06. O juízo que ela não tem
— Quem era? – Shawn pergunta se aproximando com a caixa repleta de furos, e, assim que a avistei, associei de imediato à situação horrenda a qual tinha acabado de me inserir.
Encarei o homem à minha frente e tentei ao máximo esconder o pânico que assolava meu corpo por inteiro – meu joelho tremia como se eu tivesse tomado um banho gelado na Sibéria –. Eu não podia, né? Deixar que Shawn soubesse, eu digo. Mas como vou contornar a mentira que contei meu pai? E, se eu não for, como vou ter esse dinheiro para conseguir bancar outro estúdio? Não disse? Cheia de furos.
— Meu pai – disse com um sorrisinho mentiroso, guardando o celular de volta na bolsa.
Shawn ergue as sobrancelhas, surpreso.
— Sério? E ele queria o quê?
É a minha vez de erguer as sobrancelhas. Shawn dá um sorrisinho amarelo e se desculpa pela curiosidade. Não o desculpei, gostaria de deixar registrado. Por mais que não quisesse compartilhar do conteúdo da ligação, nossas fofocas era uma das partes mais divertidas no nosso relacionamento, e só aconteciam por sermos curiosos desocupados. Não tem casal mais unido do que o casal de fofoqueiros.
— Achou o que precisava? – perguntei em tom de finalmente e ele concordou, indicando com o queixo o carrinho com tantas coisas quanto minha história tinha furos, quanto a caixa de Fred tinha furos, aliás. Fiz uma careta. — Que eu saiba ele não é um passarinho de elite, Shawn. Fred não precisa desse tanto de coisa — reclamei e o bonito ainda teve a audácia de me revirar os olhos. Acabei revirando junto. — Eu nem estou com condições pra bancar isso tudo.
— E quem disse que é você quem vai pagar? – Antes que eu interferisse, continua: — Considere um presente.
Pela minha pose de "não vai rolar", Shawn percebe que, bom, de fato, não iria rolar. Então, como uma última jogada, resgata Fred da caixa e o traz para bem perto de si, com um olhar de piedade falsa e descarada. O pássaro não parece gostar muito do afago, debatendo-se como podia em sua atadura e, ao ver que estava totalmente imobilizado, tenta se defender bicando o rosto de Shawn, o que me faz rir por parecer beijinhos de ave. Minha risada foi mal interpretada pelo patetão, que acha que ganhou com o argumento de não ter argumento nenhum, já carregando o carrinho para o caixa.
— Argh! Você é insuportável – resmungo, seguindo-o pelos corredores do pet shop.
— Fred não acha isso – retruca convencido, voltando-se para o passarinho já dentro da caixa. — Você quer muitos os presentes, né, filho?
— Filho? – pergunto dando uma risada nervosa. — Coitado. Sou mãe solteira. — Pego de seu cuidado a caixa que guarda o pássaro para provar meu ponto e para deixar as mãos de Shawn livres para que ele passe as compras.
— E daí? Não vou deixar Fred crescer sem uma boa figura paterna.
Não consegui conter a risada, sentindo o olhar da moça do caixa se dividir em nós dois e na nossa discussão sem fundamento. Ignorei-a.
— E o que você tem pra ensiná-lo, hein? Como evitar tomates na floresta? – zombo e recebo seu olhar enviesado por cima do ombro, o que me fez rir ainda mais. Sua cara emburrada durou pouquíssimo diante da minha demonstração de alegria e seus olhos se fixam em mim com tanta intensidade que senti queimar minha pele pálida, até que, sei lá, ela deixasse de ser pálida. Se ele me olhasse assim por mais algum tempo, já poderia imaginar as pessoas me perguntando onde fica esse buraco no Canadá onde todo o sol se concentra.
— Senhor? – a chamada impaciente da moça do caixa tira sua atenção do meu rosto e nos acorda do transe. Olho para a caixa de Fred, constrangida. Além de constrangida, talvez. Mesmo se namorássemos, eu teria ficado com o sangue concentrado nas bochechas como fica em um pau excitado, mas não éramos nem amigos... No final, meu pau teria explodido com o tanto de sangue.
A volta para casa foi silenciosa e desconfortável, e eu sabia que boa parte da culpa era minha. Enquanto o carro estava mergulhado em um silêncio enfadonho, minha cabeça se encontrava em um carnaval. Não do tipo bom, devo dizer. Toda vez que eu considerava começar algum assunto, algo como, não sei, "o que você jantou ontem?", um filme com a mentira que contei para o meu pai começava a rodar em minha cabeça. Não precisava ser mentira, no entanto — e eu me segurava tanto nessa versão das coisas que minhas juntas doíam —. A verdade é que eu não queria ter que dizer para Shawn que, sim, eu viajaria o mundo com ele por Deus sabe quanto tempo, que, sim, nós nos aproximaríamos e que, sim, Ellie Tonta Bamber, sim, você seria extremamente feliz fazendo o que gosta rodeada de pessoas que gosta. Por que eu sou assim? Por que tento tanto evitar minha felicidade? Ah, é. Traumas. Tinha tudo para dar certo se não fosse o que já aconteceu. Shawn teria mudado, por acaso? Porque, pra mim, ele parece o mesmo. Com as mesmas piadinhas, com as mesmas bochechas rosadas quando ficava envergonhado e com o mesmo sorriso ensolarado. Se eu me permitisse, terminaria do mesmo jeito?
— Se eu me permitisse... — Comecei e recebi sua total atenção graças ao semáforo no vermelho. Na verdade, ele parecia esperar qualquer sinal de que eu estava viva. — Se eu me permitisse, Shawn, terminaria do mesmo jeito?
Terminaríamos do mesmo jeito?
Minhas unhas, sem que eu percebesse, fincaram-se no papelão da caixa de Fred esperando por sua resposta. Seus olhos de fogo pareciam confusos e doloridos e só saíram do raio do meu rosto quando o semáforo foi de vermelho para verde.
— O que terminaria do mesmo jeito? – foi tudo o que disse e eu tirei meus olhos do seu rosto, sentindo o mundo ao meu redor turvo, encarando seus dedos sem circulação pela pressão que colocava no volante.
— Nós – disse com dificuldade, como se tivesse engolido um comprimido sem água.
Ele tentou me dar uma resposta. Eu vi sua boca abrir, fechar, sibilar alguma coisa, mas, no final, seu celular começou a tocar e tudo o que eu tive foi uma tentativa. Não era minha intenção, mas não pude evitar espiar quem ligava já que seu celular estava entre os bancos e foi seu toque que nos tirou da nossa própria atmosfera. Era Chloe. Não sei quem é Chloe, mas era o nome que apontava no identificador de chamada. Chloe Walker. Seu nome carregava um emoji de coração. Enquanto isso, meu coração batia tão rápido que quase fez do tráfego mudo. Shawn resgatou seu celular de onde estava e o atendeu rapidamente, intercalando o olhar entre a estrada e eu, para minha surpresa. E, para sua surpresa, o aparelho estava conectado em seu rádio, ou seja, Chloe, em vez de falar "oi, gatinho, que saudade" apenas no ouvido encardido de Shawn, falou pelos autofalantes do carro para que não só ele pudesse ter a reação que quisesse, mas que Fred e eu também pudéssemos compartilhar desse momento incrível. Juro. Eu juro que quase vomitei ali mesmo. Shawn desligou a chamada no mesmo minuto. Chloe não deve ter ficado tão feliz com a sutileza do seu namorado, creio eu.
Queria morrer.
Como se o universo ainda preservasse o que tivesse sobrado da minha sanidade mental, meu prédio entra em meu campo de visão avisando que havíamos chegado. Não dou chances nem de um tchau, saio às pressas com Fred no colo sem me preocupar se pareceria uma louca que não superou nada nesse último ano, deixando para agradecer Shawn mais tarde quando eu tivesse mais calma depois de três taças de vinho e uma boa siriricada. Difícil seria encontrar alguma libido pra isso.
— Ellie! Espera!
Escuto o baque das portas do carro indicando que nem a minha eu havia fechado. Não parei, porém. Dei oi pro porteiro porque ele não tinha culpa de nada e segui com meu caminho, sentindo Shawn em meu encalço. Seus passos eram pesados e me lembrava os terremotos que presenciei quando passava as férias na minha avó na California.
Para minha infelicidade, o elevador não parecia querer colaborar comigo e quando eu considerei subir as escadas, Shawn brotou do meu lado, carregando as sacolas do pet shop.
— Não é o que você tá pensando — disse ofegante e eu o olhei, sentindo meu peito subir e descer quase tantas vezes quanto o seu. — Ok, na verdade, não é tão diferente assim, mas, por favor...
Interrompi suas explicações.
— Não importa o que eu estou pensando, Shawn. Você não me deve nenhuma satisfação. Nenhuma. Eu não sei por que eu reagi assim, eu... Desculpa. E obrigada por hoje. — Dei um sorriso nervoso que não sabia dava pra confundir com um derrame. Pela sua careta, no entanto, podia ter uma noção.
Peguei as sacolas de suas mãos com certa dificuldade e o elevador se abriu sem que Shawn falasse mais nada. Coloquei-as dentro do cubículo de metal e depois entrei, encarando-o até que as portas o fizessem sumir.
(...)
A semana passou se arrastando. Dediquei-me, em seu percurso demorado, a cuidar de Fred, que já parecia se sentir bem melhor, mas ainda atado em seus curativos, e tentar trabalhar em algo. O que consegui fazer foi idealizar meu estúdio, procurar por parcerias e tentar achar clientes em potencial. Quando me dei conta, a manhã de domingo se deu pela janela, fazendo-me notar que passei a noite acordada, fuçando em meu notebook. Soltando um suspiro frustrado, virei pro lado e me forcei a dormir até meio-dia.
Acordei com os piados determinados de Fred que vinham da gaiola. Ele queria andar pela casa, provavelmente. Ou comer. A ração fica o dia todo em seu prato, mas, mesmo que eu tente negar, eu o mimei tanto que ele se tornou um pássaro de elite, então, sempre aprecia as frutinhas que eu adiciono em sua dieta ou alguma comida diferente. Olhei em meu celular e eram 1h30min da tarde. Criei forças para me levantar e seguir com minhas atividades.
Atividades essas que se resumiam cuidar do pássaro acidentado, procurar por trabalho no meu notebook e ignorar as chamadas de Shawn e Matt. Esses dois últimos deixavam meu trabalho de ignorá-los consideravelmente difícil quando, por alguma razão que eu gostaria muito de entender, só não desistiam. Matt queria entender meu sumiço e eu queria muito explicar, mas nem eu sei a resposta. Quer dizer, ele é legal e eu aprecio sua companhia, mas, não sei, o que ele me faz sentir não me impulsa em nada. Acabei apenas mandando uma mensagem dizendo que não estava em meu melhor momento e que queria um tempo sozinha, morrendo de medo dele aparecer aqui. Enquanto isso, a última mensagem que Shawn havia mandado, dizendo que eu tinha até hoje à noite para dar a resposta sobre a Tour, tinha feito até meu mindinho tremer. E eu nem sei se foi pela mensagem em si. Quer dizer, era importante e eu ainda estava em conflito por não ter a resposta, mas sinto que qualquer coisa que ele me mandasse me faria ficar desestabilizada. Ainda mais, por mais que eu me recusasse a dizer em voz alta, eu tinha pra mim que sua atenção em me mandar mensagens era porque ele ainda se importava, talvez até mais do que se importava com a tal da Chloe Walker. Não me deixava respirar os ares desses pensamentos, no entanto. Como eu poderia ter certeza? Eu estava quase colapsando no carro pensamento que, não sei, talvez, ele teria a intenção de voltar comigo, cheguei até a perguntar algo nesse contexto, quando, na verdade, ele já estava em outra, com sua gatinha. Argh. Shawn havia me machucado e se arrependia, só isso, não significava mais nada. Eu não precisava ter protagonizado toda aquela cena já que ele nem estava considerando voltar comigo nem nada, eu que não tenho o juízo certo.
Quando cheguei à sala onde ficava a gaiola de Fred, o vi solto das ataduras, em seu poleio, olhando-me com expectativa, ansioso. Sua asa tinha ficado boa, no fim das contas.
— Bom dia! – saudei e ouvi seu pio agudo.
Fred se agitou na gaiola para que eu o tirasse de lá. Nessa semana, ele foi uma ótima companhia. Assistia aos seriados comigo, acompanhava-me nas refeições e só não dormia na minha cama pois acorda muito mais cedo do que eu e tenho medo de que sua curiosidade o machuque.
Abri a gaiola e ofereci meu dedo para que ele se apoiasse. Seus pezinhos se fixaram em minha pele e eu o trouxe para perto, afagando sua penugem.
— Sabe, Fred, se você quiser, eu fico aqui com você — disse enquanto o levava para a janela como todos os dias, e ele me escutava ainda preso em meu dedo. — Eu não preciso viajar, né? Eu posso arrumar um emprego em um estúdio daqui. Vamos ficar bem. Eu sei que você já tá melhor, mas se quiser ficar...
Então, interrompendo minha declaração, Fred pegou impulso e saiu em voo. Mesmo que fosse meio instável por conta da asa recém curada, ainda assim, ele saiu voando. Ainda assim. Observei-o ir pra longe, em choque, até perdê-lo de vista.
— Yep. Acho que... Aham. Filho da puta.
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