Cinza - CAPÍTULO DOZE
Ao meu redor eu conseguia ver algumas bolhas cinzas flutuando. Pensei que seriam coloridas e feitas de sabão. Provei o gosto amargo de ser contrariado ao entender que elas eram feitas de uma névoa opaca e sem vida.
Além de não serem coloridas, essas bolhas tinham outra diferença das feitas de sabão. Dentro delas não existia apenas ar. Quando se rompiam elas soltavam gargalhadas que permaneciam no ambiente. Me pressionando cada vez mais contra o canto da parede na qual eu me sentei.
Abracei meus joelhos e comecei a me embalar. As imagens e sons daquele dia não iriam me deixar em paz nunca. Tapei os ouvidos. Não queria ouvir as risadas de escárnio que ecoavam à minha volta. Tentar usar o ateliê como um refúgio não adiantou muito. As cores tinham desaparecido de todas as minhas telas. Eu só enxergava o cinza.
Aquela mesma cor que me fez conhecer o mundo por trás das infinitas cores alegres. Sombras se levantaram do chão e saíram de trás dos quadros. Formaram silhuetas humanas. Se arrastavam até mim e apontavam com braços e dedos deformados. Era como viver um pesadelo acordado. Apertei meus olhos com força. Não queria ver aquilo. Não queria ouvir as risadas e aquelas palavras que acionaram os fragmentos dentro de mim, fazendo com que eles girassem num turbilhão tão intenso que abriu novas feridas e atingiu as antigas.
— Gim, meu filho. Saia daí! — Ouvi a voz do meu pai Luiz.
Ele batia na porta e girava a maçaneta. Meu pai Antero também estava com ele. Nenhum dos dois vai tentar arrombar a porta, sei disso, porém eu não queria falar com ninguém. Nem mesmo com as únicas pessoas que eu tinha absoluta certeza que nunca me julgaram, nunca me rejeitaram. As únicas pessoas que de fato me amavam e se importavam comigo.
Eu apenas queria ficar sozinho.
Me deitei no piso frio e com o rosto voltado para a parede. Me encolhi ao máximo, se eu diminuísse o tamanho do meu corpo talvez pudesse comprimir a dor e faria com que ela desaparecesse. Fechei os olhos para não chorar. Não me dei conta, mas após um tempo adormeci.
*****
A semana do meu aniversário já era a próxima. Eu tinha feito a lista com o nome de todos os meus amigos para convidar. Meus pais disseram que eu podia convidar quantos eu quisesse e depois passasse a lista para eles entrarem em contato com a empresa de festas. Eu estava muito animado, já que iria fazer doze anos e finalmente iria poder jogar aquele jogo de fantasia que tinha limite de idade.
— Carla, você quer ir na minha festa de aniversário? — perguntei à uma das meninas da minha sala.
Ela jogou o cabelo para trás e fez que sim com a cabeça. Carla não gostava muito de conversar com ninguém, mas eu queria que ela fosse e pudesse se divertir. Nisso convidei todos os amigos que eu tinha na sala.
— Jorge, o que vai ter na sua festa? — Meu amigo Felipe perguntou.
— Não sei, meus pais falaram que vão ver quantas pessoas querem ir. Daí acho que mandam fazer as coisas.
— Que daora, cara! — disse ele animado. — Tomara que tenha brigadeiro, eu adoro brigadeiro.
Nós dois rimos. Fiquei pensando em chamar meus amigos que estudavam em outras salas. Expliquei a eles que não precisavam levar presente nenhum. Eu apenas queria comemorar com eles. Torcendo para que tivesse quente e a gente pudesse usar a piscina. Ainda que fosse complicado para mim eu poderia usar uma bermuda comprida. Ninguém iria ver.
— E aí criançada, prontos para jogar Queimada? — A professora Lilian entrou toda animada na sala de aula.
Eu estava tão empolgado que tinha esquecido totalmente que teríamos duas aulas de educação física. Pedro, um dos meus colegas que sentava na frente perguntou se não iríamos jogar futebol. Ela esclareceu que não, pois tinha surtado durante o café da manhã e queria fugir do cronograma escolar. Metade da sala riu.
— Então vamos pra quadra que faço a chamada lá mesmo — proclamou e fez com que todos nós guardássemos o nosso material.
Chegamos na quadra e respondemos à chamada de forma bem rápida. A professora Lilian disse que mudou de ideia e deixaria a Queimada para a segunda aula. Na primeira poderíamos jogar o que quiséssemos desde que parássemos para descansar quando ela ordenasse. E assim aconteceu.
Então nos dividimos e formamos quatro grupos, dois de meninos e dois de meninas. Ambos queriam jogar futebol, então combinamos de revezar a quadra em dois jogos de vinte minutos para poder termos um descanso de dez antes da segunda aula. Tirando no par ou ímpar, nós meninos perdemos e tivemos que nos entreter com outra coisa enquanto as garotas jogavam.
Depois que o tempo acabou, fomos jogar. Eu gostava de ser goleiro, já que assim a minha condição fisiológica não seria exposta. Meus amigos ainda não sabiam, mas eu não era igual a eles. Pelo menos não totalmente igual. E no gol eu poderia ficar mais tranquilo.
Minutos mais tarde a segunda aula começou e nos reunimos para jogar o que a professora tinha estipulado. Essas foram duas aulas das mais incríveis que eu já tive em toda a minha vida.
— Certo pessoal, vitória das meninas — anunciou a professora Lilian depois que eu fui o último a ser eliminado com uma bolada na coxa. — Vocês têm quinze minutos para tomarem um banho e se trocarem para o intervalo.
Essa não, eu me esqueci dessa parte. Eu nunca tomava banho junto com os meninos. Comecei a caminhar para conversar com a professora. Mas meus amigos me pegaram pelo braço e me puxaram para o banheiro.
— Vamos logo, Jorge. Tá quase na hora do intervalo. — Felipe me pegou por um braço e Pablo me pegou pelo outro.
— Não, eu preciso falar com a professora — falei e tentei me soltar, mas foi inútil. Eles eram maiores e mais fortes do que eu.
Ser um dos menores da sala nem sempre é vantagem.
— Jorge, você nunca toma banho com a gente. Somos todos meninos, cara!
Eu não queria discutir isso com Felipe e nem com ninguém. Meus pais tinham explicado muito para mim que eu ser diferente não era errado, só que nem todo mundo pensava assim. Depois de muito conversar com a diretora da escola, eles tinham conseguido que, após as aulas de educação física, eu tomasse banho em um banheiro privativo dos professores. Contudo, hoje não deu tempo.
— Não gente, eu tenho vergonha... — resmunguei me encolhendo para longe deles.
— Larga mão de ser mariquinha. — Pablo me puxou para baixo de um dos chuveiros. — Vem galera, vamos dar um banho no medrosinho aqui.
Os meninos da minha sala começaram a fazer bagunça no banheiro e correram para ajudar ele. Eu tentei escapar, mas me seguraram. Me esperneei, gritei e nem assim me soltaram. Tiraram minha camiseta e meu short. Quando me viram só de cueca eles ficaram curiosos, pois notaram que faltava alguma coisa.
— Mano, o que tá acontecendo? — perguntou um deles para Pablo, que me olhou confuso e sem saber o que dizer.
Com as mãos eu cobri a frente da minha cueca.
— Jorge, porque não tem nada aí? — Felipe perguntou.
— Tem sim, é que... é que está frio — gaguejei quase chorando. — Gente, eu tenho vergonha.
— Vamos ver isso aí! — Pablo gritou e fez sinal para dois garotos me segurarem.
Comecei a gritar por socorro, mas ninguém veio. Os meninos tinham fechado a porta para ninguém entrar enquanto eles iriam tomar banho. Tentei chutar os garotos que me seguravam, só que não consegui. Pablo veio até mim e puxou a minha cueca de uma só vez. Ele deu um grito e caiu no chão, se afastando de mim assustado.
— O que é isso, cara? — Felipe perguntou horrorizado e alterado. Os meninos abaixaram a cabeça para ver o que o assustou.
— Credo, você é menina? — perguntou um deles.
Não sei quem começou a me chamar de "aberração", de "coisa nojenta" e de tantos outros nomes que nem me lembro. Eu desabei em choro e nem vi quando o sinal para o intervalo soou. Dentre os meninos eu era o único que estava sem roupas.
Naquele momento eu soube que seria mal falado na escola inteira. Meus pais um dia me disseram que isso poderia acontecer. Eles também tinham dito que seria bom eu socializar. Conhecer outras crianças e ter uma vida normal, pois eu era normal. Eu sou normal. Só que depois de tantas palavras carregadas com ódio cheguei a acreditar que de fato eu não fosse normal.
De joelhos e cobrindo o lugar onde eu deveria ser igual a eles, eu me sentia muito mal. Achei que iria vomitar. Depois que tinham gritado horrores comigo e me olhado como se eu fosse um monstro, achei que iriam me deixar em paz. Vi que tinham aberto a porta e pensei que eu estava livre das mãos deles. Me enganei. Do lado de fora havia algazarra e correria. Era o horário do intervalo.
Ao que Pablo veio e começou a me puxar pelos braços, entendi que as pessoas podem ser cruéis desde muito cedo. O piso do banheiro era gelado, fui arrastado até a porta e levado para o lado de fora. Ele começou a gritar para que todo mundo viesse ver a "aberração de circo" que estava na escola. Não demorou muito para que eu fosse exposto em público para todas os alunos da escola. Os que estavam no mesmo ano que eu e os mais velhos me olhavam e comentavam. Alguns riam e outros gritavam algumas palavras que me faziam querer desaparecer.
Pablo entoava duas palavras e encorajava a todos a gritarem. Embalados pelo garoto que me expunha, eles gritavam. Monstro. Aberração. Palavras que me feriam cada vez que eram ditas e que chegavam até meus ouvidos.
Centenas de vozes repetindo coisas me feriam. Me estilhaçavam por dentro.
E assim foi até que umfuncionário conseguiu me resgatar. Mas já era tarde demais. Por dentro eu mesentia quebrado, com milhares de fragmentos que iriam me cortar sempre. Mesmosem ver quem era, ele tirou sua jaqueta e colocou sobre mim. Fui levado para adiretoria, onde minutos mais tarde fui buscado por meus pais e nunca maisvoltei para aquela escola.
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