4 - batatas gratinadas e azeitonas
— NÃO ACREDITO QUE você entrou pro Matemagos! — Bruno ri, sentado à minha frente na mesa da sala de jantar.
Eu não entendo o porquê, mas ela é três vezes maior do que a da cozinha. Não sei em que ocasiões Tales Vinhedo recebe vinte pessoas e consegue preencher toda essa mesa, comprida até demais. Vinte pessoas. Cara, nós não conseguíamos receber nem cinco para jantar no nosso antigo apartamento.
— A Eva é muito boa com cálculo — mamãe me defende, enquanto põe uma porção de arroz branco no seu prato. — Sempre foi a melhor da turma na antiga escola.
— Mas o Matemagos é tipo, suicídio social! — Bruno responde, me encarando com um olhar de pena que me dá vontade de estrangular esse garoto. — Se você entrar pra essa merda, pode dar adeus a todas as suas chances de fazer amigos.
— Não tô nem aí — resmungo, revirando os olhos e deixando que Tales me sirva as batatas gratinadas próximas a ele na mesa.
Uma observação relevante: eu não sou como as batatas gratinadas. Não há pessoa no mundo que não goste de batatas, mas, tirando mamãe e talvez o Tales, não há outras pessoas aqui que gostem de mim. Eu sou como, sei lá, o prato de azeitonas intocado no centro da mesa. Ainda que cinquenta por cento das pessoas no mundo amem azeitonas, o restante da população as repudiam pra caramba.
Eu, em particular, odeio azeitonas. Interprete como quiser.
— Não é querendo concordar com o bobalhão aqui, mas ele tá certo, Eva — argumenta Cassandra, pondo apenas uma porção minúscula de salada no seu prato. — Isso vai acabar te colocando em último lugar no ranking de popularidade da Escola de Boafortuna.
— É isso aí! — exclama Lola apontando o dedinho gordo em minha direção, mesmo ela não tendo a mínima noção do que estamos falando.
Cass e Bruno são como as batatas gratinadas. Se destacam onde quer que estejam, são populares e irritantemente adorados por todos. Não me surpreenderia se até mesmo a caçula, que ainda nem chegou ao fundamental, já seja uma batata (metaforicamente falando e no bom sentido) no jardim da infância.
Em um mundo dividido por batatas gratinadas e azeitonas, é difícil que pessoas-batatas e pessoas-azeitonas se cruzem, porque fazem parte de um circulo social totalmente distinto. Mamãe, porém, é uma pessoa-batata que sofreu o azar ao ter uma filha-azeitona, e precisou carregá-la consigo para conviver com uma família-batata extremamente irritante. Eu sou a única pessoa-azeitona nessa casa, e por mais que isso soe solitário e devesse me deixar triste, eu me sinto tremendamente rebelde quando paro para pensar no assunto. Eu meio que quebro todas as regras desse mundo dividido apenas por ocupar uma cadeira nessa droga de mesa de vinte lugares.
Meu Deus, pra que isso? Talvez eu esteja dando importância demais para batatas gratinadas e azeitonas.
— Como eu disse, não tô nem aí — retruco, gesticulando com o garfo em direção a meus irmãos-batatas. — Eu já caí de paraquedas nessa escola na porcaria do último ano, então eu não dou a mínima pra popularidade e essas baboseiras.
— Você está certa, Eva, não dê ouvidos a eles — pede Tales em mais uma de suas tentativas claras de, quem sabe, me conquistar. — E espero que você goste de estar no clube. Se for tão boa como imagino que seja, eles têm sorte por ter você. — Ele sorri. — Sabe, o Bruno nunca se deu bem em Matemática.
— Talvez você pudesse dar aulas a ele, filha — mamãe se intromete, e eu a encaro como se mil lasers pudessem sair dos meus olhos.
Não, muito obrigada.
— Não, muito obrigado — rebate Bruno, e eu suspiro de alivio. — Sobrevivi muito bem esses anos, Gina, não preciso de ajuda.
Cassandra termina a sua porção ridícula, Bruno demora muito tempo no filé e Lola dá trabalho para comer a salada, como de costume. Enfio todo o conteúdo do meu prato goela abaixo e, num gesto de compaixão a todas as pessoas como eu no mundo, retiro uma azeitona do prato e me forço a engolir.
Porque, afinal, não posso negar as minhas origens. Mesmo que eu odeie (pra caramba) azeitonas.
A ÚNICA COISA boa que a mudança para Boafortuna me trouxe foi o quarto gigantesco que ganhei na residência dos Vinhedo. Lembro que o Tales me mostrou o cômodo se desculpando pelo tamanho, o que obviamente não fazia nenhum sentido para mim. Era um antigo quarto de hóspedes, ele disse, como se isso importasse. Porque puta merda, ele consegue ser duas vezes maior que o meu antigo.
Me jogo na cama, buscando uma das almofadas e cobrindo meu rosto. Talvez eu recuse mesmo entrar para os Matemagos, não sei. Mas ainda que eu saiba que o professor Rogério nunca chegará aos pés da Dona Virginia, não me sinto confortável com a ideia de decepcioná-lo. E, qual é, negar fazer parte da equipe só vai fazer com que Bruno e Cassandra pensem que tiveram influência em minhas decisões, o que, é óbvio, não tem nada a ver.
Ah, que se dane.
Busco o celular e os meus fones, colocando minha playlist especial para ler alguma fanfic lésbica aleatória, e não consigo evitar me perguntar se todas as protagonistas dos livros que amo seriam pessoas-batatas ou pessoas-azeitonas. Porque, sabe, eu duvido muito que alguém se interessaria por uma história com uma protagonista como eu, e isso só serve para provar que eu nunca, jamais, em hipótese alguma seria uma protagonista de fanfic. Uma pena.
— É sério, você vai se foder — ouço a voz por cima da música da Zolita.
Parado no corredor, Bruno está com as sobrancelhas erguidas e um sorriso de lado ridículo no rosto. Eu devia ter fechado a minha maldita porta.
— Quer dar o fora daqui?
— Eu só estou tentando te ajudar, irmãzinha — ele diz, soltando um suspiro. — Ninguém vai querer ser seu amigo se você andar com aquela galera do clube.
Tiro os fones e me levanto, caminhando até a porta e segurando a maçaneta.
— Eu não me importo com nada que sai da sua boca, então por favor — respiro fundo —, quer dar o fora da porra do meu quarto?
Bruno continua me encarando. Ele é uns dez centímetros mais alto, o que me dá nos nervos porque faz ele me olhar de cima, como se tivesse superioridade sobre mim, o que, é claro, não tem. Aliás, eu sou vinte e três dias mais velha que ele, vale ressaltar. Então, usando a superioridade que é minha por direito, eu ainda lhe dirijo um sorriso propositalmente falso enquanto fecho a porta na sua cara.
— Só não diga que eu não te avisei — cantarola Bruno no corredor, antes de eu ouvir os passos se afastando e a porta do quarto dele ser fechada.
Eu odeio esse garoto com todas as minhas forças. Todo o desdém, arrogância e heterossexualidade que ele carrega nesses cabelos irritantemente ondulados e nessa pose de bom garoto me enche o saco, e eu não entendo como só eu consigo enxergar a verdade por trás desse sorrisinho de merda. Que inferno.
Ele até me faz sentir vontade de odiar a porra das batatas gratinadas.
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