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UMA QUARENTA DE 365 DIAS


PREMIAÇÃO


SINOPSE:

Dona Flor e Jussara são patroa e empregada. Uma idosa, a outra jovem. Uma rica, a outra pobre. O enredo aborda as peripécias das duas para conviver com o vírus e com as restrições durante a pandemia.

Apesar da gravidade da situação e das inúmeras mortes que a doença causou (e ainda causa), o conto traz leveza e uma certa comicidade na relação entre as duas protagonistas e os cuidados tomados para se prevenirem.

Boa leitura!

* * * * *

UMA QUARENTENA DE 365 DIAS

L.H. LOURENÇO


Março de 2020

Bairro nobre da cidade de São Paulo

Jussara chegou para mais um dia de labuta na residência de Florência Narizempé, onde trabalha há mais de cinco anos.

― Bom dia, Dona Flor.

Dona Flor estava na cozinha tentando fazer um café e recebeu a empregada com um grito.

― O que você está fazendo aqui, criatura? Como você entrou?

― Que susto, Dona Flor! Eu entrei como faço todos os dias, com a minha chave.

― Você é tão miserável que não tem nem um rádio para ouvir as notícias? Não sabe que estamos em quarentena?

― Não sei o que é isso não, Dona Flor. Eu tenho televisão lá no meu barraco. Ontem o Bonner estava falando sobre um tal de corona, mas eu estava tomando minhas "cervas" e nem prestei atenção.

― Vá direto para o banheiro, tome um banho, troque a roupa, passe álcool em gel no sapato, na bolsa e depois higienize todos os lugares onde você colocou a mão. Maçanetas, paredes, portas e o chão. E fique afastada de mim. Temos que manter o distanciamento de um metro e meio para evitar contaminação.

― Credo, Dona Flor, eu sou uma mulher "limpinha". Não tenho doença contagiosa, não.

― Sua cabeça também é "limpinha" de juízo e de informação. Essa doença chegou para todas as classes sociais. Ninguém está livre de ser contaminado. O correto seria eu mandar você para casa, mas não tenho como ficar aqui sozinha. Talvez a melhor solução seria você morar comigo, enquanto durar a quarentena.

― Como assim, Dona Flor? Eu tenho meu barraco, minha Pituca e um gatão gostoso para cuidar. Não posso morar aqui, não.

― Bom, você é quem sabe se vai querer manter este emprego ou não. Avise-me até o horário do almoço da sua decisão, pois se for pedir as contas, tenho que ligar para agência para contratar outra pessoa. Desta vez, não aceitarei pessoas de tão baixo nível como você. Estarei na sala para me atualizar com as últimas notícias. Vá direto para o banheiro e faça o que eu lhe disse. E desinfete esse seu celular também. Vamos deixar as compras do mercado para amanhã. Se você resolver se manter empregada, hoje você vai para sua casa para resolver suas pendências e já leva dinheiro para pegar um táxi. Não quero você andando de transporte público. Assim que você chegar aqui, tomará seu banho, higienizará tudo o que trouxer da rua e não sairá mais. E para o almoço de hoje, quero estrogonofe de frango, arroz integral e legumes.

Dona Flor saiu da cozinha, com aquela sua pose de rainha, vestindo seu robe de seda longo e com seus chinelos de cetim com pompom. Tudo na cor rosa bebê.

Jussara ficou parada no mesmo lugar, olhando sua patroa seguir para fora da cozinha, sem saber o que pensar. Ela conseguiu entender apenas metade do que lhe foi dito. A patroa despejou tudo de uma vez na sua cabeça e ainda queria uma resposta até o horário do almoço.

Foi para o seu banheirinho" da área de serviço. Tomou um banho rápido e pegou o desinfetante para limpar suas coisas. Estava limpando o celular com álcool em gel, quando apertou sem querer o número do seu namorado.

― Oi Ju, tudo bem, doçura? Por que está me ligando agora?

― Aconteceu alguma coisa que deixou minha patroa pirada, Naldo. Ela quer que eu venha morar com ela a partir de amanhã e não poderei voltar para minha casa depois, se eu quiser manter o emprego. Ela falou de uma doença que parece que se chama quarentena, não entendi direito. Agora não sei o que eu faço. Não posso ficar sem emprego.

― É verdade, doçura! Está todo mundo falando sobre isso. É um vírus que apareceu na China e espalhou-se pelo mundo pelo mundo. Quem pegar, pode morrer. As pessoas não podem se abraçar, se beijar ou falar muito de perto que o bichinho pode passar de um para outro. Parece ser como uma gripe, só que é mais grave. Eles estão chamando de coronavirus.

― Puxa, é tão grave assim? E o que eu faço, Naldo? Estou em uma sinuca de bico. Quem vai cuidar da minha casa e da Pituca? E nós, quanto tempo ficaremos sem nos vermos?

― É, Ju, não sei o que lhe dizer. Não terei tempo de cuidar da Pituca. Posso passar na sua casa uma ou duas vezes por semana para ver se ninguém a invadiu, se há contas para pagar e até fazer uma limpeza, caso necessário, mas nada além disso. Seria bom avisar suas vizinhas mais próximas, em quem você confie, e informá-las que você estará fora por algum tempo. O noticiário fala em quarenta dias de isolamento.

― QUARENTA DIAS!!!! Como vou ficar tanto tempo sem ver você?

― Doçura, deixa comigo, que eu darei um jeito da gente se encontrar. Pensaremos nisso depois. Seu maior problema agora é a Pituca. Veja se alguma vizinha sua pode ficar com ela até você voltar.

Na hora do almoço, Jussara entra na imensa e sofisticada sala de jantar e encontra Dona Flor cabisbaixa e com os olhos vermelhos de chorar.

― O que aconteceu Dona Flor? A senhora está passando mal?

― Isso não é problema seu, Jussara.

― Mas eu nunca vi a senhora chorar nesses anos todos em que trabalho aqui. Fiquei preocupada.

― José Luiz Rodolpho me ligou para comunicar que não virá me visitar durante a quarentena, visto que eu estou no grupo de risco e ele está muito exposto, devido aos seus compromissos empresariais. Sabe o que isso significa? Que não poderei ver meu único filho, nem minha querida netinha por quase dois meses. Além disso, meus amigos são todos da minha faixa etária, ou seja, estarei totalmente isolada de familiares e do convívio social. Que mundo é esse? Estarei trancada neste apartamento sozinha...

― Bem, Dona Flor, aproveitando que a senhora tocou no assunto, eu aceito morar aqui com a senhora desde que...

― Bem, uma luz no fim do túnel. Era só o que me faltava você me dizer que iria me abandonar também.

― Então...

― Diga logo... qual é a sua reivindicação para ficar? Quer aumento salarial?

― O que é reinvin...? Não sei pronunciar isso não. Nem passou pela minha mente lhe pedir aumento, mas isso até que é uma boa ideia. O que quero dizer é que só poderei ficar aqui se puder trazer a Pituca.

― Pituca? Quem é essa? Você tem filha?

― Não tenho filho, não. Pituca é minha peludinha. Ela tem esse nome, porque é bem pequena, quase cabe na palma da minha mão.

― Cachorro? Aqui? Nem pensar.

― Dona Flor, eu não tenho ninguém que possa cuidar dela por tanto tempo. A Pituca vai ficar lá na lavanderia, a senhora não pisa naquela área e, portanto, nem vai vê-la.

― Deixe-a num abrigo. Aposto que muita gente vai fazer isso.

― A senhora quem sabe, Dona Flor. Ou a Pituca vem comigo ou a senhora vai ficar sozinha!

― Era só o que me faltava! Chantagem nessa altura do campeonato! Traga meu almoço e deixe-me sozinha. Já tive aborrecimentos demais por hoje.

Após o almoço, Dona Flor conversou com seu filho, no celular, sobre a exigência da empregada para ficar morando com ela durante a quarentena. José Luiz Rodolpho Narizempé argumentou com a mãe para que ela cedesse e aceitasse o cachorro, já que o cenário que se apresentava não era dos melhores e encontrar outra empregada de confiança, de um dia para o outro, seria muito difícil e até arriscado.

Na cozinha, Jussara estava a fazer contas mentalmente, enquanto lavava as louças e limpava a cozinha. Como ela iria pagar seu aluguel e sobreviver sem o emprego? O salário era baixo, mas ela conseguia quitar todos seus compromissos mensais e ainda sobrava um dinheirinho para sua cervejinha de final de semana. Dona Flor era uma "casca de ferida", mas ela gostava do emprego e já estava acostumada com as grossuras de sua patroa. Mas abrir mão da Pituca, nem pensar! Ela era sua companheira de todas as horas quando estava em sua casa, um doce de criatura, não merecia ser abandonada. Só de pensar nessa hipótese, seu coração doía. Passariam fome, ela e sua cachorrinha, mas ficariam juntas! No final da tarde, estava na área de serviço juntando seus pertences e quase caiu no chão de susto, quando viu Dona Flor ali ao seu lado.

― Pode deixar todas as suas coisas aí mesmo. Amanhã você vem com sua mala e a cachorra. Vou abrir uma exceção, mas.... não quero o animal fora da área da lavanderia, estamos entendidas? Meu filho, que é muito justo e generoso, sugeriu um complemento salarial durante o período que você morar aqui comigo. Você está ciente que não poderá sair para passeios e encontros, mesmo nos finais de semana?

― Estou, sim, Dona Flor. Muito obrigada por aceitar a Pituca. Eu prometo que ela não vai lhe incomodar. Ah! Quanto ao salário extra, isso vai me ajudar bastante. Uma mão lava a outra, né?

― Espero, realmente, não me arrepender da minha decisão. Aqui está um dinheiro para pegar o táxi amanhã. As compras no mercado serão feitas por telefone. Quando eles entregarem os produtos, você terá que higienizar tudo. Assim será durante todo o isolamento. Quando entrar em casa, deve tirar o sapato, tomar um banho, trocar a roupa, higienizar as mãos com álcool em gel. Lave o cachorro também, pois ouvi notícias de que os animais podem transmitir o vírus. Mantenha distância de mim e use máscara em casa durante quatorze dias a partir de amanhã. É o tempo necessário para você manifestar a doença, caso esteja contaminada.

Jussara absorveu apenas metade das informações passadas por Dona Flor. A única parte que ela fixou foi que poderia trazer a Pituca e pegar um taxi. Isso era o mais importante. O restante ela aprenderia depois.

No dia seguinte, Jussara chega ao seu local de trabalho bem cedo, antes da Dona Flor acordar. Ela foi direto para a lavanderia arrumar um lugarzinho para deixar a Pituca. Colocou sua mochila com roupas no quarto dos fundos, tomou seu banho e colocou o uniforme. Antes de voltar à cozinha, desinfetou seus sapatos e colocou a máscara facial. Aos poucos, ela foi se lembrando de todas as instruções que sua patroa passou. Quando Dona Flor acordou, percebeu o movimento na casa e tomou um susto.

― Jussara, você caiu da cama hoje?

― Bom dia, Dona Flor. A senhora está melhor? Como eu peguei um taxi, acabei chegando cedo. Foi bom, porque consegui arrumar minhas coisas e desinfetei tudo como a senhora pediu. Deu para eu trazer até minha pequena TV para assistir minhas novelas à noite.

― Desde que você não me incomode com barulhos, pode fazer o que você quiser após o término do seu horário de trabalho.

Jussara acompanhou Dona Flor até a sala de jantar, onde preparou a mesa para o desjejum. A patroa se sentou e esperou para ser servida.

― Após o café da manhã, vou ligar para o mercado e fazer uma boa compra, assim não teremos que receber o entregador todos os dias. Quanto menos contato com gente de fora, melhor. As autoridades estão solicitando para que as pessoas fiquem em casa, mas há muitos sem noção que insistem em sair.

― Ah, Dona Flor! Nem todas as pessoas podem ficar trancadas em casa, né? Alguns precisam sair para trabalhar.

― Bobagem, vai estar tudo fechado. As pessoas têm que ter bom senso. O isolamento é necessário. O brasileiro deveria se espelhar no povo italiano. Lá eles cumprem aquilo que é determinado pelos governantes do país.

Jussara franziu a testa e fechou os olhos antes de falar.

― Vem cá, Dona Flor, estou aqui pensando com meus botões. Se ninguém vai poder trabalhar, como a gente vai conseguir viver? O mercado também vai fechar? O padeiro não vai fazer pão? Onde vamos comprar remédios? Quem vai catar o lixo da rua? E quem vai tomar conta da portaria do condomínio? Não vai ter polícia nas ruas e nem médicos nos hospitais?

― Deixe de falar bobagens, Jussara. Lógico que os serviços essenciais serão mantidos, senão todos morreriam. Eu me refiro àqueles trabalhadores que não fazem parte desse grupo.

― Ah, tá! Entendi. A senhora está falando do pessoal que trabalha nas fábricas e nos escritórios, né?

― Sim, exatamente.

Jussara ficou pensativa, enquanto aguardava a patroa tomar seu café.

― Mesmo assim, Dona Flor, ainda tenho umas dúvidas. Se os bancos e as lotéricas não abrirem, como vamos pagar as contas?

― Faremos os pagamentos pela internet. José Luiz Rodolpho vai fazer isso para mim. Eu nem preciso me preocupar. As compras serão pagas com cartão.

― Certo, entendi. E quem não tem internet, tipo assim... como eu?

― Ahhhh... bem... não sei dizer, mas sempre há um jeito, Jussara. Deixe-me terminar meu café em paz. Esse seu interrogatório está me deixando tonta.

Jussara voltou para a cozinha e aproveitou para ligar para seu gatão.

― E aí, doçura, deu tudo certo?

― Sim, cheguei cedo e já me instalei. Trouxe até minha TV. Pituca está lá quietinha no cantinho que arrumei para ela.

― Foi bom você ter me ligado, Ju, porque tenho algo importante para lhe contar. Como as obras da construção civil foram paralisadas, estou desempregado. Não terei como me manter aqui em São Paulo sem um trabalho. O dinheirinho que economizei não paga dois meses das minhas contas. Liguei para minha mãe lá no Norte e ela mandou eu voltar para casa. Lá poderei trabalhar na roça e terei teto e comida. Não sei quanto tempo vai durar essa confusão. O mundo virou no avesso.

Jussara começa a soluçar e lágrimas inundam a sua face.

―Naldo, não me diga uma coisa dessa! Se você tivesse me contado antes, eu iria com você para o Norte. Sabe Deus quando verei você novamente, isso se voltar a lhe ver.

― Minha doçura, não fica assim. Tive que resolver tudo de uma hora para outra. Só hoje me avisaram que eu havia perdido o emprego e estão dizendo que vão fechar as estradas, assim como já fizeram com os aeroportos. Ninguém poderá viajar. Se eu não picar a mula hoje mesmo, amanhã poderá ser tarde demais. A gente vai continuar se falando pelo celular. Não vou esquecer você, Ju, fique certa disso. O destino está contra nós agora, mas o jogo vai virar. Confie em mim.

― Eu nem pude me despedir, provar sua boca pela última vez!

― Não é hora para dramas, Ju. Temos que ser práticos. Não existe essa história de "o nosso amor e uma cabana". Sem grana, a gente não sobrevive. Vou desligar, pois tenho que correr para resolver as coisas. Quando chegar no meu destino, eu lhe darei notícias. Cuide-se! Tenha paciência com sua patroa chata e metida, pois ela manteve seu emprego, você vai morar em um lugar melhor e ela até aceitou receber a Pituca. As coisas vão ficar difíceis para muita gente. Sem emprego, as pessoas não terão dinheiro para se manter e vão passar fome. Pensa nisso e veja como você é sortuda. Você é a dona do meu coração e isso não vai mudar, mesmo estando distante.

― Eu também amo você, meu Gostoso. Deus lhe acompanhe e proteja, Naldo. Não esqueça da sua doçura. Ficarei aguardando notícias suas.

― Nunca, doçura. Até um dia. Beijos nessa sua boquinha deliciosa. Tchau.

Naldo desligou e Jussara continuou a olhar para a foto dele no seu celular. Ela não conseguiu conter a cachoeira que se abriu com a notícia inesperada.

Dona Flor entrou na cozinha e a viu debruçada na pia.

― Jussara, você esqueceu das suas obrigações? Vai ficar aí parada sem fazer nada?

Jussara respondeu para sua patroa sem se virar, para que ela não visse suas lágrimas.

― Dona Flor, a senhora me desculpe. Acho que comi algo que me fez mal e preciso ir ao banheiro. Já volto para continuar meu serviço.

― Então, vá logo! Daqui a pouco o entregador chegará com as compras.

Jussara correu para o banheiro e chorou mais um pouco. Depois, respirou fundo, lavou o rosto e voltou para a cozinha. Naldo tinha razão quando disse que ela teve muita sorte. Ela não jogaria fora essa chance; seria a melhor companhia que a Dona Flor poderia ter.

Uma semana se passou sem que Jussara recebesse notícias de Naldo e o celular dele continuava sem sinal. Será que ele conseguiu viajar naquele mesmo dia? Quanto tempo levaria para chegar à sua cidade natal? A falta de sinal no celular seria porque o aparelho descarregou?

A sua rotina continuava a mesma. Às dezoito horas, encerrava seu dia de trabalho, tomava um banho, pegava Pituca e ficavam as duas no quarto assistindo TV até o sono chegar. Dona Flor parecia estar sentindo muito o isolamento forçado. Seu filho ligava rapidamente, uma ou duas vezes ao dia, apenas para tratar de assuntos financeiros. Era visível o abatimento de sua patroa e, algumas vezes, seus olhos mostravam-se inchados de tanto chorar. Jussara se compadecia dela, porém Dona Flor não dava espaço para ela ser nada além de uma empregada!

Março findou! Abril também já estava por terminar e a situação no mundo estava cada vez mais caótica. Os governantes já sinalizavam que a pandemia poderia se prolongar por meses. Jussara se esforçava para cuidar de tudo com esmero. Ela preenchia todo o seu tempo com o trabalho braçal para evitar de pensar em Naldo que não deu mais notícias. Seus pensamentos em relação a ele nunca eram positivos e variavam da traição à morte do seu amado, criando sentimentos contraditórios em seu coração. A residência de Dona Flor nunca esteve tão limpa e arrumada, porém sua patroa estava cada vez mais apática. Já nem se arrumava mais. Passava o dia com seus trajes de dormir e Jussara desconfiava que nem banho ela estava tomando diariamente. Seu apetite havia reduzido muito e, mesmo caprichando no menu, Jussara percebia que sua patroa mal tocava no prato que ela arrumava.

Em um domingo à noite, Dona Flor teve um ataque de histeria e quebrou várias louças e peças de decoração caríssimas. Jussara estava recolhida em seu quarto com Pituca no colo e se assustou com o barulho. Saiu correndo em direção ao quarto de sua patroa.

― Dona Flor, Dona Flor, o que aconteceu?

― Eu não aguento mais essa vida. De que me adianta fortuna, prestígio e saúde, se não posso estar com aqueles que amo? Não mereço esse castigo; Deus está sendo muito injusto. Sempre fui uma pessoa boa e justa, nunca prejudiquei ninguém e o que eu ganhei em retribuição? Solidão!

Dona Flor chorava desconsoladamente, o que fez Pituca começar a ganir.

― O que esse animal tem? Faça-o se calar.

― Ah, Dona Flor! Pituca não suporta ver alguém chorando. Ela fica desesperada e chora também. Peraí que vou pegar uma água com açúcar para a senhora se acalmar.

Jussara estava tão impressionada com o que viu naquele quarto, que colocou a Pituca no chão e saiu correndo em direção à cozinha. Quando retornava com o copo d'água, se deu conta que havia deixado a cachorra no quarto da patroa. Quase teve um ataque de pânico só de pensar no que Dona Flor poderia fazer com sua peludinha. Sua surpresa foi ainda maior e, por pouco não solta o copo que segurava, com a cena que encontrou ao retornar. Pituca estava no colo de Dona Flor que a acarinhava lentamente. Ambas haviam cessado o choro.

― Dona Flor, desculpa a minha falha. Estava aflita com seu estado e acabei esquecendo a Pituca aqui.

― Fique tranquila, Jussara. Pituca e eu nos entendemos muito bem. Ela é muito amorosa.

― Sim, ela é assim mesmo. Nunca consegui entender como uma pessoa pode abandonar uma coisinha tão doce como essa numa lixeira.

― Você a encontrou em uma lixeira? Não acredito!

― Sim, em um domingo de manhã, quando fui colocar meu lixo na caçamba da rua, escutei um chorinho baixo. Investiguei o local e fui afastando a sujeira até descobrir de onde vinha o som. Ela estava dentro de um saco, Dona Flor, fraquinha. Se eu não a tivesse encontrado, iria morrer ali em poucas horas.

― Isso é revoltante! Parabéns pela sua atitude corajosa, Jussara. A recompensa veio em forma de uma amizade fiel.

Os olhos de Jussara ficaram marejados. Era a primeira vez que recebia um elogio de sua patroa.

― A partir de hoje, pode deixar essa belezinha andar pela casa. Não a quero restrita à área de serviço. E, quanto a você, venha me fazer mais companhia. Estamos somente nós duas aqui e não há sentido em ficarmos afastadas, cada uma em um canto. Sinto-me presa em um mausoléu. A partir de amanhã, faremos as refeições juntas e passaremos nosso tempo livre assistindo a TV aqui na sala. Você sabe jogar buraco, pife-pafe ou rouba-monte?

― Não, Dona Flor. Nunca peguei em um baralho.

― Ah, é fácil! Eu vou lhe ensinar. Sinto falta das reuniões vespertinas nas casas das minhas amigas, onde tomávamos chá e jogávamos cartas. Em algumas ocasiões, apreciávamos um bom vinho ou um licor, sempre com moderação, evidentemente.

― Dona Flor, a senhora está bem? Está com febre?

― Lógico que estou bem, Jussara. Só não quero mais essa solidão que tenho vivido. Esse isolamento pode nos proteger do vírus, mas vai nos matar de depressão. O ser humano tem necessidade de sociabilizar. Ninguém aguenta mais ficar trancado em casa. No começo, meu filho e minha neta me ligavam duas, até três vezes ao dia, agora, parece que me esqueceram. Suas chamadas são quinzenais e duram apenas dois minutos. Se eu reclamo a falta deles, pedem para eu parar com o drama e alegam que o mundo inteiro está em crise. Como se eu não soubesse! Ninguém vai resolver a crise mundial, mas podemos olhar para o lado, para quem está próximo e tentar ajudar.

― Eu lhe entendo, Dona Flor, muito mais do que a senhora imagina.

― Pois é Jussara, seremos só nós duas e nem sabemos por quanto tempo. Se a vida nos deu limão, faremos uma boa caipirinha.

Jussara ri e comenta.

― Dona Flor, a senhora gosta de uma "caninha", hein?

No dia seguinte, a pedido de Dona Flor, todas as refeições passaram a ser feitas na sala de jantar com a mesa posta para as duas. Pituca agora fica mais tempo no colo da patroa do que no seu cantinho. Jussara estava até um pouco enciumada, mas compreendia que a companhia do bichinho estava fazendo um bem enorme para Dona Flor.

Quase um ano havia se passado sem que os habitantes do planeta vissem uma solução definitiva para a crise. Os governantes e outros órgãos de regulamentação se revezavam em trazer informações desencontradas.

Dona Flor e Jussara assistiam aos noticiários da TV, enquanto jogavam cartas.

― Dona Flor já não sei mais no que acreditar. Se ficamos em casa, vamos ter depressão, porém, se sairmos, seremos contaminados. Recomendam o uso de álcool em gel à vontade, mas corremos o risco de ter a pele ressacada. Querem que a economia ande, mas o comércio está todo fechado e é proibida a circulação de pessoas. Pedem para fazermos exercícios em casa, mas sempre com a orientação de um especialista para não prejudicar o corpo. Querem a vacina, mas o medicamento feito às pressas pode ser perigoso. Isso está parecendo coisa de doido.

― Você está correta na sua análise, Jussara. Isso tudo é fruto da falta de capacidade do homem para lidar com o desconhecido. Também há muita politicagem e interesses escusos no meio desse balaio de gato, como você costuma dizer.

― Dona Flor, espero que a senhora não se zangue, mas.... bati, de novo.

― Jussara, estou percebendo que criei um monstro! Você tem uma sorte danada no jogo.

O celular de Dona Flor toca e a foto de seu filho aparece no visor.

― Oi, filho, tudo bem? Posso retornar sua chamada mais tarde? Preciso recuperar minha dignidade no jogo. A Jussara já ganhou três partidas seguidas.

― Está certo, mãe. Quem lhe viu, quem lhe vê. Abençoada Jussara!

Dona Flor encerra a ligação e olha para Jussara com ternura.

― Meu filho tem razão quando diz que sua presença é uma benção. Seu jeito doce, sua dedicação, sua amizade, transformaram minha vida. Os efeitos da pandemia extrapolaram os problemas de saúde. Obrigaram as pessoas a adquirirem novos hábitos, a olharem a vida com outros olhos, trouxeram a chance de construirmos novos conceitos, desfazermo-nos de velhos e maus hábitos. Aprendi que nunca é tarde para recomeçar, pois nada na vida é imutável. O melhor jeito de prevenir qualquer doença está em olharmos para dentro, para os nossos corações. Lá está o amor, que a tudo cura. A riqueza não é o dinheiro, foi essa a mensagem mais forte que aprendi. A verdadeira abundância está no dar e receber, no amar e ser amado, na valorização do seu próximo. A crise me deu a oportunidade de me redimir, enquanto ainda estou viva. A melhor prevenção contra esse tal de corona é ser feliz, é estar em paz, é aceitar com serenidade as dificuldades que a vida nos impõe. Peço que me perdoe, Jussara, por todas as vezes que fui intolerante e indelicada com você.

― Dona Flor, assim a senhora vai me fazer chorar.

― Chorar de emoção é bom. Não sei quanto tempo levará para o mundo voltar ao normal, mas gostaria de ter sua amizade para sempre.

― Estarei sempre aqui, enquanto a senhora quiser minha companhia.

Dois dias depois...

Jussara acorda com o toque de seu celular. O visor mostra um número desconhecido.

― Alô!

― Oi, doçura. Que bom que você atendeu.

― Naldo?

Total de palavras do conto: 4336


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