6 - acordo de paz
EU JÁ ME apaixonei umas três vezes durante a minha vida. Acho que paixão não é bem a palavra certa, talvez eu esteja exagerando, mas eu realmente sentia o meu coração palpitar, as borboletas no estômago e todas as outras baboseiras. E, por incrível que pareça, até mesmo para mim, a primeira pessoa por quem me apaixonei foi um garoto.
Como eu disse, talvez eu esteja exagerando ao usar a palavra paixão. Porque, sabe, eu só tinha quatro anos, mas me lembro como se fosse ontem do dia em que ele me apresentou aos biscoitos sabor limão, o que mudou a minha vida para sempre (sem exageros dessa vez). Mas eu nem me lembro do coitado, nem do seu rosto ou do seu nome, só lembro de dividir uma mesma mesa no jardim da infância, e quando paro pra pensar nisso hoje, talvez todo o sentimento falso de paixão que eu nutrisse por ele na época não passasse de amor pelos seus deliciosos biscoitos (e também não exagero quando afirmo que na história da minha vida, foram eles os meus únicos amores verdadeiros).
A segunda pessoa por quem me apaixonei foi a Ariel. Talvez eu tenha desde sempre esse quê de garota emocionada e que ama dar significado a coisas insignificantes, porque a Eva de nove anos não conseguia acreditar em coincidências. Foi uma época da minha vida em que eu fui fissurada em A Pequena Sereia, e então essa garota surgiu, e não bastava ela compartilhar o nome da maldita princesa. Ela era Ruiva. E eu a conheci na aula de natação. Óbvio que as coisas saíram do controle, eu ficava tão nervosa perto dela que quase morri afogada umas oitenta e três vezes, mesmo sabendo nadar bem. Mamãe então decidiu me tirar das aulas e fim, nunca mais vi a menina barra sereia. E isso prova que a Eva de nove anos era tão atraída por garotas quanto a Eva de dezessete.
A última paixão foi há dois anos. E, obviamente, foi de novo por uma garota. O nome dela era Georgia e ela era linda da cabeça aos pés. Mas infelizmente hétero. E, infelizmente, as coisas não saíram muito bem quando acabei a beijando em uma festa da minha antiga escola. Não que ela tenha ficado puta da vida e contado pra todo mundo e tornado a minha vida um inferno nem nada parecido. Mas a gente parou de se falar, o que foi péssimo na época. Então, OK, meio que isso tornou mesmo a minha vida um inferno por um tempo.
Mas agora eu até que tô feliz por não estar apaixonada por alguém. Por enquanto.
Estou pensando nessa coisa de paixão porque quero provar pra mim mesma que nem tudo em mim é ódio. Certo que eu não tenho culpa por tudo nos últimos meses estarem uma verdadeira porcaria, mas eu não quero me atolar em pensamentos negativos nesse momento.
Não antes de cometer um assassinato.
Tá. Eu meio que ainda estou planejando todos os detalhes e é bem provável que, quando toda essa raiva passar, eu acabe desistindo de tudo — o que é uma pena. Mas nesse momento eu ativo meus olhos cinematográficos e vejo a câmera não focar em mim, mas em minha sombra, a tática usada para não capturar explicitamente a cena violenta que está por vir. Equipada com um objeto afiado (ainda estou tentando decidir qual), o sigo em silêncio pelo corredor e, quando ele menos espera, apunhalo o meu amado meio-irmão pelas costas, o sangue manchando as nossas sombras na parede.
Eu juro que não sou tão agressiva quanto aparenta meus pensamentos, mas é que Bruno Vinhedo me tira completamente do sério.
Ouço a batida na minha porta antes das nove da noite, e giro a maçaneta já sabendo quem me espera no corredor. Vi ele chegando não faz nem dez minutos, o carro de um dos seus amigos estacionando no nosso meio-fio.
— O que você quer?
— Um acordo de paz — Bruno responde, direto, entrando no meu quarto sem ser convidado e se acomodando em minha cama. — Nossa, o seu colchão é melhor que o meu.
Fecho a porta. Talvez, se eu buscar a tesoura na minha mesa a alguns metros... É claro que eu seria a principal suspeita e não teria nem como me defender, mas valeria totalmente o risco. Passaria o resto da minha vida na prisão, mas qualquer coisa é melhor do que dividir uma casa com esse garoto. E porra, os meus lençóis estavam limpos.
— Eu não vou aceitar um pedido de desculpas.
— E quem disse que eu vim me desculpar, irmãzinha?
Me acomodo na cadeira giratória, essa que estava próxima à janela por motivos exclusivos de espionagem. O encaro com os olhos semicerrados, tentando entender como a cabeça desse garoto hétero cisgênero funciona. Não vou mentir e dizer que não estou curiosa, porque estou. Mais uma vez, estou perdendo totalmente para a minha curiosidade.
— O que você quer? — repito, meu tom de voz um pouco menos ríspido.
— Sabe, eu tô cagando pra o que você faz ou deixa de fazer naquela escola de merda, Eva — ele diz, ignorando a minha pergunta —, mas é o seguinte. Eu passei anos construindo minha reputação pra você aparecer e estragar tudo.
— Calma aí. Esse drama todo ainda é por eu ter entrado na equipe de Matemática?
Bruno me encara com essa cara de bosta de sempre, apoiado em um cotovelo e deitado de lado.
— Como eu disse, eu não dou a mínima pra isso ou pra qualquer coisa que você faça — ele continua —, mas o problema é que eu quase bombei em Matemática nos outros anos e, se descobrirem que eu agora tenho uma meia-irmã gênia, eu tô fodido.
— Então tudo isso é porque você tem medo de ser zoado pelos seus amigos?
— E porque eu não gosto de você.
Solto uma risadinha. Ainda que eu também não goste nem um pouco desse garoto, pelo menos Bruno é honesto. Ele não é como a Cassandra, que finge gostar de mim e já me forçou até a fazer compras com ela, o que eu obviamente odiei, ou como a Lola, que é uma criança malvada que paga de anjinho mas age no sigilo — eu tenho quase certeza que foi ela quem pôs sal na minha limonada no almoço de ontem.
Por mais que eu odeie admitir isso, assim como venho odiando muitas coisas na minha vida, Bruno e eu até que somos parecidos. Em pouquíssimas coisas, é claro, mas se nos compararmos com suas irmãs, nós dois poderíamos ser a mesma pessoa.
— Certo — me rendo —, o que você quis dizer com "acordo de paz"?
Ele sorri, se ajeitando na cama e se arrastando até os pés dela, para perto de mim. Percebo agora que seus cabelos estão presos em um coque samurai e eu não sei por quanto tempo vou conseguir segurar o riso. Meu Deus, tinha como esse garoto ser mais previsível?
— Faremos assim — Bruno começa. — Ignoramos completamente um ao outro na Escola de Boafortuna, porque da mesma forma que eu não quero isso, duvido muito que você deseje ter alguma ligação comigo. Mas, em contrapartida, a gente finge se dar bem aqui em casa, assim evitamos qualquer conflito, ou pior, uma conversa séria com nossos pais.
— Hm...
— Então, o que me diz, Evazinha?
— Sabe que isso não vai dar certo, não é? — rebato. — Todos vão saber, se já não souberem, quando virem a gente entrar e sair do mesmo carro todo santo dia.
Ele dá de ombros.
— Se ainda não percebeu, estamos sempre chegando no colégio com uns bons dez minutos de atraso, e ninguém atrasado como nós dá atenção pra quem sai ou entra de carros no estacionamento. E quanto à volta, não se preocupe, tenho compromissos depois da aula.
Semicerro os olhos. Maldita curiosidade que me domina.
— O que você faz? Picha muros? Bate em velhinhos? Aposto que é algum ato delinquente que deixaria toda a sua classe alta decepcionada.
— É segredo, e vai continuar assim. — Hm. Touché. — Mas e então, irmãzinha? Temos ou não um acordo?
Repasso a lista de prós e contras. Apesar de todas as coisas boas que isso acarretaria, o único ponto negativo nesse acordo idiota me deixa balançada. Discordar de qualquer coisa que Bruno Vinhedo concorde é, tipo, a minha primeira regra de sobrevivência, o meu mantra matinal. Mudar isso agora me parece, além de arriscado, uma tremenda burrice.
Mas os pontos positivos são dignos de serem considerados. Não existiria esse clã Aquário-Vinhedo que nossos pais tiveram o azar de criar, pelo menos não na Escola de Boafortuna. Poderia seguir com meu retrocesso social sem estar ligada ao Bruno, podendo assim ignorar (com prazer) a sua existência sempre que cruzarmos nosso caminho. Eu continuaria sendo apenas a novata, a garota que ninguém sabe o nome, que ninguém sabe de onde surgiu e que ninguém tem curiosidade de conhecer.
Acredite, isso é um milhão de vezes melhor do que ser conhecida como a nova meia-irmã dos Vinhedo. Ugh (inserir aqui emoji de vômito).
Reviro os olhos, me rendendo. Ergo a mão e a estendo em direção a Bruno, que a aperta bastante animado.
— Fique sabendo que eu também não gosto de você.
— Rá! Estamos quites, então.
Ele pula da minha cama e sai do meu quarto, deixando a porta aberta de propósito. Enquanto me dirijo a ela puta da vida para fechá-la, volto a repensar sobre toda aquela história de assassinato e coisas afiadas e manchas de sangue na parede. Pois é.
Vamos ver até quando esse maldito acordo de paz vai durar.
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