Vermelho - CAPÍTULO OITO
Papai corria de um lado para o outro. Ele se atrasou para o trabalho e agora não sabia o que fazer primeiro.
— Luiz, tenha calma. Assim você vai passar mal. — Meu pai tentou acalmá-lo, mas parece que foi pior.
— Como quer que eu me acalme? Hoje tenho uma reunião com aqueles fornecedores terríveis do Rio Grande do Sul. O trânsito vai estar horrível. Seria melhor pegar um táxi? — ele falava mais consigo mesmo do que com meu pai. Eu tomei um susto quando Papai gritou do nada — Ah! Eu ainda preciso comprar as coisas para o seu aniversário, filho.
— Papai, está tudo bem. Hoje ainda é quarta-feira, e meu aniversário vai ser só no sábado. — Lembrei-o para que ele se tranquilizasse. O que não adiantou muito. — E não sei porque vocês ainda insistem nisso, eu já disse que está tudo bem se só fizermos uma janta. Somos nós três sempre.
— Você bem que poderia convidar alguém dessa vez — Antero, meu pai, insistiu mais uma vez.
Meus pais sempre faziam uma festinha para mim, e não importava o quanto eu implorasse para não fazerem, eles faziam. E meu pai sempre me pedia para trazer alguém. E eu como sempre não trazia ninguém. O resultado era o mesmo anualmente. Um bolo grande demais para três pessoas. Muito refrigerante para mim, meus pais tomavam vinho e ficava tudo bem para eles. Claro, no domingo os dois dormiriam horrores. Era sempre assim.
Porém, nesse ano eu pensei que talvez pudesse chamar alguém. Ainda não sei quem. Até então eu só tinha conversado com duas pessoas na escola. E nem era algo que pudesse ser chamado de conversa. Será que Arthur e Tadeu se conheciam? Ou eu teria que tirar no par ou ímpar para escolher um deles? Não, melhor não. Eu poderia me sentir culpado caso um dos dois ficasse sabendo. O melhor era não convidar ninguém.
— Vou ver, qualquer coisa eu aviso.
Essa frase era muito útil. Bem sabíamos que ela indicava que nunca que eu iria convidar. E meus pais conheciam o significado da frase. Já estavam acostumados comigo. Não foi diferente nos últimos quatro anos, desde o último aniversário. Quando eu ainda socializava e não imaginava que amigos próximos poderiam se tornar desconhecidos distantes.
*****
A aula de Geografia tinha terminado e a professora estava saindo da sala carregando mais mapas do que eu conseguia contar. Fui surpreendido por Arthur que me encurralou contra a minha mesa. Ele me observava como se eu fosse um alienígena. E eu poderia ser mesmo, só que isso é coisa para outro dia. Meu colega estava tão perto que a respiração quente dele chegava até mim. Me afastei um pouco.
— O que foi? — perguntei.
— É exatamente isso aí — Arthur apontou para mim. Eu sacudi a cabeça, claramente sem entender. — Desde quando você fala?
— Eu sempre falei. Só não gosto de conversar.
— Mas isso é um absurdo! — exclamou zangado. Eu quase quis rir da atitude dele.
Arthur, que puxou sua cadeira para sentar ao meu lado, ficou emburrado e resmungando com ele mesmo. Dizendo que eu deveria ter falado com ele antes. E que agora o mistério sobre eu ser um vampiro poderia estar arruinado. Para início de conversa eu nunca tinha confirmado que era e nem que não era. O que obviamente não sou. Se tenho algo para esconder, não é isso.
— Buongiorno ragazzi! — Escutei uma voz muito familiar vir da porta, mais familiar ainda por começar a frase em italiano.
Meu pai entrava pela porta com algumas pastas debaixo do braço. Ah não. Isso não poderia ser bom. E nem lembro de essa ser a aula de Matemática. Claro que ele fez questão de explicar antes que alguém perguntasse, até pensei que meu pai tinha lido meus pensamentos.
— Pessoal, antes de eu me apresentar. Quero dizer que o professor de educação física de vocês vai se atrasar, então ele pediu para a coordenação trocar de aula.
Meu pai me viu, porém agiu como se eu fosse um completo desconhecido. Eu não precisei perguntar o que ele fazia ali, já que ele também respondeu sem que eu ou qualquer outro aluno da sala perguntasse.
— Agora que já dei o recado, mi chiamo Antero. E vou substituir a aula de Matemática de vocês hoje — o sotaque italiano de meu pai era um horror, mas eu não dizia isso para ele. — Não se preocupem, vai ser só por hoje. Não vão ter que me ver outra vez, então prometo ser bonzinho com alguns de vocês.
Ele olhou para a sala e parou seu olhar rapidamente em mim. Depois continuou. Perguntando ao menino da frente o quê é que tínhamos para fazer. Arthur estava atento no professor, isto é, em meu pai. Joguei a cabeça entre as mãos. Essa aula seria longa.
***
Que droga!
Não me perguntem o porquê de eu estar furioso. Acho que nem mesmo eu sei. Eu sei apenas que não deveria ter vindo para a aula hoje. Ah é, lembrei a razão da minha ira. Meu pai viera substituir uma aula na minha escola. Ele sabe como eu me sinto sobre ele me dar aulas fora de casa. Pelo que soube, não foi só na minha sala, já que a professora que tinha faltado hoje também dava aula em outras classes.
Arthur estava ao meu lado durante o intervalo. Ele me olhava com medo, talvez fosse o fato de eu estar mordendo o hambúrguer com mais força do que era necessária.
— Cara, vai com calma. O pão é feito de trigo, não de aço. — Me aconselhou. Eu ignorei e mordi o pão com mais força ainda. — O que tá pegando?
— Meus pais vão fazer um aniversário pra mim, querem que eu chame alguém e eu não sei o que fazer ou quem chamar — respondi depois de engolir o pedaço de carne.
Estou impressionado. Essa é a frase mais longa que eu já pronunciei até agora. Melhor eu voltar para o meu lanche.
— Ei! E eu aqui? Me leva, somos amigos, não somos?
Eu não disse nada a Arthur. Só que o conceito de amigo foi erradicado do meu dicionário alguns anos atrás, quando eu pensava conhecer as pessoas que ao meu redor se diziam ser minhas amigas. Relembrar a dor da traição fez os fragmentos se agitarem dentro de mim. Alguns esbarraram numa ferida. Não foi legal.
— Vai ser no sábado lá pelas quatro da tarde. Te passo o endereço depois.
Eu não confirmei que o considerava um amigo. Arthur comemorou levantando as mãos para o alto com o punho fechado. Olhares se voltaram para nós e eu quis me enfiar debaixo da mesa.
— O que tá rolando aqui?
Tadeu perguntou ao se aproximar de nós, poucos metros atrás dele vinham seus colegas do time. Estavam ocupados flertando com algumas meninas. Tadeu, no entanto, estava sozinho. Os fragmentos pararam. O tom vermelho do boné que ele usava me lembrou do céu crepúsculo da minha tela.
— E aí cara! — Arthur cumprimentou Tadeu com um aperto de mão estalado. — Você já conhece o Jorge?
— Sim, o Rico acertou uma bolada nele uma vez. Depois a gente se esbarrou algumas vezes.
Ótimo. Tadeu tinha que falar para Arthur que eu tinha levado uma bolada no meu primeiro dia. Agora esse tagarela iria torrar o meu saco querendo saber o que tinha acontecido. Notei que ele me olhou atento, esperando que eu dissesse algo. Franzi o cenho e sorri desgostoso. Pela expressão dele, eu teria que falar sobre o acontecido mais tarde. Tomara que eu consiga manter a boca calada.
— Mas e o que tu tava comemorando? — perguntou Tadeu para Arthur.
— Jorge disse que os pais vão fazer uma festa de aniversário para ele no sábado e acabou de me convidar.
— Eu posso ir também? — suplicou ele.
Tadeu fez uma expressão esquisita. Havia um sorriso com o canto do lábio e os lábios dele se transformaram num biquinho. Fiquei sem saber o que fazer. Alguma coisa se moveu dentro de mim e não eram os fragmentos que colocavam minhas feridas em ameaça. Era outra coisa, ainda não sei bem o que. Meu rosto deve ter ficado da mesma cor que o boné dele. Arthur e Tadeu riram quando eu assenti a cabeça tantas vezes que até fiquei tonto.
— Top! Que horas vai ser? — Tadeu indagou e passou o braço em volta de mim e me apertou contra ele.
Eu fiquei um tempo sem esboçar nenhuma reação. Aquele contato dele era diferente. Quando ele estava perto, eu sentia que os fragmentos se afastavam. Vi as cores desaparecendo. Só restou Tadeu e eu. Então as cores do crepúsculo surgiram ao longe. Era como se minha tela estivesse criando vida diante de mim. A pintura se movia ao meu redor. Depois de alguns segundos eu saquei o que meus pais quiseram dizer sobre estar usando cores quentes e mais vivas.
Era o contato com as pessoas que trazia isso. Comecei a usar amarelo desde que o coordenador pedira para eu fazer a tela na parede, todavia isso era o de menos. Parece que a cor só se tornou uma parte importante nas minhas telas depois que eu vi Tadeu usando uma camiseta dessa cor. E agora o vermelho, que eu usara antes e ele usava no boné. Ainda não conseguia entender com clareza, mas parecia que as cores sempre tinham muito mais significado para mim.
— Jorge? Você está aí dentro? — Tadeu bateu em minha cabeça como se ela fosse uma caixa, depois esfregou meu cabelo suavemente.
Aquilo que era o oposto dos fragmentos se agitou em mim. Era uma sensação boa. Era a mistura do frio na barriga e das explosões de fogos em meu estômago. O que está acontecendo?
— Q-quatro ho-horas — balbuciei.
— Tranquilo, sei onde fica tua casa. — Tadeu disse e me soltou. E foi como se eu sentisse frio depois que ele fez isso.
— Como assim você sabe onde ele mora? Nem eu sei — Arthur reclamou histérico.
Só ouvi Tadeu mencionando a pracinha ao lado de minha casa. Deixei de ouvir a pequena discussão deles pouco depois. Fiquei pensando o quanto foi estranho e acolhedor ficar dentro do abraço de Tadeu. Eu já tinha ouvido falar que o melhor lugar para se estar era dentro de um abraço. Podia ser verdade, só que a sensação era bem diferente. Não era como eu me sentia quando abraçava meus pais. Um tipo de onda quente ficava perto do meu coração e me fazia querer sorrir. Que droga! Eu odeio não saber o que está acontecendo.
— Jorge, a gente se vê por aí — Tadeu se despediu e bagunçou meus cabelos. O toque dele fez a onda aquecer meu coração outra vez. — Até sábado.
Ele bateu a mão no ombro de Arthur e se foi. Eu não consegui mais falar frase alguma. Meu colega disparou uma torrente de perguntas sobre o jogador de vôlei. Nem me lembro da primeira pergunta. Meus olhos estavam focados em um ponto vermelho que caminhava em direção às escadas que davam acesso ao prédio da escola. Eu ainda conseguia sentir o calor do abraço de Tadeu. Eu ainda era capaz de ver a minha pintura tomando forma ao redor de nós dois.
Em algum recôndito do meucoração, eu quis sentir o abraço dele novamente.
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