Parte VII
Nunca soube como era ser outra pessoa. Nunca tive a chance de estar na pele de outra pessoa, de entrar na cabeça dela. Não sabia como era acordar de manhã e não pensar em todo o país estar te esperando. Nem como seria ir dormir sem que vários guardas e criadas tenham se certificado de você estava bem, estava respirando, estava segura. Não saberia dizer como seria ser só eu.
Enquanto a vasta maioria das garotas da minha idade deviam parar e imaginar como seria se elas fossem da realeza, eu mesma gostava de considerar o contrário. Como seria poder simplesmente fazer o que quisesse sem ter que garantir que ninguém me atacaria? Como seria poder ir e vir, comer, cantar, dançar, sem que registrassem cada passo meu? Como seria poder encontrar uma pessoa na rua que não soubesse meu nome, aonde eu moro, o quanto odeio chá? Como seria ter uma ficha em branco quando eu conhecesse alguém, para poder sujá-la e amassá-la com hábitos e manias que a pessoa fosse descobrindo devagar? Como seria ser só uma pessoa?
Na maioria das vezes, eu gostava de fingir ser uma garota normal em meu próprio quarto. Imaginar como seria só me preocupar com o futuro de personagens em livros e séries, com o lugar para onde eu e minhas amigas sairíamos no final de semana. Mas agora queria saber outra coisa.
Queria saber como seria ser só eu mesma, como seria não ter amarradas às minhas costas milhares de coisas que poderiam ser usadas contra mim. Como seria ser alguém sem valor, sem título, sem nada que lhe pudessem roubar. Alguém que pudesse dar o salto que era se apaixonar e se dar ao luxo de se entregar completamente pois saberia que o máximo que perderia seria seu coração. Queria poder me sentir como alguém normal por pelo menos alguns minutos. Alguém que só tinha o que carregava dentro de si, as lembranças e os traços de personalidade que tivesse cultivado. Alguém que só pudesse perder a si mesmo.
Mas eu não podia. Eu não era normal, não era qualquer uma. Eu tinha mais do que coisas que poderiam usar contra mim, coisas que poderiam arrancar de mim. Tinha coisas mais importantes do que minha própria vida, tinha poderes e alcances que faziam cada segundo que eu respirava estar constantemente ameaçado. Um único título, uma única palavra colocada antes do meu nome, que fazia os outros se esquecerem de que eu era uma pessoa de verdade e só me verem como um jeito de conseguir o que queriam. Eu nunca estaria sozinha. Eu nunca seria só uma garota. Nunca poderia ter a chance de saber como seria inspirar e ter a plena certeza de que eu importava pelo que tinha dentro de mim e não pela coroa.
De todas as vezes em que tinha fingido ser outra pessoa, me escondido quando era pequena, tentado passar despercebida quando era adolescente, nunca tinha desejado tanto ser invisível como agora. Nunca tinha apertado tanto os olhos e abraçado meus joelhos e rezado de verdade para que eu acordasse no dia seguinte como ninguém. Irrelevante, comum. Eu queria muito, desesperadamente não importar. Queria que esquecessem meu nome, esquecessem quem eu era. Queria poder me misturar na multidão. Faria qualquer coisa para poder ser insignificante.
Mas não existia força o suficiente para eu juntar e mudar a realidade. E todas as vezes que abria os olhos, eu continuava aonde estava. Ainda estava encolhida no canto da varanda do meu quarto. Ainda era a véspera do meu casamento. Ainda sentia o frio subir das solas descalças dos meus pés até as pontas dos meus dedos. Ainda abraçava meus joelhos e enterrava minha cara nos meus braços e voltava a fechar os olhos, pedindo que da próxima vez que os abrisse, eu fosse outra pessoa. E que nada daquilo tivesse acontecido comigo.
Tinha meu casaco comigo, mas ele não era nem perto de ser quente o suficiente para aguentar o tempo que eu passei ali. O sol parecia começar a se pôr, o que devia significar que já eram quase quatro horas. Mas eu não saía do lugar. Não queria sair. Podia morrer de frio, mas continuaria ali. Porque, talvez, se eu ficasse bem imóvel e quieta, talvez se esquecessem de mim. Talvez continuassem a viver sem mim.
Mas meu plano de não me mexer foi por água abaixo quando senti apoiarem uma mão no meu ombro. No susto, eu pulei para o lado, me afastando do que eu podia jurar que seria Reid.
Mas meus olhos encontraram os de Clarissa, que parecia ainda mais incomodada de ter me assustado do que eu estava.
Ela não disse nada, pegou um casaco que estava na sua mão e o colocou nos meus ombros, mesmo eu não tendo falado nada, mesmo eu tendo me afastado dela.
E aquele mínimo ato de consideração me fez voltar a chorar mais forte. Antes, era como se eu simplesmente não conseguisse parar, mas também não tivesse forças para chorar de verdade. Mas Clare tinha me feito voltar a soluçar.
Ela até se esticou para sair dali e me deixar sozinha, mas não continuou quando viu que eu mal conseguia respirar. Puxei o casaco com as mãos, tentando fazê-lo me cobrir inteira. Eu queria o frio! Queria que congelasse! Queria sentir qualquer coisa que queimasse minha mão e meus pés e que não tinha sido causado por Reid!
Mas meu corpo queria o casaco, queria sair dali. E assim que Clare se colocou na minha frente e tentou me levantar, eu não a contrariei.
Minha cama estava incrivelmente aconchegante e quente, mas aquilo era péssimo! Quando eu não estava tremendo de frio e inventando dores diferentes, só me sobrava pensar em uma coisa.
Assim que me sentei, vi que Clare tinha me trazido café e coisas para comer. Ela só se contentou quando eu estava coberta e com a bandeja na minha frente, me ajeitando como mãe. E então ela deu um passo atrás, se afastando de mim.
"Gostaria que eu lhe deixasse, Alteza?" Ela perguntou, abaixando a cabeça e olhando para o chão.
Me lembrei na hora do que Reid tinha falado. Clarissa era de longe uma das melhores pessoas que eu já tinha conhecido na vida. Ela era gentil, humilde e sempre se achava dispensável. Mesmo quando ela me resgatava do frio e me acolhia sem que eu tivesse pedido, sem ter que me questionar, ela ainda achava que estaria melhor sem ela. Ela ainda não via o quanto ela fazia.
Tirei a bandeja de cima de mim e me estiquei para pegá-la pela mão e puxá-la para se sentar também na cama.
"Gostaria que ficasse," falei, segurando ainda sua mão e a mirando. Depois meus olhos foram até a porta.
Tinha muita coisa que eu queria perguntar. Queria saber aonde meu pai estava, o que ele estava pensando, o que tinham feito com Reid. Alguém mais sabia do que tinha acontecido? Eu teria que contar? Teria que repetir aquilo que eu mesma ainda custava acreditar? E Liev? Ela ainda corria atrás de tentar fazer aquele casamento ser perfeito? Um casamento que tinha tudo, menos o mínimo interesse do noivo?
Mas eu não sabia nem por onde começar! E minha boca não formava as palavras. Cada tentativa se transformava em mais lágrimas que eu tinha que enxugar na minha coberta.
"Ele foi preso," Clarissa respondeu, provavelmente percebendo que eu não conseguiria falar. Nossos olhos se encontraram e ela me deu um sorriso, que era bastante triste em si. "Vão investigar e mantê-lo preso enquanto isso." Ela continuou e eu concordei com a cabeça, apesar de agora mirar nossas mãos. "Seu pai disse que não tem pressa, mas que quer saber o que você quer fazer. Posso chamá-lo, se preferir, Alteza."
"Não," soltei sem pensar. "Não o chame e não me chame de Alteza," levantei o rosto para olhá-la. Clarissa tinha só dezesseis anos, mas me olhava como se fosse minha mãe e sentisse quase uma obrigação de cuidar de mim.
Soltei da mão dela assim que me lembrei de novo do que Reid tinha dito. Ela tinha mesmo a obrigação de estar ali, de cuidar de mim. Era literalmente a descrição de seu emprego.
Me virei para a bandeja, despejando um pouco de café na xícara e o adoçando. Mas não tomei, entreguei para Clarissa.
Ela olhou de mim para o café, sem entender o que estava acontecendo. Mas eu insisti e ela acabou o tomando de mim.
"Posso te perguntar uma coisa?" Arrisquei, enquanto ela ainda olhava a xícara sem saber se devia beber ou não.
"Claro, Al-" ela mesma se cortou. "Claro."
Eu respirei fundo, engoli a seco. Não queria chorar de novo, as lágrimas finalmente estavam começando a parar, mesmo que minhas bochechas ainda estivessem molhadas.
Mas talvez estivesse prestes a ouvir Clarissa confirmar tudo aquilo que Reid aparentemente via em mim. Tudo aquilo que eu esperava de qualquer pessoa, menos dele.
"Se você pudesse fazer qualquer coisa," eu disse, "o que faria?"
Clarissa me mirou, parecendo não precisar pensar muito. "Faria com que você nunca tivesse que chorar de novo."
Ironicamente, aquilo só me fez chorar mais. Como ela podia ser assim? Depois de tudo de cruel e inimaginável que tinha recebido de Reid, eu estava sensível demais para qualquer demonstração de bondade. Era quase doloroso poder ver que ainda tinha alguém no mundo com o coração como o dela.
Cheguei mais perto dela, buscando sua mão para segurar entre as minhas duas.
"Eu quero que você seja mais," disse. Ela franziu as sobrancelhas e eu continuei. "Quero que faça o que escolher. Não precisa ser mais minha criada."
"A senhorita não quer que eu seja mais sua criada?" Seu tom ofendido me apertou o coração e eu tive chegar ainda mais perto dela, a ameaçando derrubar o café.
"Eu quero que você possa escolher," expliquei. "Quero que possa ser juíza se quiser, primeira ministra. E eu vou te ajudar de todas as maneiras possíveis. Não quero que se sinta presa a ser minha criada para sempre."
Ela desviou o olhar do meu, franzido a testa e parecendo procurar respostas para tudo aquilo pelo meu quarto. "Mas eu não me sinto presa."
"Não?"
"Não," ela voltou a me olhar. "Eu gosto de ser sua criada," completou, sorrindo, mas com suas sobrancelhas ainda tortas de apreensão.
"Mas se você pudesse fazer qualquer coisa, é isso que faria?"
Ela deu com um ombro só, timidamente. "Acho que se pudesse ser absolutamente qualquer coisa, gostaria de poder cozinhar."
Senti uma mínima pontada de decepção, só por me confirmar que ela não queria mesmo ficar ali para sempre.
"Gostaria então de estudar para virar chef?" Perguntei, esperando ver em seus olhos aquele brilho de quem sonhava que ela já tinha usado para si mim.
E ele apareceu, acompanhado de um sorriso. "Não sei se para virar chef, chef, mas gostaria de poder cozinhar, sim." Ela suspirou, depois seus olhos encontraram os meus, uma urgência clara neles. "Mas eu teria que deixá-la?"
"Como assim?"
"Se for para eu estudar para ser cozinheira, teria que deixar a senhorita?"
Foi minah vez de sorrir triste para ela. "Me chame de você, Clare. Me chame do que quiser, mas não me chame de Alteza. E nem senhorita."
Ela concordou com a cabeça, obediente. Depois a balançou. "Não quero deixar você," falou. "Não quero ter que sair do castelo."
"Você gosta daqui?" Perguntei e ela assentiu.
"Gosto de estar perto de você," disse, um pouco encabulada. Estava bem mais focada em olhar para o café do que para mim. "Você é a melhor pessoa que eu conheço, princesa."
"Lola," falei rápido. "E como eu posso ser a melhor pessoa que você, logo você, conhece?"
Dessa vez, seus olhos encontraram os meus. "Você é boa. De verdade, em seu coração. Eu posso ver. Mas sabe se impor. Eu queria tanto ser como você!"
Ela devia estar em uma missão de me fazer chorar, pois meus olhos lacrimejaram a ponto de eu não conseguir enxergá-la. Balancei a cabeça, discordando, mas ela apertou minha mão e continuou.
"É verdade," disse. "Você é forte e decidida, mas não lhe falta bondade. E é verdadeira. Eu realmente te admiro muito, Lola," quando falou meu nome, parecia ter medo de estar errada.
Mas eu tirei a xícara dela e deixei na bandeja para abrir um caminho livre até eu a abraçá-la.
"Eu admiro você," falei em seu cabelo, a apertando tanto que achei que reclamaria. "Eu queria ser mais como você."
Ela me empurrou para olhar nos olhos. "Mas por quê?" Perguntou. "Você é bem mais do que o suficiente."
Engasguei uma risada de deboche. "O suficiente para alguém casar, dispensar e trocar por outra."
Ela me olhou séria, parecendo ser a primeira vez que ouvia aquilo. Talvez não estivesse tão claro assim para as outras pessoas do castelo.
"Esquece," falei, mas ela balançou a cabeça.
"Não. Você não pode deixar que alguém como ele te faça duvidar do seu valor, Lola," dessa vez, ela falou meu nome sem hesitar por um segundo. "Você é boa demais para se importar com o que ele diga de você."
Eu dei de ombros, desanimada. "Eu o amo, Clare. Ou amava, não sei. Mas eu acreditava que ele me amava. Eu podia jurar..."
Ela se aproximou de mim, buscando minhas mãos com as dela. "Existem pessoas pequenas no mundo, que não conseguem ver gente como você, que é forte e incrível, sem tentar roubar isso. Tudo que ele viu em você, tudo que pode ter dito que você é, são defeitos dele, coisas que ele projetou em você. Não estava mesmo falando de você, pois nem tinha a capacidade de te enxergar de verdade. Ele só estava tentando compensar pelo buraco que tem dentro dele. E você conseguiu descobrir antes que fosse tarde demais."
"Foi tão fácil," falei, quase a interrompendo. "Tão fácil ele me enganar, me fazer acreditar que eu era mesmo a pessoa mais importante no mundo para ele."
"Mas isso não é defeito seu!" Ela me defendeu. "Pelo contrário, só mostra a pureza do seu coração, de como você estava aberta a amar alguém. Tem coisa mais bonita do que isso?"
Dei de ombros, os largando logo depois com todo o desânimo do mundo. Aquilo ainda não valia nada para mim, mas é até um pouco reconfortante saber que valia tanto para ela.
"Mas e agora?" Perguntei, olhando rapidamente à nossa volta. "E agora, o que eu faço? O que eu falo? O que eu falo para todos aqueles que acreditaram junto comigo?"
"Agora, nada," ela disse, para minha surpresa. "Agora, você só respira."
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