35 - microfone aberto
BRUNO ESTÁ CHATEADO comigo. Não sei exatamente que tipo de conversa ele e a Mina tiveram, mas sei que alguma coisa importante meu irmão descobriu pra estar com raiva de mim. Não que ele tenha parado de falar comigo ou agido como um babaca como antigamente, mas tem algo no ar que é impossível de ignorar. E esse clima estranho paira como uma nuvem de chuva sobre minha cabeça a semana inteira.
É Dia das Bruxas e eu estou largada no meu quarto sem a mínima vontade de sair. Cassandra foi pegar doces com a Lola — a caçula fantasiada de Tinker Bell — e o Bruno disse que sairia com os amigos para uma festa que eu não faço ideia de qual seja. Ele não me convidou, só pra deixar claro. E eu estou aqui, sozinha nessa casa enorme e silenciosa, sem nada para fazer e sem ninguém pra conversar.
Não me orgulho em dizer isso, mas eu sinto a falta dela. Sinto falta de coisas minúsculas que me lembram ela também. O seu cheiro marcante de hortelã, seus brincos de serpente, seu gosto exagerado por café. Sinto falta da sua risada e das nossas conversas. Sinto falta de buscar o celular só pra responder uma mensagem dela. E, nossa, sinto falta de me sentir grande com ela também.
O pior é que eu não sei se estou triste por sentir falta de Mina Leão ou porque, por culpa dela, algo mudou entre Bruno e eu. Acho que estou assim pela mistura das duas coisas, e eu nunca me senti tão sozinha. E é muito mais difícil lidar com isso quando só existe tristeza pra sentir. Não tem raiva, não tem confusão, não tem medo ou ansiedade sobrando por aqui. Eu só tô muito, mas muito triste.
Procuro meu celular no meio das cobertas, só pra conferir a hora. São quase sete e meia da noite, e eu decido me livrar um pouco da melancolia e ir comer alguma coisa. Talvez esteja passando algo legal na TV também, e eu sempre posso apelar pra um filme ou série on-line, qualquer coisa. Eu só preciso me distrair um pouco.
O andar de baixo está escuro, e eu sigo até a cozinha com passos arrastados. E eu sinto que deveria acender as luzes, mas não faço isso, o que serve de prova pra me mostrar o quanto eu sou idiota às vezes. Acho mesmo que preciso pôr um lembrete fixo no meu cérebro com o seguinte recado: sempre siga seu coração, mesmo que você não faça a ideia do que porra ele está tentando te dizer. Porque, quando chego na cozinha, o susto é tão grande que sou obrigada a gritar muito, muito alto.
— Mas que porra! — exclamo, finalmente acendendo as luzes e me deparando com o idiota parado perto do balcão, a mão na cintura. — O que você tá fazendo aqui?
— Eu moro aqui, esqueceu? — responde, terminando com a água no seu copo.
Bruno está fantasiado do que imagino ser um pirata genérico, o chapéu pendendo em uma mão e um tapa-olho cruzando seu rosto. Passo por ele depressa, meu coração ainda acelerado do susto, e começo a preparar algo pra comer.
— Você não devia tá numa festa ou sei lá? — pergunto, tentando não soar emburrada. Eu não tô com raiva dele, mas é impossível agir normalmente se ele está com raiva de mim.
— E eu tava, mas precisei vir aqui resolver uma coisa com você.
— E você vai falar do que se trata ou...
— Eva, eu sei sobre você e a Mina.
Minha mão para na metade do caminho, impossibilitada de passar a manteiga no restante da fatia de pão. Eu travo. Isso só dura uns dois segundos, e eu tento ao máximo não parecer desconsertada com essa revelação. Também não posso supor que ele sabe tudo, porque não sei até que ponto a Mina foi corajosa pra falar sobre todas as coisas.
Ela teve coragem pra falar sobre todas as coisas?
— Do que você sabe? — pergunto, meus olhos no meu prato.
— Acho que de tudo — ele diz, se acomodando em um dos bancos altos da bancada e me fazendo olhar para ele. — A Mina me contou.
— No dia do casamento?
— Não... quero dizer, sim e não.
Ergo uma sobrancelha, impaciente. Se for pra termos essa conversa, ele precisa ser mais claro do que isso.
— No casamento ela só me contou que tinha rolado umas coisas entre vocês e que não podia mais ir ao baile comigo. Não me explicou o que havia acontecido, e eu não quis insistir pra gente conversar porque eu não queria ser um babaca — Bruno explica, e eu começo a fazer uma torrada para ele, mesmo sem ter me pedido. — Mas ela veio pedir pra gente se encontrar, pra... resolver as coisas. Pra ela me esclarecer o que tinha rolado, entende?
— E o que ela te disse? — pergunto, meu coração batendo tão depressa que parece que estou levando um susto atrás do outro, sem parar.
— Ela disse a verdade.
Olho para Bruno e ele dá de ombros, devagar.
— Eu fiquei chateado por uns dias, acho que percebeu — continua, enquanto caminho até o fogão. Pães de frigideira, é claro. — Me senti traído, e não por ela, mas por você. Achei que tinha feito de propósito, já que a gente meio que se odiava no começo, até eu perceber que não tinha como você ter feito isso. Não dá pra gente fazer alguém se apaixonar por nós. Isso só acontece, e não foi culpa de nenhuma das duas.
— A Mina... tá apaixonada por mim? — sussurro, sentindo as lágrimas virem. Sorte que estou de costas para ele agora, porque eu não posso chorar na frente dele por causa disso.
— Ela não me disse isso, mas deu pra sentir, Eva. O jeito como ela falava de você, o jeito como parecia arrependida por... ter feito o que fez. Eu senti. E eu posso ser um idiota às vezes e não perceber coisas que estão bem na minha cara, mas eu acho que você tá apaixonada por ela também.
Me viro na sua direção, sem saber o que dizer. Apoiada no balcão da cozinha, sinto um milhão de coisas ao mesmo tempo. Me sinto leve na mesma medida que me sinto pesada pra caramba, como se eu me livrasse de um problema e aparece um novo segundos depois.
— Juro que foi sem querer — admito, abraçando o meu próprio corpo num gesto próprio de carinho. — Se eu pudesse, nunca teria visto a Mina desse jeito, ainda mais com você gostando dela desde sempre, mas é que...
— A gente não controla essas coisas — ele diz, sorrindo rápido pra mim. — Eu não escolhi gostar dela, você também não, mesmo eu achando que, se pudesse escolher, você escolheria isso de qualquer jeito.
— Ela é a Mina, né? — murmuro, e ele assente. — É impossível não querer tá perto dela, ser amigo, ou mais que isso. Ela é... ela. E acho que tô apaixonada por essa garota desde o dia em que a conheci, mesmo que isso soe precipitado e falso, mas... é verdade.
Bruno permanece em silêncio, aceitando uma das torradas quando as tiro do fogão e as ponho na bancada. Ele dá uma mordida e eu o acompanho, me perguntando se eu não deveria preparar um café pra acompanhar.
— Sabe — meu irmão diz depois de um tempo, a boca cheia —, acho que você devia dizer essas coisas pra ela.
Quase engasgo, o encarando em silêncio na intenção de fazê-lo perceber como isso soa como uma piada. Falar qualquer coisa pra Mina está fora de cogitação, já que...
— Não sei se percebeu, Bruno, mas a gente brigou — o lembro, indo até a geladeira e procurando algo pra beber. — A Mina não me quer ver nem pintada de ouro, e eu também não devia querer vê-la, já que ela também teve culpa no que aconteceu. E, sabe, ela partiu o meu coração e... Você quer beber uma cerveja?
— Quero — ele diz, e eu jogo uma latinha na sua direção. — E qual é, Eva? Vocês não têm cinco anos. Sabe o que eu acho? — Nego com a cabeça, abrindo a minha bebida e já sentindo o cheiro horrível dela. — A Mina desmoronou contando todas as coisas pra mim, e acho que se eu conseguisse fazer você falar, ia reagir da mesma forma. Ela pareceu tá desabafando sobre aquilo pela primeira vez na vida, o que significa que vocês nunca chegaram a conversar sobre essas coisas. E é isso que vocês precisam fazer.
— E você acha que vai ser fácil assim? — questiono, parecendo que tô só inventando um monte de desculpas pra não fazer isso funcionar. — Que a gente vai sentar e conversar e resolver tudo?
— Se vocês pararem de agir feito crianças, sim, eu acho.
Dou um gole na cerveja, desistindo dela logo depois. Não importa quantas vezes eu tente beber esse negócio, a vontade de vomitar sempre virá em seguida. Como tem gente que consegue beber isso pra valer?
— Você tá apaixonada pela Mina e ela tá apaixonada por você. Então por que isso é tão dificil pra vocês duas?
Solto uma risada, as lágrimas desrespeitando a minha ordem de permanecerem quietas e caindo com muita fúria. Também queria saber por que é tão dificil resolver isso, mas eu realmente não sei. Também não sei se vou ter coragem de ir até ela e tentar ser honesta de novo, porque da última vez que tentei fazer isso, tudo deu errado. Mas se a Mina falou a verdade para o meu irmão, eu quero acreditar que ela vai ter coragem de falar a verdade pra mim também. O problema é que eu não sei como chegar até ela e pedi-la pra fazer isso.
— O que eu faço, Bruno? — pergunto, e minha voz é clara mesmo soando baixa demais.
Vejo Bruno se levantar, vindo até mim e perguntando com o olhar se pode me abraçar. Não respondo, só me aproximo, afundando minha cabeça no seu peito enquanto ele me dá tapinhas gentis nas costas, num gesto amigável e novo. É a primeira vez que ele me abraça, e apesar de ser estranho, não vou dizer que não é bom.
— O que eu faço? — repito, minhas lágrimas encharcando sua fantasia idiota de pirata.
Ele põe as mãos nos meus ombros, me afastando o suficiente apenas pra eu poder olhá-lo nos olhos enquanto responde, cheio de firmeza:
— Você vem comigo.
AS PESSOAS DE Boafortuna levam o Dia das Bruxas muito a sério.
Enquanto Bruno acelera pelas ruas da cidade, vejo pela janela do carro muitas crianças e jovens fantasiados. Adultos também, ainda que não tantos. Contei dezoito meninas fantasiadas de Mulher-Maravilha, um grupo de garotos formando os Vingadores e um trio de amigas vestidas como as Panteras — o que eu particularmente achei bem legal.
— Não acredito que você passou lá em casa só pra me convencer a fazer isso — reclamo mais uma vez, tirando os olhos das pessoas e me concentrando no clima dentro desse carro. Acho que vou passar mal, porque nunca senti tanta falta de ar na minha vida. — E eu não acredito que eu aceitei vir com você.
— Eu não ia aguentar ver a Mina toda triste a noite toda, Eva. É Dia das Bruxas! E eu sabia que você tava do mesmo jeito em casa, então precisei fazer alguma coisa.
— Que merda, Bruno. Que merda!
O pior é que eu sei que, não importa o lugar onde Bruno me leve, eu vou ser destaque. E não porque tô com a melhor fantasia do mundo, mas sim porque tô com nenhuma. Pra falar a verdade, eu nem cheguei a trocar de roupa antes de sair de casa, então estou agora usando uma camiseta tão grande que cobre o meu short, e eu nem vou começar a falar do meu cabelo.
Vou ter sorte se a Mina quiser trocar uma palavra comigo depois de me ver assim, ainda que eu saiba que ela nunca, nunca, nunca ligaria para isso.
Bruno só consegue encontrar uma vaga no fim da rua, essa abarrotada de carros. Por esse motivo, a gente precisa caminhar alguns metros até alcançar a Lanchonete Limonada, tão lotada essa noite que chega a me assustar.
Na primeira e única vez em que estive aqui, meses atrás, não havia mais do que umas quinze ou vinte pessoas, mas agora deve ter bem umas cinquenta. Algo sobre o karaokê estar gratuito deve ter chamado a galera, segundo o cartaz enorme na frente do estabelecimento onde as palavras MICROFONE ABERTO foram escritas em um tamanho exagerado, e eu estou começando a me arrepender de tudo. Tá bem que tô fazendo isso desde o momento em que pisei fora de casa e entrei no carro, mas agora eu tô falando sério. Eu não devia ter saído da minha cama, ainda mais vestida desse jeito.
— Bruno... — murmuro, dando alguns passos para trás antes que ele abra a porta. — Não acho que eu devo entrar. Foi mal, mas...
— Qual é o problema?
— Além de que eu não estou pronta pra falar com Mina Leão? — respondo, lhe dirigindo um sorriso amarelo. — Não tô nem com fantasia, Bruno.
— Ah, nisso a gente consegue dar um jeito.
Ele tira o tapa-olho e não espera que eu aceite antes de colocá-lo no meu rosto, por cima dos meus óculos. Sinto a alça prender em alguns fios do meu cabelo, e eu a ajeito enquanto meu irmão tira a parte de cima da sua fantasia.
— Não é um paletó, mas é um colete bacana. Acho que tem cinquenta por cento de poder nele, e você precisa disso mais do que eu.
Sorrio, agradecendo pela roupa enquanto a visto. É um colete marrom sem mangas e que não combina em nada com a minha camiseta, mas prefiro continuar com ele pra não fazer desfeita. Estou muito longe de parecer com um pirata e Bruno agora tá só com metade da sua fantasia, mas de algum jeito eu tenho coragem de segui-lo para dentro da lanchonete.
E eu retiro o que disse. Não tem cinquenta pessoas, tem bem umas cem, e eu não sei como cabe tanta gente aqui dentro. Esbarro em pelo menos uns dez ombros tentando alcançar o balcão, onde encontro todas as cadeiras ocupadas.
— A Mina tá ali, ó — avisa Bruno, apontando com o indicador para a parede ao lado do palco, onde ela e as amigas estão conversando.
Meu coração para de bater e de repente é como se esse lugar estivesse vazio. Só existe eu e Mina Leão nessa maldita lanchonete ou quem sabe no universo inteiro, e não tem outra coisa no mundo que importe nesse instante além dela. Apoiada com as costas na parede, ela tenta prestar atenção no que tá rolando à sua volta, mas dá pra perceber que sua cabeça tá distante, seus pensamentos bem longe daqui.
Eu quero ir até lá e dizer que ela está linda, porque, minha nossa, ela está. Não me lembrava mais como era a Mina de cabelos compridos, mas consigo me recordar graças ao aplique que está usando. E a sua fantasia da Marceline cai perfeitamente bem: a calça jeans justa, as botas vermelhas e essa blusinha cinza e básica que acentua seus seios. A única coisa que falta são as presas, e ainda que elas talvez ficassem engraçadas, eu também as acharia perfeitas pra caramba.
Mina Leão está linda, e eu preciso dizer isso para ela.
— Eu não posso só me aproximar e... falar que tá tudo bem — me lembro, tirando com muito esforço os meus olhos dela e encarando o Bruno. — A gente ainda tá brigada, e da mesma forma que ela me magoou, eu sei que também a magoei pra caralho. Não posso fingir que nada aconteceu.
— Quer que eu vá lá e diga que você quer conversar?
Faço uma careta, repudiando essa ideia imediatamente.
— Não, não preciso de um cupido, eu só... — gaguejo, encarando com meu olho livre as minhas próprias mãos, já começando a suar. — Não sei o que dizer pra ela, Bruno. Todas as vezes que pensei que sabia, eu não sabia mesmo. E se eu fizer como das outras vezes e estragar tudo?
Bruno me encara por um tempo, sem saber o que responder. Talvez tenha mesmo sido um erro ter vindo até aqui, e eu vou acabar voltando pra casa sem ter feito coisa alguma. Mas pelo menos eu consegui ver a Mina essa noite, usando a melhor fantasia de todas, e acho que isso faz todo esse esforço inútil valer a pena.
— Já sei — diz o meu irmão de repente, fazendo eu virar a minha concentração para ele. — Você não sabe o que dizer, né? Então faz o que as pessoas fazem nos filmes.
— Do que você tá falando?
Ele aponta para o palco, um garoto desafinado cantando alguma música da Miley Cyrus a plenos pulmões.
— Canta pra ela, Eva.
Solto uma risada nervosa, que escapa bem mais alta do que o planejado, sem controle. Esse garoto só pode estar brincando, não é possível que ele esteja me sugerindo isso numa noite como essa. O lugar está lotado, e com certeza não é passando vergonha na frente de tanta gente que eu vou conseguir resolver as coisas com a Mina.
— Você tá maluco se acha que eu vou fazer isso.
— Qual é, eu já te ouvi cantando e você canta bem. E eu aposto que consegue pensar em alguma canção que te lembre a Mina, que te ajude a... chegar até ela de algum jeito.
O pior é que ele está certo. Existe uma infinidade de canções que me fazem lembrar essa garota, e pode soar humilhante, mas ouvi-las foi exatamente o que eu fiz nas últimas semanas. Porque estava fora de cogitação falar ou ver a Mina, mas pensar nela era a única coisa que eu podia fazer. Então eu pensei. Pra caralho.
— Fica aqui — ele me pede, dando alguns passos para trás antes que eu o responda de maneira negativa. — Vou conseguir o palco pra você.
Acho que meu coração parou de bater, ou talvez esteja batendo tão rápido que mais me pareça um zumbido. Mas eu não consigo senti-lo, mesmo pondo minha palma gelada de nervosismo em cima do peito. Não sei se consigo cantar na frente de tanta gente, e mesmo que eu não queira pensar nisso, é melhor do que pensar no que virá em seguida. Porque é mais insuportável ainda pensar no que acontecerá caso Mina Leão esteja disposta a conversar comigo depois de me ver pagar o maior mico da história.
O que ela pode me falar? Bruno não me contou nada sobre o que ela disse para ele, e isso está me matando. Era melhor eu não ter vindo.
Será que ela vai me dizer que acha nossos beijos revolucionários também?
— Vem! — chama Bruno antes que eu note a sua presença, segurando o meu braço e me arrastando pela lanchonete lotada. — Você vai ser a próxima a cantar. Tem muita gente esperando pra fazer isso e eu precisei dar cinquenta reais pra te deixarem furar a fila, então, por favor, não estraga tudo, tá?
— Porra, sem pressão.
— Só pensa nela, tá bem? Vai dar certo!
Alcançamos o palco assim que a pessoa da vez termina de cantar, ela agradecendo os aplausos antes de devolver o microfone. Bruno me dá um empurrão para subir no palco, eu tropeçando nos únicos dois degraus no caminho. Acho que vou morrer, e não estou exagerando.
— Já sabe o que vai cantar? — pergunta o cara da máquina de karaokê, e eu preciso engolir em seco antes de pedir a lista com as músicas disponíveis.
Posso cantar algo romântico genérico, posso cantar uma canção que eu sei que ela goste, ou talvez apelar pra uma música sáfica que diga tudo o que eu quero dizê-la. Mas precisa ser algo pessoal. Precisa ser algo para ela, cem por cento.
— Essa aqui — aviso, apontando para a música e mostrando para o homem no canto do palco.
A melodia inicia assim que me aproximo do microfone, os murmúrios de algumas pessoas soando altos demais para mim, elas achando a música uma boa escolha ou uma péssima escolha, não sei. Mas eu tento me concentrar em uma coisa: eu não tô cantando pra nenhum deles essa noite, só para ela. Então concentro meu olhar em Mina Leão, à minha esquerda, que agora me fita com um olhar que não consigo ler.
— Gosto muito de te ver, leãozinho, caminhando sob o sol. Gosto muito de você, leãozinho — começo a cantar, me aproximando ainda mais do microfone e o segurando com as duas mãos. — Para desentristecer, leãozinho, o meu coração tão só, basta eu encontrar você no caminho.
Mais uma vez, é como se todas as pessoas sumissem. Eu não vejo mais as milhares de fantasias e não ouço mais a sinfonia de vozes diferentes que preenchem a Lanchonete Limonada essa noite. Absolutamente tudo some bem diante dos meus olhos, ou melhor, do meu olho cinematográfico, que agora só enxerga ela. Mina está sorrindo para mim enquanto canto, e é somente nisso que eu escolho me concentrar. Vou sentindo meu peito relaxar cada vez mais, minhas batidas em sincronia com a música, enquanto permaneço cantando para ela, e só para ela.
— Um filhote de leão, raio da manhã. Arrastando meu olhar, como um ímã. O meu coração é o sol, pai de toda cor, quando ele me doura a pele ao léu.
Não me importo se estou desafinada, se estou cantando no ritmo certo. A verdade é que nem estou olhando para a letra passar, porque tudo o que consigo ver é ela. Aqui, bem perto de mim, sorrindo. E, meu Deus, ela tá sorrindo de um jeito bom.
Meus sentidos só voltam quando a música termina, eu sendo consumida pelos aplausos das pessoas presentes. Agradeço meio sem jeito enquanto permaneço com meus olhos em Mina Leão, que parece estar chorando. Ela ainda sorri, também aplaudindo, e eu sinto meu estômago revirar com essa nova possibilidade. As coisas podem dar certo dessa vez. E mesmo eu sendo a pessoa mais pessimista da face da Terra, vou me agarrar a esse resquício de esperança até o último momento.
Devolvo o microfone, pulando do palco no mesmo instante em que noto Mina Leão caminhar até mim. De longe, vejo Bruno fazer um sinal de positivo, e eu engulo em seco. Então, é agora. Talvez ela me abrace ou, quem sabe, eu leve um tapa na cara.
Mas eu não sei como reagir quando Mina continua andando, passando direto por mim e seguindo até o palco.
— Ei! — um garoto reclama, possivelmente a pessoa que iria cantar depois de mim. Mas a garota já está com o microfone na mão, segurando-o firme enquanto tenta parar de hiperventilar.
— Me desculpa, eu sei que não devia tá fazendo isso e que possivelmente vou ser barrada do Limonada pra sempre, mas... eu preciso fazer uma coisa importante — ela avisa para as pessoas, seus olhos indo da plateia até mim. — Prometo que é rápido e que nunca mais vão precisar me ver aqui em cima, mas por favor, me deixem fazer isso, tá?
Alguém resmunga alguma coisa, mas Mina não espera uma resposta definitiva antes de continuar, as mãos tremendo enquanto tenta permanecer com o microfone próximo da boca.
— Eu não odeio como você dança. E não odeio quando escolhe dançar comigo, também. Eu não odeio o fato de você ser tremendamente inteligente, e nunca se gabar mesmo sabendo disso. Não odeio o seu sorriso, não odeio o seu cheiro e com certeza não odeio a sua coragem absurda em ser quem você é.
Ela diz tudo olhando para mim, caminhando pelo palco até estar próxima de onde estou. Mina continua chorando e vê-la aqui, bem na minha frente, me faz chorar também. É a primeira vez em muito tempo que estamos próximas assim, no sentido literal e figurado. Nunca estivemos tão próximas, pra falar a verdade.
— Eu não odeio como você canta. Cara, eu não odeio mesmo isso, porque você canta muito bonito, e eu poderia te ouvir cantar todos os dias da minha vida. Não odeio como você sempre é gentil, não odeio o fato de que você achar que é uma pessoa mal-humorada, mas nunca tenha sido comigo, e não odeio como você sempre sabe o que me dizer, mesmo quando nem eu sei explicar o que tô sentindo.
Ela respira fundo algumas vezes, secando as lágrimas em vão, já que novas sempre fazem questão de aparecer. Meu estômago está revirado, todas as borboletas que eu nem sabia que ainda existiam lá fazendo uma festa das grandes. Eu não sei o que dizer, não sei como reagir, então só permaneço estática, olhando pra obra de arte em forma de garota à minha frente.
— Eu não odeio como você faz eu me sentir, Eva — ela continua, soltando um suspiro demorado. — Você faz eu me sentir a pessoa mais especial do mundo, porque eu sou sempre grande com você. Eu não odeio como você faz eu me sentir Saturno, porque eu amo isso pra caralho. E... eu não odeio a sua boca, não odeio a loucura que ela faz quando encontra a minha, e não odeio a loucura que ela me faz fazer, também. Eu não odeio como todos os nossos beijos pareceram certos, mesmo que eu tenha tentado me convencer do contrário. E, meu Deus, eu não odeio como você me motiva a ser corajosa. Porque eu nunca teria coragem de tá fazendo uma coisa dessas, mas vale a pena pela garota certa.
Mina pula do palco, as pessoas em volta dando espaço para que ela consiga andar até mim. Sinto o olhar de todos em nós, mas eu não me importo. A única coisa importante agora é isso, eu e ela juntas, bem aqui.
— Você me falou que gostava de lembrar de todas as coisas que não odiava em mim — ela diz, já perto demais, e ainda segurando o microfone com as duas mãos. — Então eu quero que saiba sobre todas as coisas que eu não odeio em você também. Porque não tem nada em você que eu odeie, Eva Aquário. — Mina solta uma risada que soa mais como um soluço, ela dando um passo corajoso à frente. — A verdade é que eu amo tudinho em você, e me desculpa por não ter te contado isso antes. E meu Deus, me desculpa por isso também, eu... — ela afasta o microfone, nervosa e soltando um suspiro —... não tava planejando todo esse espetáculo, foi no improviso.
Mesmo sem sua voz soando nos alto-falantes da lanchonete, todo mundo consegue ouvir Mina Leão. Ninguém ousa abrir a boca pra falar nada, porque todos estão concentrados em nós duas. O silêncio que consome toda a Limonada está me deixando ansiosa, e eu prendo a respiração por causa disso, sem coragem de me mover.
— Eu te imploro, Eva, diz alguma coisa. Qualquer coisa, senão eu vou morrer de ansiedade.
— Eu... — gaguejo, tossindo pra minha voz soar melhor —... Eu quero só te fazer uma pergunta. — Mina assente, parecendo desesperada, enquanto tomo coragem pra dizer o que eu quero dizer há muito, muito tempo. — A gente pode, por favor, se beijar?
Mina solta uma risada nervosa, concordando novamente enquanto dá mais um passo à frente, meu peito parecendo prestes a explodir. Não acredito que isso está realmente acontecendo, mas, antes que ela me alcance, Mina ergue um dedo no ar, me pedindo paciência.
— Um segundo, é rapidinho.
Ela corre de volta para o palco, devolvendo o microfone para o garoto que deveria estar cantando nesse momento, que agradece dizendo que tá tudo bem. E nossa, ele nem faz ideia do quanto isso é verdade. Não paro de sorrir, e eu quero gritar, chorar e morrer de rir porque, diferente de mais cedo, agora eu sinto tudo. E isso é bom, empolgante e muito, muito, muito extasiante.
Tão extasiante quanto vê-la correrde volta até mim e finalmente sentir os seus lábios tocarem os meus.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro