Amarelo - CAPÍTULO SEIS
Pela misericórdia de alguma divindade, não fui acertado por uma bolada de vôlei. Arthur me arrastou para os jogos. Uma semana depois do festival, tinha começado a Competição Interclasse de Vôlei. Apenas os times de vôlei das salas competindo umas com as outras. Depois que acabasse, aconteceriam os Jogos Regionais, onde o time oficial é que iria competir com outras escolas. Eu fiquei muito zangado quando meu suposto amigo começou a rir quando eu quase recebi o golpe vindo de uma manchete dada por um dos jogadores.
— Velho, essa foi ótima! — Ele gargalhava. Alguém atrás de nós arremessou a bola de volta para a quadra.
— Pra você sim, né? — murmurei.
Arthur me olhou boquiaberto. Eu olhei para minhas roupas e toquei minha cabeça. Será que eu poderia estar sangrando? Levei a bolada e não percebi? Então me dei conta de que eu tinha falado com ele. O que me levou a também achar meu comportamento estranho. O que diabos estava acontecendo? Eu não falo com as pessoas. Tenho que me afastar. Se as pessoas se aproximam de mim eu me machuco. Isso é fato. Voltei a atenção para o jogo. Meu amigo ficou calado e voltou seu olhar para o jogo também.
Com o canto dos olhos eu percebia que ele me analisava curioso.
Ótimo, agora eu assustei ele ainda mais. Se bem que também não fazia muita diferença. Ele é que me arrastava para fazer tudo e Arthur tinha aceitado bem que eu não falava com ninguém, nem mesmo com ele. Deixei escapar por um momento, mas está tudo bem. Eu vou retomar o controle. Não sei o que me motivou a falar com ele. E não vou deixar isso me abater e nem tomar conta de mim. Vamos fingir que nada aconteceu. Quem sabe eu não devesse me afastar dele também? Seria ótimo. Assim eu não correria o risco de me envolver, afinal parece que já estou interagindo demais e isso não vai acabar bem.
— Rico, mano, tu acha que eles podem jogar com a gente? Olha aquele moleque, não sabe nem levantar uma bola.
Escutei quando alguém fez um comentário sobre o jogo. Virei minha cabeça de leve para a esquerda e vi quando Tadeu e seus amigos do time oficial chegaram. Não tinha sido ele que fizera o comentário. Não lembro o nome do garoto que falou, mas todos riram. Ao lado de Tadeu estava a mesma menina que eu vira no sábado. Ver os dois juntos me deixou esquisito. Espero que ele não tenha me visto, vou sair daqui. Não preciso interagir com mais ninguém e sei que Tadeu iria querer falar comigo. E eu estava tão disposto a conversar quanto uma preguiça a se mover.
Arthur fez menção de se levantar e vir comigo, eu chacoalhei a cabeça negativamente. Queria e precisava ficar sozinho. Eu pensava bem melhor sobre mim se eu estivesse apenas comigo mesmo.
A primeira aula após o intervalo foi suspensa pelo diretor, na semana em que os jogos estariam acontecendo, para que a escola pudesse torcer pelo time. Nada que colocasse o rendimento escolar em dia. Eu teria que esperar pela próxima aula de Inglês debaixo do Ypê amarelo que tinha perto da biblioteca. Ainda faltava um bom tempo até que o quarto período acabasse. O bom é eu me sentar lá e ficar quietinho. Pensando se tanta interação faria bem para mim. O que eu duvidava que pudesse acontecer.
Admirei a árvore com flores amarelas. A brisa fresca da manhã sacolejava as flores delicadamente. Me sentei no gramado, debaixo de sua sombra. Recostei a cabeça no tronco áspero. Ondas amarelas inundaram minha mente. Me lembrei da minha pintura. Ela ainda estava lá, o coordenador optou por deixá-la por alguns meses para prolongar a campanha. Nunca tinha mostrado minha arte para ninguém e de repente eu me vi pintando uma parede inteira, e ainda por cima fiz isso na frente de várias pessoas. A lembrança das pinceladas me fez sorrir.
Outra coisa que eu não tinha o hábito de fazer fora de casa. E lá também era um evento raro. Meus pais já tinham entendido, apesar de que faziam de tudo para me arrancar algum sorriso, o mínimo que fosse. E quando eu o fazia, para eles era uma festa. Não os culpo por isso. No fundo eu sentia que talvez a culpa fosse totalmente minha. Mas eu não ficava pensando muito nisso. Esses tipos de pensamentos trazem a cor cinza para perto de mim, como já trouxeram antes. Aprendi naqueles dias como é horrível ver o mundo em apenas uma cor.
O amarelo que tanto usei despertou uma sensação de alegria em mim. Não sei como explicar. Toda vez que eu lembrava de como eu consegui expor um sentimento tão recluso, eu sentia vontade de sorrir. Conheço o significado da palavra alegria e felicidade de acordo com o que dizia no dicionário. Agora viver o sentimento na prática era totalmente diferente. Os fragmentos dentro de mim não permitiam isso por completo.
Ouvi um galho estalando. Era um som bonito. Meu rosto era tocado pela brisa fria e gentil.
— Se tu não for me ver jogar, eu vou ficar muito puto — alguém falou comigo depois de um tempo em que eu estava de olhos fechados.
Obviamente eu já tinha decorado aquela voz. Pertencia a Tadeu, o garoto do segundo ano que outro dia me arrastou até a quadra depois de eu ter sido atingido por uma bola de vôlei. O mesmo garoto que me encontrou na praça ao lado de minha casa. E o mesmo garoto que me fizera pronunciar frases inteiras para estranhos depois de muito tempo.
Ele estava sozinho e com os braços cruzados acima do abdômen. Não estava zangado e nem triste. Estava normal. Como se estivesse entediado. Eu não tinha reparado antes, mas a camiseta que ele vestia era do mesmo tom que no sábado. O que mudava é que não era uma regata.
— Eu já sei que tu fala. Não me convida pra sentar? — indagou com uma sobrancelha erguida.
— Na sorveteria você não pediu pra sentar — respondi e virei o rosto. Mais uma vez ele me fez falar.
— Viu, falar não dói, saca? — disse e sentou ao meu lado com as pernas abertas e colocou os cotovelos sobre os joelhos.
Dessa vez fiquei em silêncio. Não vou dar esse gostinho de vitória para ele. Torci o nariz quando ele deu uma resmungada. Soou mais como um choramingo.
— É muito paia eu perguntar isso, mas por que tu fica sozinho e não gosta de falar? — Tadeu também encostou-se no tronco da árvore. Seu braço esquerdo tocou de leve no meu.
Me afastei um pouco. Ele estava quente. Será que estaria com febre?
Eu ouvi a pergunta, mas não sabia como responder. Ou talvez eu não quisesse responder. Já era bem difícil para mim ter que estar perto dele e ter que falar com ele. Eu sentia rachaduras na muralha ao redor de mim. E essas rachaduras estavam acontecendo com mais frequência. Como se a cada vez que eu falasse com alguém abrisse uma nova fenda, me deixando exposto.
— Você está quente — falei.
Ele virou para me olhar e começou a rir. Espera, o que foi que eu disse? Não acredito que deixei escapar uma dessas. Meu rosto queimou de vergonha, não era isso que eu queria dizer. Ao meu lado ele continuava rindo.
— Será que dá pra você parar! — briguei com ele. Se eu soubesse o que ele faria em seguida eu teria ficado quieto.
Tadeu segurou minha mão direita com a sua esquerda e entrelaçou os dedos nos meus. Definitivamente, ele estava muito quente! Seu braço voltou a encostar no meu. Os fragmentos dentro de mim pararam de se mover. E fogos de artifício começaram a explodir dentro de mim. Traziam um friozinho na minha barriga que se transformava numa sensação estranha e boa. Envergonhado, zangado e confuso, virei o rosto novamente para o lado. Olhei rapidamente sem virar o rosto. Ele estava de olhos fechados e sorria. Sua mão ainda segurava a minha, até tentei me soltar, mas Tadeu apertou e segurou mais firme.
Isso não pode estar acontecendo. Eu devo estar dormindo e sonhando. É. Foi isso que aconteceu. Vou apertar os olhos com força e quando eu abrir eu vou acordar e Tadeu só terá sido um sonho. Um rápido devaneio que minha mente criou por motivos que não faço ideia.
Já me enganei várias vezes, uma a mais ou uma a menos talvez não fizesse diferença. E me enganei com esse pensamento também, pois quando abri os olhos, Tadeu ainda estava ali e sua mão ainda apertava a minha. Ela era maior que a minha e macia. Senti algumas calosidades nos dedos, deve ser consequência dos jogos.
— Vou ter que ir agora — Tadeu disse e ficou em pé, sua mão ainda estava junto à minha, só que dessa vez quem fazia a pressão para segurar era eu. Ele riu. — Jorge, mano, eu até deixaria a minha mão contigo. Só que a galera do time ia ficar grilada, eu preciso dela pra jogar.
Soltei a mão dele na hora. Nossa, que vergonha. Hoje não é meu dia.
— Vê se fala mais, é bom praticar os músculos.
— Eu só falo pouco — respondi mal-humorado.
— Está melhorando. Vou chegar lá na quadra, falou. — Se despediu e foi caminhando com as mãos atrás da cabeça.
Fiquei observando ele se afastar. O tom amarelo de sua camiseta se assemelhava com o tom das flores do Ypê. Também era o mesmo com o qual eu pintei as nuances entre as ondas na parede. A explosão de tantos fogos de artifícios fez meu corpo todo tremer. Oque está acontecendo comigo?
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