Amarelo - CAPÍTULO QUATRO
"Se não fosse o Van Gogh, o que seria do amarelo?"
Quintana, Mario.
Joice, a representante da sala e presidente do grêmio estudantil, corria pelos corredores como se o mundo estivesse prestes a acabar. Ao meu lado estava Arthur, meu colega de classe. Eu mesmo não tinha falado com ele nem uma vez nesses quase dois meses de aula. Ele por outro lado falava mais do que todos os alunos juntos. No começo, ambos ficamos espantados um com o outro. Um por falar muito e o outro por não falar nada. Agora já estamos acostumados. Tecnicamente somos amigos. Eu não posso dizer muito, afinal nunca me aproximei de ninguém depois daquilo.
— Vamos gente, essas faixas não vão se pendurar sozinhas! — berrou ela com duas meninas que carregavam uma faixa amarela enorme.
Uma das garotas se atrapalhou e acabou tropeçando na faixa, caindo no chão e derrubando a outra garota. Para a sorte delas, a faixa era feita de plástico e não rasgou. Joice saiu correndo para ver se estava tudo bem com as garotas e com a faixa. Tá que ela olhou primeiro a faixa, mas isso é detalhe.
Arthur carregava uma caixa nos braços, ele foi designado a ser meu assistente depois que alguém deixou escapar para a escola que eu pintava. E não preciso dizer que foi meu pai Luiz que fez tantos elogios de mim para o coordenador pedagógico, que eu me senti mais exposto do que nunca. Carlos, que além de ter essa função, também era um autêntico professor de Artes e resolveu me escolher para fazer a pintura para o Festival de Primavera. O festival desse ano tinha como tema a prevenção do suicídio, já que estávamos em setembro. Não pude contestar, fui intimidado pela presença dele. Carlos chegou até mim com pincéis, potes e tubos de tintas e um avental da escola. Fiquei imóvel e ele entendeu que eu tinha aceitado. Precisei de uns cinco minutos para me recuperar e aceitar a situação. Olhei para os materiais sobre a minha mesa e rapidamente descartei o avental. Eu não gosto muito de usar as coisas dos outros, então resolvi trazer o meu avental e meu macacão de casa. Também trouxe meu pincel vermelho, se eu teria que pintar seria com ele.
— Gostei do seu avental — Arthur disse ao observar meu avental de linho de cor bege.
Manchas de tinta se espalhavam pela frente e algumas davam a volta para o lado de dentro. Assenti com a cabeça em sinal de agradecimento. Depois de ver Joice ter outro surto com dois caras do terceiro ano que quebraram uma das colunas de MDF resolvi me dedicar à minha tarefa. Arthur me acompanhou até o local onde eu teria que criar algo. O coordenador não foi muito específico quando pediu a arte. Olhou bem para mim e sorriu cinicamente, dizendo que eu poderia fazer o que se adequasse ao tema sem ser invasivo. E depois disse para eu abusar da cor amarela.
Que droga! O amarelo é uma das cores que eu não gosto e nem desgosto. Eu poderia muito bem viver sem ter que usá-lo. Só que quase todas as coisas acabavam precisando do amarelo. E sobrava para mim ter que usar essa cor e em grandes escalas.
A parede branca onde eu teria que pintar tinha quase três metros de altura e cinco de comprimento e estava à minha disposição. Mais uma tela. Mais uma janela. Outro mundo que precisava ser descoberto. Analisei a parede com cuidado. Fechei os olhos e passei os dedos por ela. Senti sua textura. Era lisa com algumas ranhuras, eu já conseguia sentir alguns pontos pipocando em minha mente. Ondas amarelas arrebentavam num espaço branco. Sim. Eu já tinha um mundo para trazer ao evento.
Abri os olhos e me deparei com uma dúzia de alunos me olhando. Alguns eu reconheci da minha sala, outros eu reconheci da sala da frente e quatro deles eu reconheci do time de vôlei da escola. Sasha, que era de fato o treinador do time; Rico, o qual me acertou com a bola e que não pedira desculpas (até hoje, só para constar); Juan, um ruivo que namorava uma menina da minha sala; e Aldo, que jogava como líbero do time. Ambos me olhavam curiosos. Meu rosto esquentou e me virei para Arthur. Ele franziu o cenho e crispou os lábios, sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Entendi que não era para dar atenção ao público.
— Então... já sabe o que fazer? — perguntou animado. Eu fiz que sim e engoli em seco. — Estou muito ansioso, eu não fazia ideia que você pintava. Afinal você quase não fala. — Bem observado, pensei. — Todo mundo ainda te acha muito misterioso. As meninas comentam até hoje que te acham muito sexy por ser tão calado. Até fizeram um bolão para saber se você era um vampiro, igual ao Edward Cullen.
Que idiotice. Eu sou diferente sim, mas não a esse ponto. Sacudi a cabeça e continuei olhando para a parede. Arthur continuava falando e eu ouvindo. Chegou num ponto que eu meio que desliguei o volume externo e não ouvia mais nada. Puxei minha fita do bolso do meu avental e enrolei em meu pulso esquerdo. Espalhei as tintas em minha paleta e girei o pincel vermelho em meus dedos. Refleti por um instante e o guardei, quase tinha me esquecido que iria pintar uma parede e não minhas telas. O falatório do meu colega acabou me tirando a concentração por um minuto.
Tirei o pincel de cerdas pretas de um dos bolsos, tentei ignorar os olhares atrás de mim. Precisei focar ao máximo possível. Passei os dedos sobre minha fita azul. Eu iria conseguir isso. Com a mão direita mergulhei o pincel na tinta amarela, minha paleta serviria para os traços e detalhes menores. Subi no suporte de madeira que deixaram para mim.
— Tenha calma... — sussurrei para mim mesmo. Falei tão baixo que quase eu mesmo não ouvi.
Deslizei o pincel sobre a parede e vi as ondas se formando. Não sei se seria uma obra de arte. Também não espero que ninguém diga isso, eu não pinto para me vangloriar ou inflar algum ego. Eu deixo que as imagens venham e que elas saiam. Escutei quando alguém murmurou alguma coisa sobre estar ficando lindo, mas eu não me atentei. Continuei trocando de cores, alternando as nuances. Em breve as imagens que eu via seriam vistas por todos. E eu me sentia grato por compartilhar isso com eles.
***
O coordenador olhava para a pintura com a boca aberta. Uma de suas mãos estava apoiada sobre o peito e a outra segurava um celular que ainda sustentava uma ligação de não sei onde. Antes dele chegar eu tinha sido aplaudido por dezenas de alunos, o que me deixou com muito mais vergonha do que antes. Os poucos alunos foram chamando outros e os outros chamavam mais outros e eu não conseguia mais contar quantas pessoas estavam me vendo pintar. Carlos veio ver qual era o motivo do barulho e presenciou a minha tela.
Eu me encolhi num canto, mas Arthur fez questão de não me deixar desaparecer da vista de ninguém. Droga!
— Jorge... — o coordenador pronunciou meu nome e sua voz desapareceu por um tempo. — Está totalmente maravilhoso! Quando seu pai me disse que você tinha talentos artísticos para a pintura, não achei que fosse nada comparado a isso.
Ele esticou as mãos para a pintura na parede. Todos o ouviram e voltaram a aplaudir. Minha barriga gelou e minhas mãos começaram a suar. Preciso sair daqui. Arthur me empurrou para perto do coordenador. Eu olhei para a parede.
Pintei ondas amarelas com traços claros, contornei com um amarelo mais forte. Usei uma tinta da cor de café para desenhar silhuetas flutuando nessas ondas. Aproveitei para fazer estrelas-do-mar e conchas. Fiz girassóis e silhuetas de mãos dadas próximas dessas flores. Também quis deixar uma coisa particular minha. Deixei detalhes em azul longe do amarelo, como pequenas flores que formavam os cabelos dreads de uma garota negra que sorria com um laço amarelo preso entre eles. Desenhei muitas silhuetas, um garoto que estava sendo abraçado por seus amigos. Outros que davam as mãos e formavam uma corrente.
E entre as brechas de um desenho e outro eu escrevi na forma de lettering, mensagens que ouvi ao longo de minha terapia. Eu nunca considerei o suicídio para fugir do meu passado. Mas sei que cada pessoa reage de uma forma diferente, e essas pessoas devem saber que são importantes.
"Você é importante!" "Estou aqui por você." "Você é um girassol. E o sol precisa brilhar para você." "Seus amigos te amam."
Essa última eu coloquei para consolar as demais pessoas, não se aplicava exatamente à minha realidade.
Tinham outras que me emocionavam e que eram bem tocantes para mim. Pintei alguns pedaços de papéis nas paredes, como se fossem bilhetes. E deixei escrito que era para escreverem mensagens para que ninguém se sentisse sozinho. Bem discretamente, deixei uma fita de cetim de cor azul enrolada nos braços de uma das silhuetas. Ninguém vai notar, é apenas um fiozinho quase invisível. Eu não estava me incluindo nesse espectro. Mas quis deixar subentendido que eu também apoiava as pessoas que lutavam para salvar outras. Apesar de eu não saber como interagir com as pessoas, eu queria que elas vivessem.
Olhei por um tempo para a parede. Nunca usei tanto amarelo na pintura de uma tela de uma só vez. Usei um pouco de verde para fazer algumas folhas e caules, mas o amarelo predominou. Me senti estranho. Só que todos tinham gostado. O coordenador bateu em meu ombro e me parabenizou, dando sequência à outra trilha de palmas.
Olhei para todos os lados,assustado. Encontrei um tom de verde que eu não tinha na minha paleta de cores.Era o verde dos olhos de Tadeu. Ele aplaudia com vontade e sorria. Mais uma vezsenti que meus órgãos internos se espremiam. Os músculos da minha face tremeramquando eu consegui sorrir. E eu fiz isso pela primeira vez fora de casa e na frente de outras pessoas.
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