Vermelho - CAPÍTULO SETE
"Mas quando a gente fica vermelho, não é o mesmo que dizer 'sim'?"
O Pequeno Príncipe
Meu pai Luiz sentou na minha frente e observava minha tela mais recente. Eu me perguntava o motivo. Era uma tela igual à todas as outras o que mudava era a pintura. Algumas lágrimas brotaram em seus olhos. O que será que ele tinha visto? Será que estava tão ruim que ele chorava de pena por algo que eu tinha feito?
Levantei de onde estava e dei a volta por trás dele. Espiei a tela por cima do ombro de meu pai, quem sabe assim eu pudesse ter outra visão da minha própria tela. Não. Para mim era a mesma tela. Eu não fiz uma pintura com imagens, apenas algo abstrato. Eu conseguia caminhar em duas formas de pintura. Cada artista tinha seu traço único, é claro, mas no meu caso eu gostava de deixar que os sentimentos aflorassem. Já fiz telas com paisagens e já fiz telas com apenas círculos suspensos no ar.
Para o fundo eu misturei dois tons, vermelho e laranja. O que causou um fim de tarde. Fiz uma elipse amarela e filetes na cor verde que davam a impressão de serem raízes saindo de um limão siciliano. Coloquei uma silhueta na cor azul índigo próximo da elipse amarela. No céu, salpiquei um pouco de tinta com tons pastéis. Meu pincel trabalhou bastante nessa tela, aos pés da silhueta havia algumas pétalas na mesma cor que a elipse.
— Pai, o que foi? Está feio? — perguntei curioso. Não tinha ficado triste com a reação dele, só interessado mesmo.
— Não meu filho, está... lindo! Eu não sou um intérprete das Belas Artes, mas tá sensacional.
Luiz me deu um abraço bem demorado. Normalmente eu não ligaria, mas eu estava com meu macacão de pintura. E ele estava sujo com tinta fresca.
— Pai, você vai se sujar... — murmurei enquanto tentava, sutilmente, me soltar dele.
— Não tem problema, meu amor. O papai não liga, eu só quero ver você feliz. E parece que isso já está acontecendo.
Meu coração deu um salto. Como assim?
— Do-do que você t-tá falando, pai? — gaguejei.
— Ah, não sei, você que deveria me dizer. Desde que você pintou aquela parede na escola, que você anda diferente. — Luiz respondeu sorrindo e limpando as lágrimas de seus olhos. — Tem algo que você queira me dizer?
— N-não, t-tá tudo ce-certo — respondi com outra gagueira. Que droga! O que está acontecendo comigo?
— Se você diz, eu acredito, mas se algo acontecer. Vou estar aqui para te ouvir, sempre.
Eu engoli em seco e sacudi a cabeça positivamente. Ok. Preciso guardar essa tela no meu ateliê. Eu tinha uma parede com mais de vinte telas que eu mesmo pintei. Meu pai, Antero, vivia insistindo para que eu organizasse um leilão. Mas eu pensava comigo, quem iria num leilão para comprar quadros de um garoto de quase dezesseis anos? E eu nem era um pintor conhecido, afinal eu não saía de casa para definitivamente nada. Só não chovia quando eu saía de casa, porque eu voltava tão rápido que não sobrava tempo para as nuvens se organizarem.
E eu também não pintava meus quadros para vender, eu queria apenas deixar minhas mensagens, meus sonhos e meus mundos.
— Ouvir o quê? — Ouvi quando meu Pai Antero entrou na sala carregando sua mochila apenas pelo ombro direito.
Nas mãos ele trazia uma pasta com muitas provas para corrigir e na outra o seu notebook. Meu pai e eu fomos ao encontro dele.
— Eu já te disse que isso vai fazer mal pra sua coluna — disse Luiz e deu um beijo rápido em meu pai, que retribuiu o afeto com um sorriso.
Ver meus pais trocando um carinho não me causa espanto. Ao contrário de muitas outras pessoas, que abominam isso. Só que é apenas um gesto de carinho, de amor. Coisa que até mesmo entre um casal constituído por um homem e uma mulher, às vezes pode não significar nada. Entre meus pais, havia muito significado. Havia uma história. E eu encarava tudo tranquilamente. Um beijo é um beijo. Nada além disso.
— Depois eu que tenho que ficar aguentando você reclamando. — Luiz continuou.
Eu ri. Meus pais sempre tinham essas pequenas tretas. Nada que pudesse ser considerada uma discussão séria. Eles quase nunca brigavam de uma forma tão intensa. Não que eu me lembre, mas lembro que eles me falaram que antes de me encontrarem e irem morar juntos, meu pai Antero discutiu bem feio com meu pai Luiz. Pelo que soube, o motivo tinha sido um garçom de um restaurante que ficou dando em cima dele na maior cara de pau.
Se meu pai Luiz não tivesse interferido rapidamente, meu Pai Antero teria brigado com o garçom. Isso aconteceu uma semana antes deles me encontrarem. E ao que parece eu trouxera mais união para os dois. Do tipo que brigavam por pouca coisa, como o queijo que ficou destampado sobre a mesa ou o chinelo que ficava virado. Luiz viveu a adolescência inteira numa cidade do interior de São Paulo. Ele veio para São Paulo para estudar Engenharia Civil e acabou se formando em Gestão de Empresas. Foi assim que conheceu meu pai Antero. Ambos estudaram na mesma universidade.
— Amor, o tempo que você desperdiça brigando comigo deveria ser convertido em uma ajuda — Antero disse em resposta.
— Ué, mas não é você que é o fortão da casa? — Luiz debochou e me fez rir alto.
— Então agora os dois vão ficar contra mim? — Ele brigou com nós dois e fomos ajudá-lo.
Eu peguei o notebook e papai pegou a pasta com as provas. A pasta estava prestes a explodir de tão cheia, então ele teria um trabalho e tanto no final de semana. Coloquei o notebook sobre o sofá, do lado esquerdo que era onde meu pai adorava ficar para trabalhar.
— E sobre o que vocês estavam falando antes de eu chegar? Não me responderam.
— Ah, verdade amor. Olha o que o Gim fez. — Senti um calafrio ao ser chamado de Gim.
Antes me chamavam de Jorgim e isso acabou pegando, tempos depois abreviaram somente para Gim. Luiz pegou Antero pela mão e o levou até onde minha tela estava. Aquela cena me pareceu familiar, mas eu não me lembrei de onde.
Meu pai Antero pegou a tela e a levantou na altura dos olhos. Analisou por alguns segundos e depois olhou para mim novamente. Me observou por um tempo e voltou a olhar para a pintura. Olhou para Luiz e sorriu com o canto dos lábios.
— Isso seria um bom sinal? — ele perguntou e meu pai Luiz assentiu concordando com ele. Mas eu não entendi.
— Será que vocês podem me explicar o que está acontecendo? O que tem de errado com a minha pintura?
— Não tem nada de errado — respondeu Luiz. — É que você usou bastante vermelho e amarelo na mesma tela.
Isso é óbvio, agora qual a surpresa? Não perguntei isso, iria soar muito grosseiro.
— E o que tem? — indaguei. Ainda assim pareceu grosseria da minha parte.
— Gim... — Antero meu chamou, eu quis fingir que não era comigo. — Você precisa olhar uma coisa.
Ele me indicou o andar de cima. Foi na minha frente e meu pai Luiz me empurrou. Sim, fui empurrado, pois fiquei momentaneamente assustado para onde ele me levaria. Encorajado por meu pai (leia-se forçado) o segui. Paramos em frente ao quarto deles. Achei que eles me levariam ali. Só que seria muito estranho, porque era um terreno que eu deixei de pisar fazia alguns anos. Se bem que a essa altura tudo seria possível. Para minha contradição, eu fui levado por eles para o meu próprio ateliê.
— Hã, o que fazemos aqui exatamente? — perguntei ao entrar na frente deles.
Era um pouco bizarro, mas havia uma regra que eu tinha estabelecido desde que comecei a pintar. Me comprometi a limpar o ateliê sozinho, com a condição de que ninguém iria entrar quando eu estivesse pintando ou mesmo que o cômodo estivesse vazio. E em hipótese alguma alguém entraria na minha frente. Eu considerava aquele espaço só meu. Totalmente sagrado. Meus pais cruzaram a porta um atrás do outro, depois que esperaram eu entrar primeiro.
— Você não tem nem uma ideia? — Antero questionou ao olhar pra mim com olhar curioso.
Levantei os ombros sem saber.
— Filho, olhe ao redor. — Meu pai Luiz recomendou. Ele se apoiou no batente sorrindo e cruzou os braços.
Fiz como pedido. Girei no lugar admirando as telas que eu tinha pintado, tanto as pequenas, quanto as maiores. Não vi nada de diferente nelas, olhei para meus pais e os dois sorriam. Que droga! Por que eles não podem me dizer logo de uma vez o que está acontecendo?
— Pai — chamei por Antero, ele me olhou. — Papai — falei com Luiz, que se endireitou e me encarou curioso.
Essa é até uma forma interessante de eu me referir a eles. Já que Antero é mais sério do que Luiz.
— Eu não sou um detetive para adivinhar os joguinhos de vocês — eu disse de forma tão inconsciente que ambos explodiram em risadas. — Ah não, qual é! Do que estão rindo agora?
— Desculpa meu amor, mas é que você não costuma falar assim com a gente — papai comentou. — Você ficou fofo assim, zangado. Antero, fala pra ele.
— Certo, querido, venha aqui — meu pai me chamou e fui em direção a ele. — Você pintou muitos quadros. Alguns você levou para seu quarto e alguns não.
Isso era verdade. Eu praticamente tinha um quadro novo a cada semana. E foram tantos que não couberam dentro do meu ateliê. Minhas telas eram todas especiais e eu queria tê-las por perto, contudo não dava para manter todas juntas. Meus pais até mandaram construir um outro local para eu colocar as telas mais antigas. E conforme eu fosse fazendo mais telas, eu as remanejava para esse outro cômodo que era muito mais espaçoso.
— Agora, olhe bem para as telas que estão aqui. O que elas têm em comum? — ele me perguntou. Então olhei mais uma vez para os quadros que eu pintei.
Ele tinha razão. Nenhuma se parecia. Eram diferentes no contexto, mas as cores eram sempre as mesmas. Azul, roxo e verde. Até tinham branco e preto, só que poucas telas tinham cores mais vibrantes. E ainda assim, elas eram bem ínfimas perto das outras cores. Meu pai me entregou a minha pintura outra vez. Com passos calculados, eu a coloquei no cavalete. Passei os dedos para sentir a textura das tintas. Fez cócegas em minha pele. A sensação era incrível.
Por fim, eu enxerguei o que meus pais quiseram dizer. Eu abusei de cores vivas e quentes. Tinha vermelho e laranja aos montes. Afinal de contas, um fim de tarde não se faz só com azul e roxo. E também tinha os tons de amarelo. Mordi o lábio inferior. No momento que eu fiz a dança com meu pincel sobre a tinta de cor amarela, não pensei bem o que eu iria criar. Tampouco sei o que me levou usar cores alegres. Mas era bom para variar das cores frias.
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