Sobre libras, furacões e amores líquidos
Se a minha manhã foi ruim, a tarde não está sendo muito diferente.
— Não entendo como ela prefere ficar em casa com a sua mãe a sair com a gente. — Tristan não para de falar sobre isso, claramente incomodado pela Claire ter recusado o convite para vir ao Java Joe.
— Ela está ajudando a mamãe com os preparativos da festa — insisto em explicar.
Ele se inclina sobre a mesa e pega uma batata frita.
— Talvez a gente devesse ir pra sua casa então. Oito mãos trabalham melhor do que quatro.
Talvez você devesse calar a boca e parar de partir meu coração.
Se tem algo pior do que ouvir Tristan falar da Claire, é ter que escutá-lo falar dela aqui, dentro desta bolha de gordura e barulho que é o Java Joe. Definitivamente, não gosto daqui. A música é uma opugnação aos tímpanos, a comida compete com arsênico e, para piorar, parece que metade da escola resolveu ter a mesma ideia que a gente e vir para cá também, se amontoando nas mesas e nas banquetas vermelhas do balcão.
O meu olhar para na junkebox vintage no canto da lanchonete, e por um instante considero levantar e colocar uma música melhor, algo diferente do som gritado que ecoa pelo lugar. A jukebox é a única coisa decente no Java Joe. Gosto de coisas antigas, que remetem a uma época em que dar flores a uma garota não era considerado cafona, casais saiam em encontros de verdade, assistiam a filmes preto e branco ao ar livre e o amor não era líquido. Hoje em dia parece que é tudo sobre dar uns amassos em lugares insalubres, como banheiros de escola e bancos de carro — não que eu já tenha feito isso. Mas é assim que o mundo funciona agora.
— Se elas precisassem de ajuda, Claire teria me falado. E lá em casa é regra tácita que aniversariante não trabalha — digo, retirando o presunto do sanduíche.
Não vou arriscar minha saúde me entupindo de fast food. Deixo o queijo gorduroso em um canto do prato, junto com o molho suspeito, meus olhos pousam na porção de batata frita que Tristan pediu e me pergunto se quero mesmo comê-las. Empurro o prato para longe e mordo meu sanduíche de pepino e tomate.
— Certo. Seu dia, suas regras — Tristan concorda, levando uma batata à boca.
O restante da tarde teria sido tranquilo se o Dom não tivesse aparecido para se sentar com a gente e monopolizar a conversa, como sempre, direcionando todo e qualquer assunto para sua pessoa favorita no mundo, ele mesmo. Daí até Arya se convidar para a nossa mesa, foi um pulo. E assim, minha tarde com Tristan virou uma convenção "Dominiciana".
— Cara, foi demais! Num segundo eu estava no meio do campo e, no outro, gol! — Dom relata, empolgado.
Assim como Tristan, Dom é obcecado por futebol. Eles podem passar horas discutindo suas façanhas em campo ou falando sobre seus jogadores favoritos. Lembro que, quando era mais novo, Tristan dormiu duas semanas no sofá da sala em protesto porque a mãe se recusou a pintar o quarto dele nas cores do Manchester. No fim, ela cedeu e ele voltou ao seu "santuário".
Dom lança a Arya um de seus sorrisos e ela suspira, apoiando o queixo na palma da mão. Eu fico de pé. Mais um segundo ouvindo Dom e os suspiros apaixonados de Arya e meu cérebro vai colapsar.
— Eu vou ao banheiro.
— De novo? — Tristan pergunta.
— Vai ver ela precisa trocar o absorvente — Dom se intromete. — Não deve ser muito confortável uma cachoeira de sangue entre as pernas.
Sinto as bochechas corarem.
O ideal seria que indivíduos sem cérebro nascessem também sem língua.
No banheiro, aproveito para checar minha aparência no espelho. Com certeza, já tive dias melhores. Passo as mãos pelos cabelos, ajustando a tiara no lugar, e aproveito para arrumar também a gravata do uniforme, que está um pouco torta, prolongando ao máximo esse momento de paz antes de ter que retornar para o caos da lanchonete.
Longe do burburinho e da música irritante, meu corpo começa a relaxar.
— Por que você tem que ser assim? — uma voz feminina pergunta do outro lado da porta, chamando minha atenção. — Já te pedi pra não me importunar no meu trabalho.
Estou ciente do quão errado é ouvir conversas alheias, mas não posso evitar, o tom aflito da mulher põe todos os meus sentidos em alerta.
Me aproximo da porta e giro a maçaneta lentamente, espreitando por uma fresta. O que vejo faz meu sangue gelar: encostada na parede próxima ao banheiro dos funcionários, está Aneth Caradoc, totalmente acuada pelo filho.
— Corta essa, Aneth — Tobias bufa, tirando a mão do bolso e a estendendo diante da mãe. — O dinheiro.
— Eu já disse que não tenho.
— Papo furado. Eu vi sua carteira hoje cedo. Não estava nada vazia.
Ela franze as sobrancelhas, perplexa.
— Pegou meu dinheiro? Está me roubando de novo?
— Se eu estivesse te roubando, não estaria aqui pedindo as malditas libras.
As feições da mulher se suavizam, mas só um pouco, ela ainda parece abalada quando estica a mão para tocar o braço dele.
— Tobias, vai para casa. A gente conversa depois que o meu turno acabar — tenta acalmá-lo. — Eu tenho uma pilha de sanduíches para preparar e um monte de mesas para atender.
Ele afasta a mão da mãe e dá um passo à frente, irredutível. Enquanto ela recua, se encolhendo contra a parede, visivelmente assustada.
Olho para a cena em descrença.
— Dane-se as mesas. Não vou a lugar nenhum até você abrir a droga da carteira.
— Escuta aqui, garoto — ela sobe o tom. — Não vou te dar nem mais um centavo. Agora, sai daqui antes que eu...
— Antes que você o quê? — provoca. — Chame a polícia? Grite? Grita, Aneth. Grita bastante. Quero ver.
Ela pisca os olhos verdes, idênticos aos dele, os ombros finos se curvando como se fossem puxados por fios invisíveis. Quero intervir, ajudá-la de alguma forma, mas não sei como. Se ao menos eu estivesse com meu celular, poderia chamar a polícia.
— Já te disse, não vou te dar nada — repete, enérgica. — Vai pra casa e me deixa trabalhar em paz.
— Acho que temos um impasse. Eu não vou sair daqui sem o dinheiro — Tobias cruza os braços. — Posso aproveitar pra trocar uma ideia com o Joe enquanto espero. O que acha?
— Você não faria isso — a voz dela vacila.
— Ah, pode apostar que faria.
Com um gemido cansado, Aneth pega a carteira do bolso e tira uma nota de cinquenta libras. Tobias arranca o dinheiro da mão dela.
— É sempre um prazer negociar com você — diz, antes de enfiar a nota no bolso e sair, sem se importar com o estado em que a deixou.
Sinto uma dor apunhalante no peito, como se algo dentro de mim tivesse se quebrado. É difícil até respirar. Tobias Caradoc é ainda pior do que eu imaginava. Como ele pode fazer isso com a própria mãe?
— Ai, meu Deus! Mamãe! — Minha voz ecoa pelo quarto.
Os olhinhos de Julie se arregalam. Não era minha intenção assustá-la, ela é só uma criança, e vê-la tão sobressaltada me faz querer engolir o grito de volta.
Paro com a mão na maçaneta, observando o caos à minha frente: meus livros, cadernos e post-its rabiscados, espalhados pelo tapete.
Julie pega a edição de A Bela Adormecida que ganhei de Tristan no meu aniversário de oito anos e a levanta acima da cabeça loira, exibindo um sorriso banguela, toda orgulhosa.
— Fiz pra você. — Com passos hesitantes, aproximo-me, tentando assimilar a cena. Meu dia não pode ficar pior, depois de uma manhã inteira ouvindo Tristan falar da Claire e de presenciar o Tobias Caradoc quase agredir a mãe, ainda tenho que lidar com o furacão Juliet Wood. — Ficou bem bonito, não ficou?
Não, não ficou bonito. A capa está coberta de rabiscos verde-fluorescentes e desenhos de bonecos anatomicamente defeituosos. A Bela Adormecida agora tem bigode, e o Príncipe Encantado ganhou cavanhaque e monocelha.
— Quem te deixou entrar aqui? — pergunto, olhando do livro para seu rostinho contente.
— Ninguém me deixou entrar. Mas eu sou esperta, fingi que estava dormindo pra Claire me deixar sozinha, e aí vim fazer uma surpresa de aniversário pra você. — Ela aponta, com o dedinho sujo de tinta, para um borrão com uma coroa luminosa na cabeça. — Fiz um príncipe encantado. Ele tem cavalo branco e tudo. Você gostou?
Não sei o que responder, estou sem palavras.
— Frini, o que aconteceu? — a voz da mamãe chega até mim.
Olho por cima do ombro e vejo sua figura esbaforida parada na soleira da porta. Claire está logo atrás, os olhos arregalados como se tivesse visto um fantasma.
— Meu Deus! — ela exclama, correndo até Julie. — O que você fez?
— Fiz uma surpresa pra Frini. Todo mundo gosta de surpresas, ainda mais surpresas de aniversário — responde, os olhinhos inocentes arregalados, sem entender porque todo mundo a está encarando como se tivesse feito algo de errado.
— Você não pode sair fazendo esse tipo de surpresa para as pessoas — Claire explica, segurando firme os ombros da irmã. — Os livros são da Frini, não seus. Eu te disse para não mexer nas coisas dela, por que você não me ouve? — Ela olha para mim, sem graça. — Desculpa, Frini. Eu sinto muito.
Eu sei que não é culpa dela, ainda assim, não consigo evitar sentir um pouco de raiva. Julie acabou de extraviar vários dos meus livros e cadernos de palavras e nenhum pedido de desculpas vai mudar isso.
Por que os adultos não controlam suas crianças? Por que a tia Betsy não ensinou boas maneiras a Julie? Essa coisinha miúda e impetuosa que destroi tudo o que vê pela frente.
— Não precisa se desculpar, não é culpa sua — digo após um momento, lutando para reprimir o desgosto e a frustração.
Sempre faço isso, engulo a raiva, o desgosto, a frustração, a tristeza... escondo meus verdadeiros sentimentos, tudo para não machucar as pessoas que amo.
— Ela não fez por mal, querida. — Mamãe passa o braço pelos meus ombros a fim de me confortar. — Julie é só uma criança. Crianças fazem esse tipo de coisa.
Já fui uma criança e nunca fiz nada assim.
— Eu sou grande — Julie afirma, abrindo os braços o máximo que consegue. — Mais do que grande. Sou imensa. Do tamanho do Universo.
Claire solta um suspiro exasperado.
— Já chega! Você não é do tamanho do Universo coisa nenhuma, é só uma criança e precisa aprender a não mexer nas coisas dos outros.
— Você não é a mamãe, Claire. Não pode mandar em mim — Julie rebate com um biquinho, prestes a chorar.
A mamãe sai do meu lado para ajudar Claire, enquanto eu afundo na beira da cama, cansada demais para lidar com a situação.
— Não grite com sua irmã, Juliet — ela pede com firmeza. — Ninguém gosta de crianças malcriadas.
Julie corre até mim, os lábios trêmulos, o rosto aflito, seus dedinhos se enroscam na barra da minha saia e seus olhos, brilhando de lágrimas, encontram os meus.
— A Frini gosta de mim... Você me ama, não é, Frini?
O que eu posso dizer? Julie pode ser um furacão grau cinco com alto potencial de destruição, mas eu a amo tanto que chega a doer. Amo seus olhinhos brilhantes e bochechas rosadas, sua curiosidade aguçada, imaginação fértil e coração gentil. Muito embora, no momento, só consiga pensar em como seria bom me livrar dela por um tempo.
— Claro que amo.
Ela pula para longe, as lágrimas substituídas por um sorriso de mil dentes, e sai saltitando para fora do quarto.
— Eu vou pedir pra mamãe te comprar livros novos e colocar a Julie de castigo — Claire promete antes de seguir atrás da irmã. — Julie, volta aqui!
A tia Betsy pode até colocar a Julie de castigo; quanto a me comprar livros novos... Bem, duvido que isso aconteça. Desde que o tio Ed a trocou pela secretária, quase vinte anos mais jovem, seu padrão de vida decaiu muito. O dinheiro foi pelos ares junto com o casamento e juras de amor eterno.
Claire tenta ser forte e cuidar dos irmãos mais novos enquanto a mãe se recupera, ela raramente demonstra o quanto o divórcio dos pais a afetou. Mas às vezes, quando falamos pelo Skype, percebo seus olhos vermelhos e sei que andou chorando.
Olá, gafanhotos!
Cá estou com mais um capítulo, gostaram?
Se sim, considerem votar, comentar ou fazer sinal de fumaça pra deixar essa autora que vos fala um pouco feliz.
Essa tá sendo uma semana terrível, com a morte do Liam Payne e tudo mais. Eu amava a banda quando era mais nova - ainda amo -, eles significaram muito em uma das épocas mais difíceis da minha vida e sempre vou ter um carinho enorme por cada membro, ver o Liam partir tão cedo e de forma tão trágica despedaçou meu coração.
Mas mudando de assunto, vamos falar do capítulo.
O que acharam de Prunella?
E de Julie?
Se estivessem no lugar da Frini, o que teriam feito?
E de Tobias extorquindo a Aneth, o que acharam?
Tadinha dela. Como sofre com esse filho desnaturado, não é?
Se tudo correr bem, volto com mais capítulos.
Obrigada a todo mundo que comentou e votou e segue por aqui.
Cheiros e queijos!
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