest saiu, suspirei aliviada e me apressei em pegar tudo o que precisava, correndo para debaixo do chuveiro. Ensaboei os cabelos e fiz o melhor que pude para desembaraça-lo sem perder muito tempo. Saí dali e vesti o conjunto de moletom, que serviu surpreendentemente bem. Encontrei no fundo da bolsa uma escova de cabelos e outra de dentes.
Antes de sinalizar que estava pronta, decidi avaliar o local mais uma vez, em busca de alguma informação.
Será que ainda estamos em Nova York?
Com pressa, segui para o outro lado do recinto, analisando a última cabine sanitária, que por alguma razão me chamara atenção por não ter uma porta como as outras, na esperança de ser um local aberto, com uma janela, se fosse o caso de ser uma tremenda sortuda. Talvez uma segunda porta. Algum caminho que me levasse para fora desse lugar.
A adrenalina fez meu coração disparar.
Não era o que esperava, muito menos o que eu estava implorando a todas as divindades que pudessem me ouvir, mas foi uma grande surpresa ver que não era uma cabine sanitária, e sim um reservado de emergência. Uma luz brilhante surgiu por cima do extintor. Por alguns segundos, senti o sabor da liberdade derreter sobre a língua.
Suspirei num impasse cruel.
Meu coração batia descompassadamente, e eu senti uma friagem repentina se espalhar do meu baixo ventre por todo o meu corpo.
Eu deveria realmente fazer isso?
Se não desse certo e eu fosse pega, eu poderia morrer. Mas talvez, eu morresse sem tentar também.
No fundo, no fundo eu sabia que deveria tentar fazer alguma coisa para escapar. Eu não podia ser tão ingênua a ponto de acreditar que depois que essa loucura acabasse, eles me liberariam com um aceno amistoso e um desejo de boa sorte.
Era isso ou morrer sem ao menos tentar.
Vencedores só costumam ganhar porque tentam.
Decidida, suspirei pesado e estiquei os meus braços, pegando o cilindro vermelho do suporte que o prendia à parede.
Dever servir...
Gesticulei com a cabeça, tentando me convencer de que não estava sendo uma tola. O extintor não era leve, mas também não era insuportavelmente pesado. Com certeza faria o seu papel se eu fizesse o meu.
A minha liberdade dependia inteiramente e exclusivamente de mim. Nada mais justo, mas isso me deixou preocupada.
Segui a passos cautelosos e silenciosos em direção à porta, sustentando com os dois braços a peça pesada. O ar estava rarefeito e era possível ouvir o meu coração bater frenético e pequeno dentro das costelas.
Deus. Tinha que dar certo... tinha que dar certo!
Eu apelava com os olhos apertados conforme me aproximava da porta. A minha sobrevivência dependia disso.
Equilibrei o objeto em uma mão, e furtivamente girei a maçaneta metálica abrindo uma pequena fresta com cuidado para não fazer o mínimo ruído. O meu coração errou duas batidas ao encontrar o homem de costas, um pouco mais a frente, ao pé da outra porta.
Ele estava me esperando. Postura ereta, mãos nos bolsos da calça e pernas entreabertas.
Engoli os fatos como se fossem um nódulo em minha garganta e ignorei a sensação de que tudo parecia estar ao meu favor naquela fuga, e avancei na ponta dos pés em direção as costas dele. Embora as mãos tremessem e o coração batesse na garganta, ergui firmemente o objeto pelo suporte de ferro e fiz, da lateral da cabeça do homem, o meu alvo. O baque metálico ecoou pelo corredor, quebrando por uma fração de segundos o silêncio. O extintor escapuliu da minha mão com o impacto, o que fez com que outro barulho ensurdecedor se estendesse por cima do silêncio. Senti meus órgãos pararem por alguns instantes.
— Ahhh! Sua puta burra! — Ele praguejou com a expressão retorcida pela dor, levando a mão em direção ao local afetado.
O homem precisou se apoiar com as mãos na parede para que seu corpo grande e pesado não se espalhasse pelo chão.
Pessoas boas e decentes não agrediam as outras, principalmente pelas costas. Mas eu não podia me dar ao luxo de ser uma boa pessoa agora. Era uma questão de vida ou morte. Sequestro. Fuga. Olho por olho, dente por dente.
Eu estava me tornando uma grande vadia má.
As minhas pernas começaram uma corrida instintiva e frenética, quando meus olhos correram para o final do corredor. Cem metros me separavam da porta metálica fechada. Pensei em olhar para trás por cima do ombro, mas que vantagem teria se o encarasse?
A minha fuga estava em curso e parar para olhar, por qualquer motivo que fosse, era idiotice.
Correr. Naquele momento eu tinha que correr. A minha vida dependia das minhas pernas.
Antes mesmo que conseguisse atravessar todo o espaço que havia entre mim e o elevador, fui surpreendida por uma esguia silhueta que surgira repentinamente diante da porta do elevador.
— Não ouse sair do lugar! — Reconheci a voz de Travis, que mantinha sua pistola erguida, apontada em minha direção.
Congelei imediatamente, interceptando os meus passos ao sentir uma náusea desconfortável brotar dentro de mim.
Todo o sentimento de coragem insana escoou do meu corpo para o chão diante da frieza com que ele olhava para mim e mantinha a arma empunhada.
Engoli a seco ao perceber que era o fim da linha e pensar nisso, apenas me fez erguer os braços em rendição e aguardar as consequências do que acabara de fazer.
Eu não imploraria pela minha vida, se for isso o que ele estava esperando, e estava disposta a fazer o que fosse para sair deste lugar.
Não havia arrependimento ou sentimento de culpa. Eu queria que Travis morresse e ele pagaria por toda essa merda que estava fazendo comigo.
Oi leitores lindooooos, tudo bem com vocês?
o que estão achando?
Espero muito que tenham gostado e se gostaram, não esqueçam de deixar as suas estrelinhas por aqui.
Adoro vocês <3
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