Caindo num Buraco Negro
Se tem algo que aprendi, foi a nunca subestimar o poder da vida de transformar uma situação ruim em catastrófica.
Do sofá, observo papai dar goles em sua bebida enquanto ri com o grupo de fumantes de charuto que ele convidou para a minha festa. Assim como eu, mamãe não está nem um pouco confortável com a situação, já fez sinal para ele parar de beber e tudo, mas foi ignorada.
Enquanto isso, uma versão instrumental de Always on My Mind ecoa pela sala. Não me espanta que meus poucos convidados estejam se comportando como zumbis. Nem Meredith, que é atriz, está conseguindo disfarçar o tédio. Escondida em um canto, ela segue com os fones de ouvido, concentrada no celular. Ao lado da mesa de comida, Arya mastiga o que deve ser o terceiro sanduíche, encarando impaciente o relógio antigo na parede. Dá para ver no rosto delas que estão contando os minutos para escapar desse pesadelo. Não posso culpá-las, até eu quero fugir daqui.
Papai abandona o copo vazio no aparador e vai até a mamãe, que está conversando com a Sra. Calvert no outro extremo da sala. Tenho o impulso de ir até ele e agradecer por estragar mais uma das minhas festas com seus amigos chatos, charutos fedorentos e música ruim. Mas sou covarde demais para isso.
— Você tá triste? — Julie se senta ao meu lado, uma pequena aparição surgida do nada. — Parece triste.
Ajeitando-me no sofá, encaro a mão dela sobre a minha e faço um esforço para não começar a chorar. Apesar de ter apenas seis anos, Julie é a única pessoa com sensibilidade suficiente para perceber que não estou bem.
Desde o episódio dos livros vandalizados, Claire não desgrudou do celular, tentando em vão falar com tia Betsy, que segundo Andy, deve estar aproveitando a folga dos filhos para sair com algum empresário local. Apesar de que não dá para confiar muito no que ele diz, considerando que está lidando com o divórcio da pior forma possível e ainda culpa a mãe pela separação.
Outra pessoa cujas palavras não estou levando a sério no momento, é Tristan. Ele me ligou faz mais de meia hora, avisando que estava na esquina da Windsor — que fica a menos de dez minutos daqui — e até agora não apareceu. Ou ele se perdeu no caminho, o que eu duvido, ou usou o bom senso e deu um jeito de evitar esse desastre.
— Eu estou bem, Julie — respondo, depois de um momento.
— Quando as pessoas estão bem, elas sorriem e viram estrela. Eu sempre faço isso quando estou feliz. Posso te ensinar se quiser. — Ela salta do sofá com os bracinhos para cima, pronta para virar estrela no meio da sala.
— Obrigada, mas não acho que seja uma boa ideia.
— É por causa das suas pernas? O Andy disse que você é aleijada. — Suas palavras me pegam de surpresa. — A mamãe brigou com ele e disse para não falar isso, mas ele continuou. Aí ela o colocou de castigo. Você é mesmo aleijada?
De início, não sei o que dizer, não estava esperando por isso.
Não foi fácil crescer com tantas limitações. Eu nunca pude correr, dançar ou virar estrela como as outras crianças. Até mesmo coisas simples, como uma caminhada, era um desafio. Tudo isso ficou para trás. No entanto, doi saber que Andy ainda me vê daquela maneira.
— Não, eu não sou aleijada.
O sorriso dela cresce e as bochechas se inflam.
— Eu sabia. Disse pro Andy que ele estava errado. — Ela chega mais perto, brincando com os berloques da minha pulseira. — Sabe, eu amaria você mesmo que fosse a pessoa mais aleijada do mundo. Pessoas aleijadas também são bonitas. O Theodore Mlynowsky, da minha sala, é aleijado, mas é tão bonito quanto uma pintura do Bob Ross, ou até mais.
Sua confissão traz à tona a memória do Tristan da minha infância, tão doce e encantador.
— Você gosta do Theodore? — pergunto num tom divertido.
— Eu gostava. Queria que fossemos amigos.
— E por que não gosta mais?
— Ele gritou comigo, disse que eu sou inconveniente por pintar sóis sorridentes nos livros dos outros sem permissão. — Faz uma pausa, pensativa. — Eu só queria dar um presente especial para ele, sabe? Ninguém gosta do Theodore na escola, e nem é porque ele é aleijado, mas porque ele é chato. Mas eu gostava dele mesmo assim, desse tanto. — Com uma expressão consternada, Julie abre os bracinhos. — E tudo que ele fez foi chutar o meu gostar para muito, muito longe. Por culpa dele a Srta. Phillis me pôs no cantinho da disciplina, a turma toda ficou olhando para mim e rindo. Mas eu não chorei... não muito.
— Sinto muito — digo, apertando a mão dela.
— Quando cheguei em casa a mamãe me deu mais castigo, aí eu chorei até meus olhos secarem, não por causa do cantinho da disciplina, mas porque ela tirou todas as minhas tintas e lápis de cor, e disse que tudo que eu teria dali para frente seriam grafites. Isso foi o pior. Não dá para colorir nada com grafites. É por isso que eu não gosto mais do Theodore. Posso gostar de alguém aleijado e chato, juro que posso, mas nunca de alguém que prefere coisas a pessoas.
Por um instante, imagino o pobre Theodore retornando do recreio e encontrando seu livro riscado. Não é de se admirar que tenha gritado. Até eu quase perdi a paciência com Julie hoje mais cedo.
— Talvez o Theodore não prefira coisas a pessoas, vai ver ele só gosta de manter os livros dele limpinhos e sem rabiscos. Você não gosta de manter suas bonecas limpas? Como se sentiria se ele desenhasse um sol na carinha delas?
Ela franze o cenho, reflexiva.
— Acho que ficaria feliz. Toda vez que olhasse para elas, lembraria dele e me sentiria especial. As cores deixam tudo mais bonito, até o céu fica mais lindo quando o arco-íris aparece. Quando eu crescer, vou colorir o mundo todo.
— Julie, por que não deixa a Frini em paz um instante? — Claire finalmente largou o celular e nos encara com ar cansado. Mesmo com os cabelos presos num coque malfeito e sem maquiagem, ela ainda parece uma supermodelo. Julie estala um beijo na minha bochecha e sai correndo pela sala, tentando interagir com os convidados, que a olham como se fosse uma criatura de outro planeta. — Falei com a mamãe, ela prometeu que vai te comprar livros novos. Ela não falou com você porque está em reunião com um possível sócio, mas vai te ligar quando a reunião acabar.
— Tubo bem. Não se preocupa com isso.
Alguns minutos depois, meu celular vibra com uma mensagem da Sra. Humphrey, que não pode vir à festa por causa de um tratamento estético recente.
Sinto a respiração falhar.
Como assim Tristan sofreu um acidente?
Deixo Claire para trás e corro para a cozinha, onde ligo para a Sra. Humphrey. Ela me tranquiliza, dizendo que Tristan está bem, mas precisará passar a noite em observação. Pelo que entendi, um motorista bêbado ultrapassou o sinal vermelho e bateu na traseira do BMW. Antes que eu possa pedir mais detalhes, ela informa que precisa desligar.
Bebo um copo de água e tento manter a calma. Quando o universo resolve conspirar contra você, não há muito a se fazer além de sentar e chorar.
De repente, me sinto culpada. Afinal, eu desejei tanto e com tanta força que Tristan não ficasse com Claire essa noite que não posso deixar de achar que talvez tenha atraído isso.
Antes do final da festa, a notícia do acidente se espalha. Ninguém fala em outra coisa. Arya disse que Dom comentou que a batida foi superviolenta, e por pouco Tristan não perdeu o braço. Já Meredith, soube por uma amiga que o outro motorista estava sob efeito de drogas e fugia da polícia. As versões vão ficando mais absurdas a cada momento, e nem o bolo consegue desviar a atenção dos convidados dos celulares.
Algumas pessoas chegam ao fundo do poço. Eu? Fui além. Parece que caí direto num buraco negro.
Neste exato momento, Tobias Caradoc vem marchando na minha direção a passos largos, claramente irritado.
Perscruto o corredor vazio. Não faço ideia do que ele quer comigo e, sinceramente, não estou interessada em descobrir. Abraçando meu livro, começo a andar na direção oposta.
Foi um azar ter esquecido o livro de Inglês no armário e precisar voltar para pegar. Com tudo que aconteceu ultimamente — a preocupação com Tristan e o desastre da minha festa — a última coisa que pensei hoje de manhã foi no bendito livro.
— Fugindo de mim, Prunella?
Eu o ignoro, apressando o passo até o banheiro feminino antes que ele tenha a chance de me alcançar. Depois do que Tobias fez com a mãe, não vou arriscar ficar perto dele.
Sinto uma onda de alívio quebrar sobre mim ao adentrar a fortaleza de paredes brancas e piso brilhante e até ensaio uma dancinha da vitória. Porém, paro assim que vejo meu reflexo no espelho. De algum jeito, consigo ser ainda mais desajeitada que a Taylor Swift em Shake It Off, se é que isso é possível.
— Por que a mamãe nunca me colocou no balé? — pergunto para mim mesma.
— Suas pernas não eram fortes o suficiente, eu acho — a voz grave do Tobias chega aos meus ouvidos me fazendo estremecer.
De onde ele surgiu?
Recostando-se na porta, ele cruza os braços, os olhos fixos em mim.
— O que você está fazendo aqui? — Apesar do tremor na minha voz, tento manter a compostura. — Esse é o banheiro feminino, garotos não são permitidos.
— Valeu pelo aviso, se não fosse por você eu não teria percebido.
— Por que está me seguindo?
— Você sabe por quê. A gente precisa conversar.
Balanço a cabeça, aturdida.
— Não tenho nada para falar com você.
Ele se afasta da porta e pergunta:
— Quando é que você vai aprender a controlar essa língua, Prunella?
— Ei, não pode falar assim comigo. — Ponho o dedo em riste.
— Posso falar como eu quiser — rebate, as sobrancelhas unidas sob a franja escura. — O que você acha que tá fazendo espalhando por aí que eu agredi a minha mãe? De onde merda você tirou isso?
Engulo em seco.
— Eu não espalhei nada. — Okay, talvez eu tenha mencionado para uma ou duas pessoas... três, no máximo. Não é culpa minha se a história se espalhou. — Embora ainda esteja em choque com o que vi.
— Ah, é? E o que você viu?
— Como se você não soubesse.
— Eu não faço ideia.
— Ontem, no Java Joe, perto do banheiro dos funcionários. — Respiro fundo, abraçando meu livro com mais força. — Vi você gritando com a sua mãe. Você foi agressivo com ela, extorquiu dinheiro... Como pode fazer aquilo?
— Puta merda. Isso era mesmo tudo que faltava. — Tobias esfrega os cabelos, bagunçando-os ainda mais. Seus olhos verdes também estão mais nebulosos que o normal, e há vultosas olheiras sob eles, como se não dormisse há algum tempo. — Tem noção do que você tá falando? Eu nunca agrediria a Aneth. Nunca encostei um dedo nela.
— Há outras formas de agressão além da física. Você não precisa bater em uma pessoa para machucá-la. O jeito como a deixou... foi de partir o coração. Devia ter vergonha de tratá-la daquela forma.
Tobias chega ainda mais perto, o lábio inferior preso entre os dentes, o olhar frenético.
— Você é ótima em tirar conclusões precipitadas, sempre foi, desde o jardim de infância. — Ele pára diante de mim e eu recuo até me chocar contra a pia do banheiro. — Eu tentei ser legal com você, tentei mesmo, mas você não colabora. Me diz, como se sentiria se eu começasse a espalhar histórias sobre você?
— Que histórias? — me atrevo a perguntar.
Ele batuca o queixo, fingindo refletir.
— Sei lá... Posso dizer que você tem uma queda pelo Humphrey... Mas essa já é velha, todo mundo sabe. — Se inclinando na minha direção, ele estala a língua. — Ou posso contar que você e eu transamos aqui, no banheiro da escola. Que tal?
Meu coração para por um segundo.
— Desculpa. Eu acho que não ouvi direito — sussurro, incapaz de acreditar nos meus ouvidos. — Nós fizemos o quê?
— Sexo, Prunella. Como se sentiria se eu pagasse na mesma moeda e espalhasse uma história medonha sobre você? Pensa no estrago que um boato desse faria à sua preciosa reputação. Não quer ser marcada com uma letra escarlate, quer?
— Ninguém acreditaria — afirmo, com mais convicção do que sinto. — Seria sua palavra contra a minha.
Tobias ergue o canto da boca num meio sorriso, seus olhos queimando com uma malícia que me dá calafrios.
— Quer apostar? — Ele pega o celular, mexe nele por alguns segundos e depois guarda de volta no bolso. — Pronta pra começar a acertar as contas? Aposto que você vai adorar isso.
Suor frio brota das minhas palmas e o zumbido em meus ouvidos se intensifica conforme os segundos se estendem. Considero correr, mas ele continua parado entre mim e a porta.
Minha mente dispara em mil direções.
E se ele for um maníaco?
— Não me olha assim. Eu nunca encostaria em você — diz, como se pudesse ler meus pensamentos.
Talvez eu devesse gritar.
— O que... O que vai fazer?
— Shhh — ele leva o indicador aos lábios. Prendo a respiração, nada de bom pode vir disso. — Oh, Tobias, você é tão mau. Não para... Ah, assim.
Não.
Pode.
Ser.
Eu congelo de puro terror.
Não sei como isso é possível, mas Tobias Caradoc acaba de se lançar em uma imitação quase perfeita da minha voz.
— Oh, isso é incrível — prossegue num tom gemido. — Oh, assim... aí... estou quase lá. Mais rápido. Oh, Tobias... Eu acho que vou...
— Pa-para! — peço, a respiração acelerada, o coração prestes a sair pela boca. — Não pode fazer isso... É a minha... É a minha voz. — Sem se importar, ele retira o celular do bolso novamente. — Você é maluco?
— Prefiro o termo "genialmente incompreendido" — responde, segurando o celular diante do meu rosto. Fico parada, em choque, sem saber como reagir. — Foi mal por isso. Mas você não me deixou alternativa. Da próxima vez que pensar em espalhar boatos sobre mim, lembra desse áudio. E de todos os outros que eu posso fazer. — Com uma expressão inelegível, ele ajeita a alça da mochila, abre a porta e, antes de sair, diz: — Feliz aniversário atrasado, Prunella.
Olá, gafanhotos!
Era pra eu ter postado antes, o capítulo tá nos rascunhos há um tempão, mas acabei deixando passar. Contudo, aqui está.
Gostaram?
Querem mais?
O que me dizem da festa de Prunella? Querem uma igual?
E da pequena Julie?
Parece que Tristan sofreu um acidente - tô tristonha.
O que acharam de Frini espalhando boatos pela escola?
E de Tobias ajustando as contas? Talentoso todo, não é?
Por enquanto é só.
Talvez eu volte logo, talvez não.
Lembrem-se de votar e comentar, gosto de saber suas impressões sobre o livro e personagens.
Obrigada a todos que continuam por aqui.
Ninguém perguntou, mas amanhã é meu aniversário. Estou ficando velha, logo serei um fóssil e poderei requerer minha aposentadoria, me isolar de vez do mundo e me tornar oficialmente a velha louca dos gatos — e cachorros.
Já tô me sentindo a velhinha junto à lareira do poema do W. B. Yeats — só falta a lareira e os cabelos grisalhos, os livros e o sono eu já tenho.
O engraçado é que nunca imaginei que chegaria a essa idade, desde criança eu tinha certeza que morreria jovem, tipo, jovem mesmo, sei que é estranho, mas eu estava convicta disso. Porém, aqui estou para felicidade da minha mãe e decepção da pequena Naah, que errou em suas previsões.
Fato é que vi muita gente boa partir antes de mim e por algum motivo, que só Deus sabe, continuo aqui fazendo o que faço de melhor, nada.
Mas a vida é isso, um eterno nada acontece como se imagina.
Como disse R. Russo: "os bons morrem jovens." O que me leva a concluir que talvez eu não tenha sido uma pessoa boa o suficiente. Daqui pra frente tentarei ser um ser humano melhor, essa é minha resolução de aniversário.
Pra quem não conhece o poema ao qual me referi, aqui está:
QUANDO FORES VELHA
"Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;
Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;
Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas."
W. B. Yeats
W. B. Yeats morreu aos 73 anos — apenas um garoto.
Cheiros e queijos!
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