
32 - trégua definitiva
A GRAMA MACHUCA as minhas costas, mas não estou muito disposta a levantar. Não sei há quanto tempo tô aqui fora, mas sinto que chorei dez vezes mais do que já havia chorado durante toda a minha vida. A adrenalina se esvaiu do meu corpo e tudo o que tenho agora é um coração partido em um milhão de pedacinhos.
Ela nunca mais vai querer olhar na minha cara, e mesmo que eu esteja furiosa com ela, comigo mesma e com a droga do universo, também estou triste pra porra. Seria melhor não ter falado nada, ter ficado quieta. Se eu não tivesse mandado aquela mensagem, tudo teria continuado da mesma forma, e Mina e eu ainda seríamos amigas, mesmo comigo sabendo que essa não seria a solução mais saudável do mundo.
Pelo menos eu só preciso aguentar mais alguns meses. Daqui a pouco o ano letivo termina, e depois da formatura eu nunca mais precisarei me preocupar em cruzar com Mina Leão nos corredores da escola ou me sentar na carteira ao lado da sua. Eu consigo sobreviver até lá, ainda que eu saiba que vai ser a coisa mais difícil do mundo. Mas eu consigo. Preciso conseguir.
— O que você tá fazendo, hein?
A voz irritante do Bruno reverbera pelo jardim, inundando a rua vazia do nosso condomínio. Não movo um músculo e espero que ele não note as lágrimas ainda persistentes quando se aproxima, me encarando com as mãos na cintura enquanto seu cabeção me impossibilita de ver boa parte do céu.
— Tô olhando as estrelas — minto, piscando algumas vezes pra afastar o choro que já embaça minha vista.
— No meio do nosso jardim? — ele pergunta, as sobrancelhas franzidas. Solto um suspiro em resposta e ele faz o mesmo, parecendo cansado. — Sabe, maninha, eu tô começando a me preocupar com você.
— Eu tô bem, Bruno.
— Não tá, não. Eu não sou cego, Eva. — Bem, meio que é sim. — Tem alguma coisa que eu possa fazer pra te deixar melhor? Quer, sei lá, conversar um pouco?
Encaro meu irmãozinho sem acreditar no que tô ouvindo, me segurando pra não lhe dirigir uma resposta grosseira. Quero ficar sozinha, mas ele parece disposto a continuar sendo uma pedra no meu sapato, e é estranho. Uns meses atrás, Bruno com certeza me ignoraria completamente se me encontrasse nessa mesma situação, e é um pouco vergonhoso assumir que eu também faria o mesmo. Acho que é a primeira vez que percebo que da mesma forma que lidar com ele foi um saco no começo, eu sei que também não fui lá muito legal com meu irmão.
— Nossos pais já estão dormindo e a Lola também, e a Cass falou que ia passar a noite fora — avisa, depois do meu silêncio duradouro. — Só tem você e eu acordados em casa, e a gente pode parar de fingir que não se gosta e assumir no sigilo que não nos odiamos tanto assim.
Ele estende a mão para me ajudar a levantar, e eu não demoro muito para aceitá-la. Limpo a grama da minha roupa enquanto assisto Bruno buscar o celular, mandando mensagem pra alguém.
— O que tá fazendo?
— Pedindo uma pizza pra comemorar.
— Comemorar o quê?
Bruno sorri, caminhando de costas até a porta.
— A nossa trégua definitiva.
É A COISA mais estranha do mundo inteiro. Estamos deitados juntos nas espreguiçadeiras perto da piscina, dividindo uma garrafa de vinho ruim e uma pizza de calabresa já pela metade. A gente assiste em silêncio a água da piscina se mover, a luz da lua cheia brilhando nela. E é bizarro. Tudo. Bruno e eu juntos, e não por obrigação.
E, sabe, talvez eu não esteja odiando isso tanto assim.
— Foi algo com a Mina, não foi?
Por mais burro que meu irmão possa ser pra algumas coisas, eu sei que uma quantidade mínima de neurônios deve funcionar na sua cabeça. Ele pode viver nesse mundinho heteronormativo onde garotas não se beijam e são só grandes amigas, mas não precisa ser muito inteligente pra perceber que alguma coisa aconteceu entre nós duas.
— Uhum — resmungo, dando uma mordida na minha quarta fatia de pizza.
— Vocês discutiram?
— Acho que discutir não é bem a palavra — respondo de boca cheia, e dou um gole na bebida horrível logo em seguida. — Vamos só dizer que tivemos uma briga tão séria que possivelmente nunca mais iremos falar uma com a outra.
— Caralho.
Suspiro, balançando a cabeça em concordância.
— É. Caralho.
Ele tira a garrafa de vinho da minha mão, dando um longo gole. Claro que poderíamos buscar dois copos na cozinha, mas concordamos que beber direto do gargalo era necessário em meio a esse clima deprimente.
— Não tem nada que eu possa fazer pra ajudar vocês duas a serem amigas de novo?
Ai, Bruno, mal sabe que é você o motivo de toda essa confusão, pra início de conversa. Mas não vou pôr a culpa no meu irmão, porque eu sei que a culpada de tudo isso sou eu. Eu e a Mina, ainda que ela finja que não.
— Relaxa, não precisa se preocupar com esse... drama feminino.
Busco a garrafa de novo, a bebida descendo pela minha garganta e queimando o meu peito. O gosto é horrível e parece ter piorado ainda mais agora que está quente, mas não tô nem aí. É muito melhor do que as cervejas da Toca, e eu bem sei que preciso de um álcool correndo em minhas veias nesse momento. Prefiro alguns minutos bêbada e acordar de ressaca do que aguentar uma noite inteira lidando com a sobriedade.
— Não vou mais poder te ajudar com ela — sussurro, abraçando a garrafa e olhando para o céu. — Sabe que não posso mais fazer isso, não é?
— Sei disso — ele responde, olhando pra mim —, e eu meio que já ia pedir pra você parar, de qualquer forma. Mina e eu estamos bem, acho que não preciso mais de ajuda.
Me seguro para não soltar uma risada, bebendo um pouco mais do vinho pra disfarçar.
— Tô pensando em pedi-la em namoro no Dia das Bruxas.
Engasgo. Preciso tossir algumas vezes, imaginando o quanto soaria ridículo e até um pouco engraçado se eu morresse agora, enquanto bebo esse vinho horroroso. O que eu esperava? Que eles iam só se pegar até a formatura e depois fingiriam que nada rolou? Eu sabia que isso ia acontecer cedo ou tarde, então por que estou agindo como se tivesse sido pega de surpresa? E depois da conversa que tive com a Mina, nem ao menos deveria me importar com isso.
Mas eu me importo. Nossa, eu me importo pra caramba.
— O que você acha?
— O que eu acho sobre o quê?
— Sobre eu pedir a Mina em namoro — ele insiste, meio sem jeito. — Se vocês estão brigadas, pode ser um pouco desconfortável, e eu não quero isso pra nenhuma das duas. E foi mal, eu acho que a gente não devia falar sobre ela, né? Não com você deprimida assim.
— Tá tudo bem — minto, fechando meus olhos quando a vontade de chorar volta com muita força. — Eu não me importo.
— Mas não vai ser legal, né? Se ela vir aqui em casa e você estiver por perto e...
Balanço a cabeça algumas vezes, dando um último gole antes de estender a garrafa na direção do meu irmão.
— Não esquenta. Eu nem vou tá aqui no próximo ano.
— Do que você tá falando?
Acho que a decisão de repente se tornou mais fácil. Depois da mamãe, era a Mina a única pessoa que me prendia a essa cidade ridícula, e não estou muito disposta a continuar aqui se tudo por perto agora me machuca tanto.
— Vou fazer o vestibular pra Universidade de Velha Laguna.
— É? Desde quando decidiu isso?
— Faz tempo — minto mais uma vez, me esticando pra ver se sobrou algum pedaço de pizza. — Vou cursar Matemática e sei lá, virar professora.
Meu coração aperta, mas tento ignorá-lo. Talvez só seja efeito da bebida, mas ouvir minhas palavras em voz alta me assusta de repente. Não é isso o que eu quero. Eu não quero fazer Matemática, não quero me mudar pra Velha Laguna, e não quero parecer que estou fugindo. Mas também não posso ficar. Ficar significa respirar os mesmos ares que Mina Leão, significa que possivelmente a verei no meu sofá aos beijos com o Bruno ou em jantares de família regularmente. E como eu sobrevivo a isso? Como eu vou aguentar estar perto dela sem que meu coração parta em um milhão de pedacinhos de novo e de novo e de novo?
— Hm.
O murmúrio que parte da espreguiçadeira ao lado me incomoda, e eu encaro Bruno com as sobrancelhas franzidas. Ele está olhando pra piscina, para a boia em formato de unicórnio da Lola, que se move na água pra lá e pra cá.
— Você quer fazer alguma observação sobre isso ou espera que eu adivinhe sozinha o que essa porra de hm significa?
— Sei lá, Eva, eu só... — ele me encara, dando de ombros —... essa escolha parece muito você, ao mesmo tempo que não parece nada.
— Do que você tá falando?
Bruno se ajeita na espreguiçadeira, ficando de lado pra poder me olhar melhor. A caixa de pizza está infelizmente vazia, mas eu devoro as fatias de calabresa solitárias que ficaram para trás.
— É que tudo soa meio óbvio. Você adora matemática e concordo que se daria bem no curso, mesmo que eu não entenda por que quer estudar algo difícil pra caralho. Mas ao mesmo tempo, você é uma garota curiosa demais pra se contentar com o esperado.
— Eu não tô me contentando com o esperado.
— Claro que tá! Você tá indo pelo caminho fácil — ele rebate, um sorriso no canto da boca que me tira um pouco do sério. — Não tô dizendo que você não deve fazer isso, tá? Não quero ser um filho da puta e desencorajar você. Eu só acho que você deveria, não sei, esquecer um pouco a lógica das coisas e seguir o seu coração.
Encaro o meu irmãozinho sem saber como reagir. Não acredito que estou recebendo esse conselho de novo, e pior ainda, recebendo de ninguém menos que Bruno Vinhedo.
— Prefiro continuar calada do que responder a uma merda dessas.
Ele ri, voltando a relaxar na espreguiçadeira.
— Tá, o conselho foi uma droga, mas é sério — diz, passando a mão pelos cabelos ondulados. — Vai, tenta pensar em todas as possibilidades que você tem. Ignora a lógica, ignora o fato de que muitas coisas seriam impossíveis, e se concentra no que você realmente quer.
— Eu não vou fazer isso.
— Por favor, tô tentando te ajudar aqui.
Reviro os olhos, ajeitando minha postura e abraçando meus joelhos. Não acredito que estou deixando esse garoto dar pitaco na minha vida, mas acho que não tenho o direito de falar nada estando levemente embriagada. Vou deixar que ele vença dessa vez só porque estou um tantinho sensível e triste.
— Tá, eu... — gaguejo, tentando encontrar o que dizer —... gosto bastante de ler e já escrevi algumas coisas. Nada muito bom, mas também... nada muito ruim.
— Quer ser escritora, então?
— Roteirista — assumo, e a verdade súbita faz o meu estômago revirar. — Gosto muito de filmes e seriados e acho que eu posso um dia ter uma ideia legal, sabe? Talvez eu não saiba escrever um livro, mas consiga mostrar o que eu quero em uma tela.
— Tem curso de cinema em Boafortuna, sabia?
— E em Velha Laguna também — rebato, sorrindo um pouquinho. — Interessante. Não sabia que me queria por perto, Bruninho.
Ele solta uma risadinha, dando de ombros de novo.
— Antes era o meu sonho me livrar de você, mas acho que agora eu tô de boa com sua presença. Não é tão ruim assim ter alguém pra conversar — confessa, envergonhado. — Eu amo a Cassandra, mas a gente é bastante diferente em praticamente tudo. E conversar com a Lola não é a coisa mais interessante do mundo também. Sei lá, por mais que me doa admitir isso — ele me encara, pondo a mão no peito de um jeito dramático —, acho que é você a irmã que mais se parece comigo.
— Infelizmente eu vou ter que concordar.
É, com certeza não estou mais sóbria, porque tô falando coisas que eu nunca assumiria em voz alta, ainda mais para o meu irmão. Nunca deixaria Bruno saber que sim, eu concordo que temos muitas coisas em comum, e nem tô falando sobre gostar da mesma garota e etecetera. Me arrisco até em comentar que, se não tivéssemos sido obrigados a viver juntos, nós poderíamos ter nos dado bem como amigos, ainda que ele continue sendo uma batata-gratinada e eu uma mísera azeitona.
— Não era nada pessoal, sabe? — resmungo, olhando pra piscina. — É só que tudo mudou muito rápido. Sempre foi só eu e a mamãe, mas de repente eu tava numa casa cheia de estranhos e você era a pessoa mais fácil de odiar. Sério, você foi um babaca desde o primeiro dia e acho que acabei sendo bem escrota contigo também.
— Você era insuportável — ele responde, sorrindo. — Mas tudo bem, eu te perdoo. Do mesmo jeito que foi uma mudança difícil pra você, também foi pra mim, e... vou logo confessar que escolhi ser babaca de propósito. Eu meio que não suportava a ideia de assumir pra mim mesmo que na verdade eu te achava bastante foda. E, sabe, isso me irritava pra cacete.
Ergo as sobrancelhas, olhando pro meu irmãozinho sem entender do que ele tá falando. Bruno solta uma risada contida, parecendo um pouco desconfortável.
— Vou falar algo bem profundo e sentimental agora, OK? E como minha irmã, você não pode contar isso pra ninguém.
— Prometo.
Ele suspira, tomando coragem.
— Ninguém espera muita coisa de mim, tá legal? — ele diz, encarando as próprias mãos. — Acho que nunca ninguém esperou. Eu não sou lá o mais inteligente da classe ou o mais talentoso da família, e crescer sendo irmão da Cassandra não me ajudou muito. Aí quando meu pai chegou de viagem dizendo que tinha conhecido alguém e que a filha dela era uma gênia e tudo o mais... era como se todas as expectativas que ele tinha sobre meu futuro fossem colocadas em você, como se pudesse finalmente desistir de mim de uma vez por todas. — Bruno coça a nuca, enfim me encarando com esses olhos tristes que geralmente me tiram do sério, mas que agora me deixam com pena. Sim, estou tendo compaixão por esse garoto, e não acredito que estou assumindo isso assim, tão facilmente. — Te odiar era mais fácil do que assumir que eu sentia inveja de você, até ciúme às vezes.
Santo Deus, como a noite chegou a esse ponto? Eu planejei uma conversa sincera assim com a Mina, não com o Bruno, mas não vou mentir dizendo que isso não foi uma surpresa boa. Sério, acho que tô feliz de verdade por tá aqui com ele, mesmo que confessar isso possa matar de desgosto a Eva do passado. Mas foda-se. Posso me arrepender de muitas coisas que fiz nos últimos meses, mas essa não é uma delas.
— Desculpa se te fiz se sentir assim, eu não sabia...
— Tá tudo bem, você não fez nada de errado — ele responde, também ajeitando a postura e se afastando do encosto da espreguiçadeira. — A gente meio que aceitou esse ódio mútuo e sem sentido porque era mais fácil pra nós dois, e é até engraçado pensar nisso, não é? Como a gente acabou fazendo a mesma coisa sem combinarmos.
— É, fomos idiotas juntos.
— Acho que faz bem o nosso estilo.
Solto uma risada baixa, me concentrando na água da piscina enquanto o silêncio se espalha pelo quintal enorme dos Vinhedo. Estou cansada e eu sei que se começar a pensar em tudo o que aconteceu hoje, vou me arrepender de todas as coisas que disse para ela. Porque sabe, eu menti. Menti quando disse que a odiava, porque eu nunca conseguiria sentir algo ruim por aquela garota. Eu posso estar com raiva e posso até ter razão em me sentir assim, mas nada muda o fato de que eu ainda gosto dela. Eu estou apaixonada pela Mina, não importa o quanto eu diga pra mim mesma que isso é mentira.
— Tá ficando tarde, acho melhor a gente entrar.
— Pode ir, eu vou... — ergo a garrafa de vinho no ar —...terminar com a bebida.
— Tem certeza? — Assinto, lhe dirigindo um sorriso triste, mas sincero. — Tá bem. Boa noite, maninha.
— Boa noite, bobão.
Vejo Bruno se afastar e entrar na casa, e volto a assistir a água da piscina se mover com a brisa fraca de Boafortuna. Agora estou sozinha com esse vinho de gosto horrível e essa boia gigante de unicórnio, e, cara, dói pra caramba. Tudo me atinge com muita força, tudo o que eu disse e deixei de dizer e tudo o que ouvi também. Mina e eu não somos mais amigas e se antes eu tinha esperanças de que as coisas pudessem se ajeitar, agora eu sei que todas elas foram por água abaixo.
Mina e eu não somos mais amigas.
Dou um longo gole na bebida, repetindo isso na mente e tentando fazer essa nova realidade parecer real enquanto volto a chorar.
Mina e eu não somos mais amigas.
Mina e eu não somos mais amigas.
Mina e eu... não somos mais amigas.
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