Capítulo 3
-- Ah, graças a Deus! Está acordando! -- Uma voz invade os ouvidos de Pete. Distante e abafada. Uma voz que ele nunca sequer havia ouvido. Uma voz aveludada e carregada de um sotaque um tanto quanto rústico, um típico sotaque escocês. Mesmo sem entender direito o que aquela voz dizia - nem sequer a ouvia direito -, era um dos sons mais belos que o jovem já havia escutado.
Mas nada, nada mesmo - nem em sonhos -, absolutamente nada que Pete já tivesse visto se comparava com a imagem que se formou diante de seus olhos recém abertos ainda desfocados, ganhando nitidez aos poucos.
Ele estava sem palavras... Na verdade, por um breve momento, achou que tivesse morrido e aquela figura era um belo anjo ou, quem sabe, sua santa padroeira. Só se tocou de que ainda estava vivo quando sentiu seu coração querendo saltar de seu peito, batendo de forma frenética.
Não era para menos... Ali, debruçada sobre ele, olhando-o com preocupação, o rosto a apenas poucos centímetros do seu, se encontrava a garota mais linda que ele já tinha visto em toda a sua vida... O rosto alongado e pálido, apenas com as bochechas e a ponta do nariz rosados, contava com algumas sardas salpicadas e espalhadas de forma hipnotizante, tal como seus olhos cor de mel, brilhantes e ternos. A bela e delicada face feminina era emoldurada por longos cabelos castanhos, ondulados e sedosos que lhe caíam sobre os ombros, levemente à mostra pelo vestido que escorregava sutilmente de uma forma enlouquecedora, revelando os ossos salientes da moça, tão convidativos aos lábios de Pete, tão...
O que é que estava pensando?! Jamais vira aquela garota em sua vida e já a estava desejando? Que tipo de cavalheiro era? E onde diabos estava?
Quando o choque inicial por ter se apaixonado à primeira vista - afinal, que outro nome daria àquilo? Alucinação ou loucura, talvez... - passou, tentou se levantar na cama em que se encontrava, apoiado em seus cotovelos, coberto até o pescoço por uma grossa manta de lã, mas foi contido por duas mãos delicadas que repousaram em seus ombros e o empurraram sutilmente para que voltasse a se deitar. Não queria admitir, mas havia se arrepiado pelo toque. E se envergonhava disso.
-- Shhh, acalme-se, está tudo bem... Relaxe... -- A voz suave soou novamente e Pete não pôde evitar de obedecê-la.
-- Onde estou? -- O rapaz perguntou, mas sua voz soou áspera, arranhando-lhe a garganta, causando-lhe uma terrível crise de tosse, sentindo uma forte dor em seu peito ao fazer isso. A moça o olhou preocupada, passando um pano molhado em sua testa antes de entregar-lhe um copo com água, ajudando-o a se sentar levemente apenas para beber alguns goles. Pete voltou a recostar-se, era menos dolorido permanecer deitado. Olhou em volta. Estava em um pequeno quarto, isso era óbvio... Os móveis eram todos de madeira, bem rústicos, e não pareciam contar com nenhuma classe. Com certeza não estava na casa de uma família abastada... Porém, estava se sentindo confortável e aconchegante, principalmente quando se lembrava da moça que parecia estar cuidando dele com tanto zelo.
A garota o observou enquanto seus olhos azuis se mexiam nas órbitas, olhando para todos os lados, então, de súbito, se lembrou da pergunta dele.
-- Ah, sim, quase me esqueci de sua pergunta... Me desculpe... Você está em Hawick... -- Ela explicou, abrindo um sorriso arrebatador para Pete, que permaneceu confuso, a encarando com os lábios entreabertos, usando todas as suas forças - neste caso, escassas - para não deixar que seus olhos se recaíssem para o fino e elegante pescoço dela. Quando não obteve resposta, a mocinha continuou. -- Na Escócia!
-- Então... Eu cheguei na Esc... -- Ele não conseguiu completar sua frase já que mais um tremendo ataque de tosses roubou-lhe as palavras.
-- Se você chegou na Escócia? -- A mocinha não pôde evitar em soltar um riso irônico enquanto ajustava a coberta novamente sobre o corpo trêmulo do jovem rapaz. -- O mais correto é dizer que você foi trazido até aqui...
-- O que quer... -- E mais uma vez, Pete teve sua fala interrompida pelas tosses, desta vez ainda mais intensas, fazendo-o dobrar-se sobre o próprio corpo, sentindo uma dor aguda em seu abdome. Assustado, tirou a coberta de cima de si, estremecendo no mesmo instante. Viu que usava uma camisa simples de linho, totalmente diferente da camisa que lembrava-se de estar usando da última vez que havia tido consciência de alguma coisa... Mas não se importou muito com isso, havia algo mais urgente sob esta, por isso, ergueu a roupa e viu que havia vários arranhões ainda em carne viva ocupando toda a superfície da pele de sua barriga, subindo até o peitoral.
As bochechas da moça ruborizaram quando seus olhos se recaíram sobre o corpo do rapaz, deixando-a levemente irritada - tinha cuidado dele enquanto estava desacordado, limpara suas feridas, por que raios ainda sentia o rosto queimar ao vê-lo tão exposto? -, por isso, apressou-se a abaixar a camisa dele, arrancando-lhe a borda desta das mãos, e o empurrou suavemente para que se deitasse de novo, voltando a cobri-lo com a manta grossa até o pescoço.
-- Precisa poupar esforços... Sr...?
-- Mc... -- Pete foi respondendo o nome nobre de sua família adotiva, mas, então, sentindo uma certa vergonha deste, decidiu dizer seu nome de batismo, que carregava um teor bem menos abastado. Pigarreou antes de prosseguir. -- Townshend... Peter Townshend... -- E mais tosses pontuaram sua frase, fazendo-o receber um olhar severo da moça.
-- Muito bem, Sr. Townshend, precisa descansar e ficar bem quietinho... Não faz ideia do estado que estava quando o encontramos... Por Deus, realmente pensei que não fosse sobreviver... -- Ela continuou a explicar, deixando a mente de Pete cada vez mais cheia de perguntas.
-- Mas...
-- Falei para meu pai que você só precisava de alguns cuidados, afinal, a esperança é a última que morre, não é mesmo? -- Ela riu, um som magnífico que aqueceu cada milímetro do coração de Pete, apesar de estar cada vez mais confuso. -- Ele realmente queria te deixar onde estava, achando, na verdade, que você já estava morto...
-- Como...
-- Mas eu tinha certeza que não, Sr. Townshend, eu tinha certeza! E cá está você, agora! Ainda está um pouco arrebentado e com aspecto doente, mas com certeza não se passa mais por homem morto...
-- Eu... -- E Pete não conteve mais tosses... O que, por um milagre, fizeram a garota parar de falar e o olhar preocupada. Fez um sinal com uma das mãos, indicando que estava bem, e, assim que as tosses sessaram, apressou-se em acrescentar. -- Como, em nome de Deus, eu vim parar aqui? E quem, se me permite perguntar, é você?
A moça sorriu novamente, com toda a simpatia de seu coração, fazendo Pete sentir-se sereno novamente e relaxar em meio aos travesseiros.
-- Eu sou Mysie Elliott... E, bem, vou te contar como chegou aqui...
***
Mysie e o pai, Robbie Elliott, já haviam se instalado sobre a velha carroça de madeira, agora, graças a Deus, vazia. Os pobres cavalos, com certeza exaustos, Angus e Concorde, puseram-se a andar, instigados pelo homem. Precisavam voltar para casa logo, antes que a chuva voltasse a cair.
Haviam ido até Berwick-Upon-Tweed, na fronteira da Inglaterra com a Escócia, para entregarem a remessa semanal dos produtos do pequeno sítio da família, como galões de leite, queijo e sacos de legumes. Não era muito mas garantia a sobrevivência deles.
Geralmente, quem ia nas viagens até a fronteira com o pai era, na verdade, o filho, Nicholas, irmão gêmeo de Mysie, enquanto esta permanecia no sítio, cuidando de tudo por lá. Mas, por infelicidade do destino, Nick, que já contava com 20 anos, fora chamado para lutar no exército britânico contra os franceses e ainda não havia retornado.
Mysie vivia apreensiva quanto ao paradeiro do irmão, mas recebia cartas dele de tempos em tempos, confirmando que estava bem, evitando ao máximo dar detalhes da vida dura que levava no exército e, também, dos acontecimentos sangrentos, tudo para não preocupá-la.
Portanto, durante a ausência de Nick, Mysie passou a acompanhar o pai nas viagens semanais até a fronteira. E, mais uma vez, esta havia corrido muito bem. Robbie prometera à filha que a deixaria conduzir a carroça na volta, por isso, a havia entregado as rédeas dos cavalos, afinal, sempre retornavam por um caminho mais tranquilo.
-- Tem que tomar o dobro de cuidado em dias de chuva... As estradas tendem a ficar mais esburacadas e escorregadias... Um amigo meu, uma vez...
-- Se descontrolou e bateu a carroça numa árvore e, depois disso, ele nunca mais mexeu as pernas... -- A garota completou a história do pai, tendo em vista que ele já havia contado inúmeras vezes... Bem, todas as vezes que foram até a fronteira, pelo menos. -- Sei disso, papai, sei disso... Relaxe, eu sei controlar uma carroça! Não é como se... AH, MEU DEUS!
Mysie não conseguiu conter um grito de horror, assustando ao pai, que deu um pulo e deixou cair de seu colo a sacola de legumes que havia comprado na feira. A garota puxou com força as rédeas dos cavalos que, com uma breve confusão, empinando e relinchando, pararam de andar. Robbie olhou de forma severa para a filha.
-- Por que diabos você fez isso, menina?! -- Perguntou o homem, recolhendo cenouras, quiabos e beterrabas que se espalharam pelo chão da carroça, mas a filha não o respondeu, olhando extremamente assustada para algo mais adiante. Ao se erguer, Robbie viu o espanto da filha, seguindo seu olhar.
-- A-aquilo... Aquilo é... É uma pessoa caída? -- Mysie perguntou, boquiaberta, apontando para a massa disforme caída próxima à vala da estrada de forma trêmula. O pai inspecionou de cenho franzido, sem conseguir decifrar direito o que era, afinal, a filha havia parado a carroça uns bons passos de distância. Além disso, fosse o que fosse, estava um tanto quanto escondido na vala.
Então, Robbie, com muita cautela, saltou para a estrada, fazendo um sinal para que a filha permanecesse no lugar, dando passos hesitantes.
-- Pode ser uma mala... Muitos viajantes passam por aqui... Pode ser um saco de lixo... -- Falou, tentando tranquilizar a filha que não conseguia se manter quieta, saltando, também, da carroça, permanecendo ao lado dos cavalos enquanto observava o pai avançar.
Porém, o coração da garota deu um pulo quando o pai soltou uma blasfêmia como exclamação, dando três passos assustados para trás, o que fez com que a garota corresse até ele, o peito disparado. Quando chegou ao lado do pai, este havia se aproximado de novo da coisa, olhando boquiaberto. Mysie, com um certo receio, olhou também, sufocando um grito com a mão... Era, sim, uma pessoa... Um rapaz, na verdade, todo sujo, arranhado e ensanguentado. Estava desacordado, talvez até mesmo morto. Ele estava coberto por uma manta imunda e totalmente esfarrapada, amarrada ao seu pescoço. Por um momento, Mysie pensou que ele pudesse estar enforcado...
-- E-ele... Ele está m-m-morto? -- Ela perguntou, os olhos arregalados. Robbie, sem dizer nada, abaixou-se ao lado do corpo e, com um certo esforço, enfiou as mãos por baixo dos braços deste e puxou-o para tirá-lo da vala, virando-o totalmente de barriga para cima. O mais velho inspecionou de perto enquanto a filha observava dois passos atrás, o coração disparado. O rapaz parecia jovem, mas era difícil dizer em meio ao sangue seco e enegrecido que se espalhava por seu rosto comprido e pálido.
-- Está vivo, por algum milagre... -- Robbie decretou, levantando-se e limpando as próprias mãos nas calças. -- Mas creio que não por muito tempo...
O mais velho deu meia volta para retornar à carroça. Mysie permaneceu no local, olhando para o moribundo, os olhos marejando, nervosa ao ver que havia ainda mais sangue em suas roupas do que em seu rosto. Ouviu o som dos cascos dos cavalos se aproximando e olhou-os por cima do ombro, vendo o pai conduzindo a carroça até eles.
-- Boa ideia, vamos colocá-lo na car...
-- Não, filha, vamos embora! -- Disse o pai, puxando as rédeas para que os cavalos parassem ao lado da garota, que agora o olhava de forma abismada.
-- Não podemos deixar este homem neste estado aqui! -- Ela respondeu, sinalizando o corpo com as mãos. Robbie suspirou.
-- Creio que não temos muito o que fazer... Certeza que não irá sobreviver! Deixe-o aí para morrer em paz! -- O mas velho respondeu e, de repente, ele parecia mais cansado que o normal. Mas Mysie não se moveu.
-- Mas ele está vivo, pai! Podemos cuidar dele e, quem sabe, ele sobrevive? O senhor sempre diz que a esperança...
-- É a última que morre... Eu sei, eu sei... -- Robbie respirou fundo e soltou o ar vagarosamente, os olhos fechados, apertando o espaço entre estes com o indicador e o polegar, antes de soltar os ombros pra baixo e olhar para a filha de forma vencida. -- Tudo bem, então me ajude a colocá-lo na carroça...
Mysie agradeceu silenciosamente com um pequeno sorrisinho, contente com a decisão do pai. Este já havia saltado novamente da carroça e se aproximado do corpo caído, novamente posicionando as mãos sob seus braços e o arrastando para mais perto do carro de madeira. A garota pegou as pernas do homem, percebendo que havia um estribo de sela enroscado na canela de uma das botas dele, o que a deixou curiosa. A correia do estribo havia se partido... Robbie pigarreou, tirando a filha dos devaneios para que esta o ajudasse com o corpo. Desta forma, os dois o colocaram na parte traseira, grunhindo com o esforço, afinal, por mais esquelética que a figura parecia, era alta e, por estar desacordada, parecia pesar uma tonelada.
Então, apreensivos, pai e filha subiram novamente na carroça, onde Robbie assumiu as rédeas e tocou os cavalos pelo caminho até seu sítio, ainda um tanto quanto distante. O caminho inteiro, Mysie ficou olhando para trás, preocupada com aquele pobre indigente. Em sua mente, especulava o que poderia ter acontecido para ele acabar naquele estado e, pelo estribo partido enroscado em sua canela, chegou à conclusão de que havia um cavalo com ele e que o animal havia fugido sem seu dono. Pensou, também, que ele pudesse ter sido assaltado por algum bando, espancado e deixado ali para morrer. Tal pensamento a fez estremecer.
Mesmo todo sujo e ensanguentado, Mysie não conseguiu deixar de reparar nas belas feições do rapaz. O rosto comprido, o longo nariz, os lábios finos... Martirizou-se por tais pensamentos, afinal, ele provavelmente estava à beira da morte.
Em silêncio e com uma imensa tensão pairando no ar, os cavalos finalmente viraram na estrada, adentrando a porteira de madeira da pequena propriedade dos Elliott. Quando pararam, surgiu o questionamento: onde colocariam o viajante ferido? E, ainda mais importante: o que fariam com ele?
-- Podemos deixá-lo nos estábulos... -- Robbie deu a ideia, olhando em volta. O sol já estava se escondendo atrás dos campos e a temperatura começava a cair.
-- Mas, papai, os estábulos são tão frios... Não podemos deixá-lo dentro de casa? -- Mysie perguntou, lançando um olhar cheio de pena para o rapaz, ainda na carroça.
-- Mas, onde? Não temos quartos de visita e nem...
-- O quarto de Nick! -- A garota exclamou. O pai não pareceu gostar muito da ideia, franzindo o cenho. -- É o único cômodo vivo e, bem... Por enquanto está desocupado... -- A voz dela saiu cheia de dor e preocupação pelo irmão que lutava em terras distantes, o que apertou o coração de seu pai, fazendo-o suspirar tristemente.
-- É, acho que Nicholas não se importará se emprestarmos o quarto dele por um curto período de tempo... -- Respondeu, vencido, o mais velho, coçando seus cabelos enrolados enquanto voltava para perto da carroça, murmurando algo que Mysie não entendeu tão bem mas jurou ser alguma insinuação ao pensamento do pai de que o rapaz provavelmente não sobreviveria. -- Venha me ajudar!
Então, os dois carregaram mais uma vez o corpo arrebentado, desta vez para dentro da casa. Com muita dificuldade, subiram as escadas para o andar dos quartos e o levaram para o de Nicholas, o que causou um forte sentimento de saudade tanto na irmã quanto no pai, mas ambos deixaram o pensamento de lado ao colocarem o moribundo sobre o colchão da cama de solteiro. Ficaram em silêncio por um instante, observando a cena, até que Robbie suspirou, mais uma vez, cansado, olhando pra filha que encarava pensativa o forasteiro.
-- O que você pretende fazer agora, filha?
-- B-bem... -- Mysie pensou, pressionando o indicador nos próprios lábios enquanto isso. A verdade é que não tinha noção alguma do que fazer! Ela tinha 20 anos, nunca precisou cuidar de ninguém antes! Era muito pequena quando a mãe faleceu, então não participou do processo de tentar salvá-la da doença que a acometeu. Além disso, aquele jovem não estava doente... Estava estropeado! Ela suspirou, se sentindo impotente. Mas, apesar de estar completamente perdida, ela que havia inventado de tentar salvar o pobre coitado e seria isso que iria fazer! Sabia que o pai não tinha tempo para dar uma de enfermeiro. -- Vou cuidar dele...
-- Acha que consegue? -- Robbie ergue uma de suas sobrancelhas, preocupado, percebendo a ansiedade da filha. Ela mordia o lábio inferior e respirava de forma rápida.
-- Eu... Eu preciso tentar... Pior do que ele está não vai ficar... -- A garota respondeu, abrindo um sorriso na tentativa de se acalmar. Robbie soltou os ombros com um suspiro e retribuiu o sorriso, indo até a filha, a abraçando e dando-a um beijo na testa.
-- Você é tão cuidadosa, minha filha... Igualzinha sua mãe... -- Ele disse, sentindo um nó na garganta. Pela estremecida que a filha deu em seus braços, percebeu que ela estava emocionada. Então, depois de prolongarem mais um pouco o abraço, Robbie soltou-se de Mysie, sorrindo pra ela e bagunçando seus cabelos exatamente como fazia quando era pequena. -- Bem, irei fazer uma sopa de batatas pra gente... Você...
-- Eu vou dar uma olhada no rapaz, talvez limpá-lo e ver seus machucados... -- A mocinha respondeu, voltando a olhar pro corpo que ressonava na cama de seu irmão. Robbie assentiu com a cabeça. Então, dando mais um beijo no rosto da filha, saiu do quarto, deixando-a sozinha com o jovem desacordado. Mysie o observou por um tempo, arrancando os cantos de suas unhas com os dentes, pensando no que fazer e, também, prosseguindo com suas especulações sobre a origem e a história do outro. -- Acho melhor tirar essas suas roupas sujas e esfarrapadas... As de Nick devem servir... -- Ela falou, sabendo que o rapaz não ouvia uma só palavra.
Dito isso, Mysie se aproximou do rapaz, cautelosamente descendo as mãos para os botões de sua camisa. Eram botões lindos, prateados, com arabescos gravados. O tecido da camisa também denunciava a qualidade da roupa. Mesmo todo sujo, um tanto quanto úmido e rasgado, ele era macio e de um belo tom de azul claro. Havia uma imensa mancha de sangue na região da barriga, o que a deixou bem preocupada. Então, Mysie abriu o primeiro botão, revelando uma boa parte de pele do pescoço do homem. Abriu mais um, mais outro, e outro... Soltou todos os botões, até que ela pudesse abrir a camisa e ver todo o tronco dele desnudado. Instantaneamente, ela corou. Nunca havia visto um homem sem camisa, com exceção de seu pai e irmão. Ele tinha um peitoral extremamente pálido e esquelético, cada ossinho de sua costela salientado sob a pele salpicada por algumas pintinhas pequenas e bem espalhadas... Mas, logo abaixo estava o estrago...
Havia uma imensa ferida em carne viva que subia pelo abdome até o peito do rapaz, sangue espalhado por toda sua volta. Mysie sufocou um grito assim que viu aquilo. Pensou, até, que ele pudesse ter sido esfaqueado... Tocou com muito cuidado o machucado aberto e, neste instante, viu uma das pernas do homem mexer num espasmo. Graças a Deus, pensou Mysie, ele ainda está vivo!
Assim que conseguiu tirar totalmente a camisa dele - notando, desta forma, que ele contava com arranhões feios nos braços também -, transferiu sua atenção para suas calças, lotadas de barro seco e rasgos pelos quais ela já conseguia enxergar seus joelhos ralados e sujos. Afastando pensamentos inadequados que a faziam corar, Mysie enganchou os dedos no cós das calças do rapaz, puxando-o para baixo, revelando as longas e igualmente pálidas pernas. Felizmente - convenceu-se Mysie - ele usava roupas de baixo. Antes de conseguir arrancar-lhe de vez as calças, a mocinha precisou tirar as botinas do rapaz, puxando-as com muita força para saírem, em especial aquela que contava com o estribo enroscado. Livre de tais barreiras, conseguiu desnudá-lo quase por completo.
Ele realmente estava precisando de um banho... Mysie pensou no que fazer por um momento, até que foi até o banheiro, trazendo de lá uma esponja, uma toalha e uma bacia com água e sabão. Antes de mais nada, com muito esforço, conseguiu colocar a toalha por baixo do corpo e, em seguida, molhou a esponja na água com sabão e a foi passando suavemente por todos os membros do rapaz, tirando o barro, o suor, a areia e o sangue. Lavou-lhe os cabelos e o rosto, percebendo que, de fato, ele era muito bonito e, com certeza, jovem!
Quando já estava satisfeita com a limpeza, Mysie foi novamente ao banheiro e trouxe consigo para o quarto uma garrafa de álcool e um pano limpo. Mordeu o lábio em agonia ao encharcar o pano com o líquido e passá-lo nas feridas do moço, o que causou mais espasmos por parte deste. Quando já havia limpado todos os machucados dele, vestiu-o com algumas roupas de seu irmão, cobrindo-o em seguida com uma grossa manta de lã. Satisfeita com seu trabalho, guardou tudo, lavou as mãos e foi jantar.
Durante o jantar, Mysie e seu pai conversaram sobre os acontecimentos do dia e sobre o que poderiam fazer. O homem aconselhou a filha a virar um copo de água com sal na boca do viajante de tempos em tempos, e foi o que ela fez assim que acabou de jantar, com medo de fazê-lo engasgar e virando o conteúdo do copo com muita vagareza e cuidado.
Dois dias se passaram e Mysie continuou a cuidar do rapaz que ainda não havia dado sinais de que acordaria. Nesta fatídica tarde, enquanto a garota lia um livro, sentada em uma cadeira de madeira ao lado da cama em que seu paciente se encontrava deitado, ela ouviu sons do colchão rangendo, seguido de resmungos baixos e ásperos, o que a deixaram em alerta, fechando o livro e se levantando, aproximando-se mais... Ele estava se mexendo! Poderia estar finalmente acordando?
E então, seus olhos se abriram... Pela primeira vez, Mysie viu o azul daqueles olhos... Azul vivo e arrebatador... Extremamente vivo...
-- Ah, graças a Deus! Está acordado! -- Não conseguiu conter a exclamação, aliviada e até mesmo emocionada... Finalmente havia visto aqueles olhos azuis abertos... Vivos!
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