Capítulo Único
Toques gélidos
Seus braços foram duramente puxados para trás e os pulsos, já ensanguentados das amarras anteriores, foram rodeados novamente por cordas. Presa brutalmente contra o tronco do pinheiro, a jovem sentia calafrios percorrerem sua pele, arrepiando-a. Olhou para a mulher de vestido preto, a única que ainda tinha esperanças de salvá-la daquele destino.
- Mamãe... Por favor, mamãe...
A mulher ignorou a súplica e virou o rosto. Louise se debateu, as mãos molhadas de sangue, o vestido colando nos tornozelos também manchados de rubro. Sua garganta, seca haviam dias, arranhava grotescamente com as palavras.
-... E que o Senhor, Lorde Misericordioso, transforme a dor em perdão. Senhor, escutai o chamado dessa pobre alma e perdoai seus pecados! Enquanto sua alma é lavada por meio do sofrimento, Senhor , escutai quando clamará por perdão! – O padre continuou seu sermão. – Que seu sacrifício nos forneça proteção contra os demônios que vivem nestas florestas. Rogo que nos ouça, Senhor!
A floresta ali era densa, as árvores altas, a luz da lua impenetrável. Os aldeões escutaram o padre atentamente, segurando tochas e velas para iluminar o local, porém, logo todos foram embora, jogando os últimos olhares de desprezo para a jovem amarrada. Em pouco tempo, apenas uma tocha restava, segurada por um homem alto e magro, ao lado da mulher de preto.
- Mamãe... Papai... Por favor... – Louise soluçou.
E então a tocha foi embora sobre os passos lentos do casal, que descia a colina e retornavam à pequena aldeia, seguindo o caminho feito pelas demais pessoas por entre as árvores.
Tão escuro, tão frio. Louise olhou de um lado para o outro: havia apenas as trevas. Galhos baixos roçaram sobre seu corpo, como dedos frios, o vento gelado fez sua pele ficar ainda mais sensível. Havia sombras serpenteando nas saias de seu vestido, subindo lentamente por suas pernas molhadas. Uma coruja piou, galhos secos estalaram.
Ela tentou controlar sua respiração acelerada, fazer o mínimo de barulho possível. Talvez assim pudesse se soltar das amarras antes de ser encontrada pelas bruxas. As bruxas que rasgavam a carne de todas as mulheres condenadas àquela mesma sentença, as bruxas que, às vezes, deixavam os corpos, outras vezes, apenas o sangue.
Passou a roçar as cordas no tronco. Algo quebrou à sua direita, a grama crescia, enrolando-se em suas pernas cada vez mais. Os dedos gélidos tocavam sua face. Louise fechou os olhos, tentando bloquear o escuro com escuro e roçou as amarras com mais força.
Um riso soou. Reabriu os olhos: viu uma sombra mais densa, quase humana, se movendo. Soluçou e a sombra desapareceu. Sentiu um leve carinho pelo braço, porém, quando se virou, não havia ninguém.
Rec, rec, rec, rec. A corda fazia no silêncio, as fibras embebidas no sangue rachando lentamente. Rec, rec, rec, rec.
O mesmo riso soou novamente e, dessa vez, viu duas sombras se movendo. Logo ambas riam, pareciam felizes, e Louise choramingou. Começou a suar, mesmo que fizesse frio; lágrimas escorriam junto ao suor, suas mãos pegajosas tremiam. As sombras pararam: tinham forma humana, cobertas pelo escuro, e seus pés fizeram galhos racharem quando rastejaram.
Outras formas se aproximaram. As bruxas rodearam Louise, surgindo de todos os lugares e de lugar algum. As amarras não soltavam, o suor era salgado em sua língua. O cântico começou, as vozes sussurrando em uníssono palavras longas, incompreensíveis; o vento se tornou mais forte; algo continuava rastejando por suas pernas, subindo, subindo, subindo...
Arrepiou-se, chorou, roçou a corda. Tudo doía, estava quente, estava frio. As bruxas continuaram escondidas pelas sombras, o cântico cada vez mais alto, o escuro cada vez mais opressivo. Deram alguns passos para frente, suas vozes mais claras. O odor de podre se tornou intenso, sufocando Louise até que passasse a respirar apenas pela boca. Os dedos chegaram às suas coxas, aproximando-se brutalmente se suas partes íntimas, sentindo, testando. Os toques gélidos subiam por seus braços até seu pescoço, agarrando a garganta seca, machucando-a.
Um estalo mais forte soou. Caminhando em passos bambos, uma das figuras se destacou das demais. Louise pôde ver o manto preto que cobria o corpo da bruxa, o capuz fazendo sombras ainda mais escuras sobre seu rosto. Humano, mas não humano. Crac, crac, crac, faziam os pés dela. Parecia fraca, nenhuma voz saia por seus lábios e, apoiando-se rudemente sobre um galho torto, balançava.
Arrastou o galho na terra úmida, desenhando um círculo ao redor da jovem. Crac, crac, crac. O suor parecia se transformar em pedras de gelo, a pele febril sofrendo a cada nova gota que corria pelas costas. A bruxa sumiu de seu campo de visão por alguns instantes, porém o cheiro e o som continuavam ali. O cântico, os pés arrastados, a coruja de olhos grandes que observava tudo silenciosamente. Crac, crac, crac.
O círculo foi terminado e a bruxa suspirou. Parecia em êxtase quando se aproximou. Louise esfregou os braços com mais força: podia sentir a corda prestes a se romper. Faltava pouco. Poderia correr. Rec, rec, rec. A bruxa se aproximou. Crac, crac.
A língua, seca e áspera, subiu pelo pescoço de Louise, pela bochecha e passou sobre seus lábios. Arquejando em repulsa, tentou chutar, mas estava presa. Braços e pernas, seu corpo, sua alma à mercê da bruxa. Naquele momento, podia ver seu rosto: a pele ressecada dos lábios, o sorriso demoníaco, o brilho de fome de seus olhos, os ossos da face visíveis sob a pele. Por um instante, a jovem achou o rosto familiar, porém logo a língua estava ali mais uma vez, se arrastando sobre sua clavícula. Um gemido de prazer foi ouvido.
O odor podre e o toque da boca ressecada sobre a pele se seu pescoço fez Louise agonizar. Curvou-se para frente enquanto seu estômago vazio tentava expulsar algo. O gosto amargo invadiu sua boca e mais um gemido alheio foi ouvido. Em instantes, a dor fez a jovem se contorcer, um som rouco rasgando sua garganta. Olhou para baixo, para onde seu útero um dia estivera, porém só viu a bruxa arrancar a mão de um talho profundo que jorrava carmim.
O grito finalmente saiu, um urro desesperado na noite. Rec, rec, rec. O ar sumiu de seus pulmões, os olhos piscaram para as bruxas ao seu redor, o cântico repetitivo fazendo seus ouvidos doerem, seu corpo fraco, seus pés enrugados por estarem em uma poça de sangue. A bruxa que havia arrancado brutalmente seu bebê de si estava de joelhos, os gemidos de êxtase saindo por seus lábios. Rec, rec, rec. O pequeno humano que crescia dentro de si, o motivo pelo qual Louise fora amarrada naquela árvore, seu maior pecado, seu maior amor – perdido, morto, arrancado.
A corda finalmente se rompeu e Louise caiu para frente, sobre uma poça de seu próprio sangue. Chutou e chutou, soltando-se das mãos gélidas que seguravam suas coxas. A grama soltou, ela se ergueu e correu: não sabia para onde, porém foi. Segurou sua barriga, gritou até rasgar a garganta, tropeçou, correu.
Chocou-se com uma árvore, desviou, seguiu. Seus pés descalços afundavam no musgo úmido, o sangue fazendo-os escorregarem, sentia calafrios correrem por sua pele onde a língua da bruxa havia deixado seu asqueroso traçado. Queria berrar por socorro, mas sua voz não saía mais – tinha sido suprimida por dias sem água ou alimento naquela cela imunda e gelada. As pessoas que achava que a amavam, seus pais, seus irmãos, suas amigas da Igreja: ninguém fora salvá-la antes e ninguém viria salvá-la naquele momento. Tinha apenas suas pernas bambas, seu coração ruidoso e sua respiração curta.
Era a primeira vez em meses que estava verdadeiramente sozinha, sem seu bebê como companhia. Pressionou com mais força o talhe de seu ventre, o sangue secando a cada novo passo que dava, a cada novo rajar de vento glacial. Não conseguia correr rápido, mesmo que tentasse: seus pés afundavam, seu corpo cambaleava. O cântico das bruxas se aproximava em um rastejar lento, como um verme sem pressa para capturar sua presa, permitindo que ela fugisse, que ousasse ter esperança de escapar. Era um jogo infernal.
Bambeava de um lado para o outro, as pedras cortando seus pés e os troncos ásperos torturando a palma de suas mãos. Louise, no entanto, não conseguia mais senti-los: todas as sensações haviam partido, como se a mente estivesse se afastado do corpo. Ela era um pedaço de carne sangrento, que, descontroladamente, avançava pela escuridão. Não conseguia ver qualquer coisa, nem mesmo as formas humanas que via antes, sua mente girava e a jovem não podia dizer se estava andando reto ou rodopiando sem rumo em qualquer direção.
Nada parecia sólido ou palpável. As sombras eram fluídas e as garras gélidas continuavam agarrando suas pernas: dedos e unhas enroscando-se em seus pés, detendo suas panturrilhas. A garganta estava tão seca, a língua rachando-se junto aos lábios e Louise respirava com a boca aberta, sonhando com uma única e minúscula gotícula de água – algo que fosse real, que lhe desse força para continuar sua fuga. O pio da coruja se mesclou à canção das bruxas, palavras incompreensíveis que vinham do norte, do sul, do céu, das vibrações do chão.
Parecia que dias haviam se passado. O que aparentava ser o dia chegando, os primeiros raios de sol, um motivo para esperança, foi apenas uma doce ilusão. O nevoeiro esbranquiçado escondia a terra e o topo das árvores, tão denso que não permitia alguns palmos de visão.
Louise desabou. Sentiu o frio do solo contra sua bochecha e então o toque leve, quase carinhoso, que afastou os fios duros de cabelo que estavam colados sobre sua pele. O carinho continuou, passando pelas sobrancelhas, a ponta do nariz, os lábios quebradiços. Ela mal respirava, engolindo a névoa a cada vez que tentava tragar um pouco de ar, apenas o suficiente para mover um músculo.
Conseguia ver as árvores, troncos finos e grossos, retorcidos, sibilando como cobras graças ao vento, esqueletos negros vítimas do inverno. Conseguia sentir a umidade em sua língua e abriu mais um pouco a boca, sugando o ar cheio de água e sendo invadida por ondas e mais ondas de arrepios gostosos – o carinho gelado sobre seu rosto continuava presente.
- Luctor et emergo quod vitae emim vitae, luceat lux vestra. Luctor et emergo quot vitae emim vitae naturae.
O cântico estava de volta, forte, vindo de todos os lados. Crac, crac, crac, crac. Passos quebravam os galhos secos, tão próximos que faziam o solo tremer. Arrepios de repulsa cruzaram seu corpo, um frio intenso que vinha de dentro, o estômago revirando ao sentir o odor podre, entretanto, desta vez, já não tinha certeza se vinha das bruxas ou de si mesma. Talvez estivesse apodrecendo ainda viva, talvez seria devorada por vermes antes de ser pega pelas bruxas.
Cravou as unhas no solo úmido e rastejou – estava errada, no final das contas. Ela não seria comida por vermes, ela era o verme. Continuou arrastando-se, empurrando-se para frente vez por suas pernas, vezes por seus braços. Sua visão se tornou mais clara e viu as raízes que tocavam sua pele como dedos congelados. Seu corpo não tinha peso, mas pesava mais que o mundo.
- Luctor et emergo quod vitae emim vitae, luceat lux vestra. Luctor et emergo quot vita emim vitae naturae.- As bruxas continuavam seguindo-a enquanto cantavam, as múltiplas vozes ecoando entre as árvores. Surpreendentemente, Louise passou a compreender algumas palavras, a força delas ditas ao mesmo tempo. – Viribus ad vitam. Luctor et emergo quot vitae emim vitae naturae.
Não soube como, mas a escuridão da noite retornou, levando embora a névoa. Se fosse honesta, o nevoeiro fora e retornara inúmeras vezes enquanto ela rastejava, ouvindo o cântico e os passos ao seu redor. Suas unhas tinham crescido: afiadas, grandes e imundas. Seu corpo estava rígido, emoldurado pelo sangue seco quando agarrou-se como um animal no tronco de uma árvore e fez suas pernas segurarem seu peso novamente depois de tanto tempo.
- Luctor et emergo... – Louise sussurrou.
A sede e a fome retornaram brutalmente, fazendo seu corpo urrar de dor por completo. Sentia um redemoinho em seu estômago, um oco profundo do vazio, a língua tão ressecada que sentia os pedaços de pele largarem quando a movia dentro de sua boca. O breu da floresta fazia com que tropeçasse, balançasse entre um passo e outro. O desejo desesperado de fugir havia desaparecido, substituído pela avidez por algo para comer.
Sentia o cheiro de algo bom, pulsante, vivo e apetitoso não muito longe dali. Os dedos gélidos pareciam guia-la, os galhos secos quebravam sob seus pés e sentia-se mais forte, impulsionada a diante pelo desejo de saborear algo delicioso. As palavras cantadas, antes incompreensíveis, ninavam seus passos trêmulos; as raízes rodopiavam ao redor de suas pernas, ajudando-a a se manter de pé. O cheiro bom, tão diferente do seu, estava cada vez mais perto.
O grito por socorro veio logo depois e ela continuou seu caminho naquela direção. As bruxas caminhavam com ela, as vozes acompanhando-a enquanto ela buscava o restante de suas forças para continuar, sabendo que faltava pouco, pouquíssimo.
Quando chegou, parou e contemplou, o êxtase percorrendo seu corpo em arrepios gostosos. Viu a humana ali, amarrada brutalmente no tronco de uma árvore, deixada sozinha com seus pecados, condenada a morrer. Podia ouvir o coração batendo rápido, o som vibrando pelas árvores, sentia o cheiro doce do sangue, embebido de terror e a fome fez seu estômago se revirar ainda mais.
Agiu guiada pelo instinto, por uma força maior que si, que rodeava cada árvore, cada animal e cada bruxa daquela floresta. O feitiço ganhava forma nas palavras cantadas ao seu redor, palavras que a mantiveram viva, palavras que a transformaram. Para ser completa, precisava apenas saciar aquela fome indomável.
Avançou em passos bambos, envolvida pelo manto preto dado pela noite. Seus pés quebravam galhos em um som irritante. Crac, crac, crac. Seu rosto pareceu rasgar quando abriu um sorriso, humano, mas não humano.
Parou diante da menina amarrada e aspirou o perfume doce que seu sangue carmim exalava. Tinha que agir rápido se quisesse sentir seu estômago cheio novamente, calado dos berros altos de fome e sede, então se jogou ao chão, rastejando pela última vez, desenhando com as mãos um círculo ao redor da humana presa, traçando sulcos profundos com as unhas.
- Luctor et emergo quod vitae emim vitae, luceat lux vestra. Luctor et emergo quot vitae emim vitae naturae. Luctor et emergo quod vitae emim vitae, luceat lux vestra. Luctor et emergo quot vitae emim vitae naturae.
Quando terminou, deliciou-se em passar as mãos pelo corpo ainda quente da jovem: suas mãos, seus braços, subindo por seu pescoço, pelo nariz. Ela era uma humana linda, o cabelo loiro bagunçado, a pele recoberta por marquinhas delicadas, os olhos escuros arregalados, os seios fartos subindo e descendo a cada nova respiração acelerada que ela dava.
- Louise... – Sussurrou. – S-Sou eu.
Ela fora Louise, fora humana, fora um verme, era uma bruxa. Segurou o rosto da jovem pelo queixo e lançou-se para frente, beijando-a com fome. Lambeu os lábios rachados, enroscou a língua na outra, mordeu os lábios ressecados e fartos – deliciosos – gemeu audivelmente enquanto era consumida por prazer.
Enterrou as unhas afiadas no corpo da jovem, rasgando a carne sem qualquer cuidado. Ouviu o grito dançando por seus ouvidos enquanto sentia o líquido cálido recobrir suas mãos, aquecendo-as e levando embora o frio. Arrancou-as de lá trazendo consigo um pequeno ser, não maior que a palma de sua mão, ainda aquecido depois de estar tanto tempo protegido do exterior.
Deixou-se cair de joelhos no chão e ergueu o rosto para o alto, vendo quando a jovem amarrada perdia as forças, seu corpo se tornando mole e fraco, ainda preso à árvore. Ela não era forte o suficiente para sobreviver, para entender, para ser bruxa, para fazer parte, para abandonar os abomináveis humanos para trás.
- Veni, vidi, vici. – Sussurrou, o pequeno ser quente em suas mãos, as unhas sobressaindo pintadas de vermelho. – Luctor et emergo.
O feitiço estava terminado. Ergueu as mãos à boca e calou sua fome.
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