|010 - Instinto.
Quando o Sol tocou o horizonte com sua falsa indulgência, após nos abandonar junto às trevas todas as noites, eu ainda não havia dormido.
O chão do meu quarto estava coberto de uma imensurável bagunça de livros abertos, papéis velhos e desenhos "satânicos". No centro de toda essa balbúrdia estava eu, estudando aquelas atrocidades, tentando entender em que tipo confusão profana eu estava realmente metido. Nada que pude ler em qualquer daqueles livros me trouxe a mais remota paz de espírito, mas eu me sentia suavemente menos leigo na minha própria realidade, ao mesmo tempo que a vastidão do que eu ainda precisava aprender me aterrorizava.
Todo um novo mundo se descortinou diante dos meus olhos, cheio de criaturas e conceitos que eram tão fascinantes quanto as maiores bizarrices que já vi. Entendi porque minha mãe zelava tanto daqueles livros, eram todos exemplares únicos, feitos à mão. Anotações passadas de geração em geração da nossa linhagem, escritos sobre as descobertas delas e deles sobre essa maldição e o mundo ao qual ela pertence. Um mundo sobrenatural ao qual a maldição me fez pertencer também, ainda que contra a minha vontade.
Eu era um fantasma vivo, vivendo na ponte entre os dois mundos. Nunca me senti verdadeiramente pertencente à humanidade, sempre deslocado e inadequado entre eles, mas também não era parte genuína do sobrenatural, esses poderes não me pertencem. Em todos esses 17 anos e 11 meses de vida, nunca me senti tão só quanto agora. Embora eu tivesse mais companhia do que já tive em qualquer momento da vida, minha solidão era estrutural, a realização de que nunca tive sequer a chance de ser normal era um soco no estômago.
Meu despertador tocou, estridente como apenas esse som maldito poderia ser. Desliguei, frustrado por ter perdido a noite de sono, e passei a juntar com pressa aquela bagunça, já que eu não precisava da desconfiança dos meus anfitriões. Bom, falando do diabo.
-Lindbergh! Você vai atrasar nós dois! Por que ainda não está no banho?! - Jacob entrou no quarto como um furacão, como se a casa fosse dele e de fato era, mas eu ainda merecia um pouco de privacidade.
-Você sabe para que serve uma porta fechada?! - reclamei, o olhando feio, mas para meu desespero não era em mim que estava a atenção dele.
-O que é isso? Você é tipo... Satanista? - o rapaz apontou um livro ainda aberto no chão, com um desenho exposto da quimera que perseguiu a mim e a Edward ontem.
-Sou... Satan é minha vida, e se não quiser se encontrar com ele antes da hora... Dê o fora do meu quarto! - empurrei o garoto pra fora, antes que ele fizesse mais uma pergunta idiota que eu não queria responder.
Ao fechar de novo a porta e me encostar nela, acabei rindo silenciosamente da situação. Ele provavelmente me acharia ainda mais mentalmente instável agora, mas eu não tinha muitas opções aqui.
Quase uma hora depois, estávamos dentro de um carro velho rumo à cidade. Passamos pela pickup no caminho, com um pneu convenientemente estourado. Tive de fingir que sabia muito bem que estaria ali, mas por dentro estava envergonhado com ideia de alguém ter dirigido meu carro, que estava uma bagunça de papel de doce por dentro.
-Como você consegue ter tantos problemas com esse carro? Não é possível que alguém possa ser um motorista tão ruim. - Jacob alfinetou, fazendo uma curva, mas descobri nos últimos tempos que me insultar era apenas sua forma de puxar assunto.
-Eu já te disse que nunca tive um carro antes! Estou tentando aprender a cuidar dele! - reclamei, dando um soco não tão fraco no ombro dele, ele me deu a língua como uma criança idiota.
-Se parasse com essa teimosia e simplesmente me deixasse te levar e buscar na escola, esse problema iria acabar...- resmungou, emburrado, antes de fazer mais uma curva com suavidade.
-Eu não vou depender de você assim, pode ir tirando o cavalinho da chuva! Gosto da sensação de liberdade que é dirigir, só preciso de mais prática...
O garoto bufou com minha resposta, mas não expressou seu descontentamento em palavras. Ficamos presos entre o silêncio e o barulho do motor por alguns instantes, até que sua voz novamente me alcançasse.
-Vou te ensinar a trocar o pneu quando chegarmos em casa, é mais fácil do que parece... Você só deve ter se desesperado à toa. - seu tom baixo e quase gentil me fez arrepiar.
A cidade despontou diante de nós alguns minutos depois, sempre imersa naquela névoa de chuva e calmaria tão característica do local. As pessoas nas calçadas andavam tranquilas, agasalhadas em seus casacos de cores sóbrias. Fico imaginando em que será que pensam, quais seriam os problemas deles, e se eram tão diferentes dos meus. Bom, isso com certeza, não é exatamente comum se ter um pacto com um demônio hoje em dia. Porém, o dom de Edward me parece tanto invejável quanto uma maldição.
-Você vem mesmo me buscar? - ajeitei a mochila nas costas, pronto para sair do carro.
-Talvez eu te deixe dormir em uma sala... Assim não vai se atrasar no dia seguinte. - Jacob sorriu de canto, o olhei feio.
-Eu não estou atrasado! Chegamos mais cedo! - gritei, o estacionamento estava quase vazio.
-Está atrasado para o horário que combinamos, você não tomou café da manhã comigo. - sua resposta me fez arregalar os olhos instantaneamente, ele pareceu perceber, porque soltou o freio de mão - Esteja aqui no horário certo, não vou ficar esperando.
Sem tempo para responder, desci do veículo às pressas, ele arrancou e saiu do estacionamento sem se despedir. Senti meu coração acelerado no peito, como sempre fica quando Jacob diz uma de suas loucuras impulsivas, mas eu ignorei esse fato. Precisava agora de uma sala vazia, o diário escondido na mochila me aguardava.
Os passos dele ecoaram no corredor, junto à batida de seu coração, que dentre tantas outras eu aprendi a reconhecer. Erick entrou na sala às pressas, parecendo tentar enfiar de volta na mochila um livro de capa vermelha. Ele tem o dom de estar sempre atrasado, onde quer que vá. Há algo de adorável em como seu rosto carrega um tom rubro de esforço na maior parte do tempo, por estar sempre correndo de um lugar para o outro. Parecia querer viver acima da própria velocidade.
Ele olhou em volta, buscando um lugar onde se sentar. Tive que levar a mão à boca para esconder um sorrisinho, quando ele esbarrou em uma novata ao caminhar em minha direção. Mesmo a completa falta de jeito tão típica dos humanos parecia graciosa nele. Eu estava ficando obcecado com os trejeitos do rapaz.
A forma como ele tira o cabelo do rosto com certa grosseria quando está lendo, seu jeito de olhar feio discretamente para as pessoas e a rebeldia que nunca deixava os olhos dele. Ele tinha uma petulância desproporcional à sua frágil condição humana, parecia não conhecer a existência do medo, mesmo que em seus pensamentos estivesse assustado quase o tempo inteiro.
Eu poderia dizer que o que me atraía de novo e de novo ao rapaz era o cheiro de seu sangue, a magia que circulava junto a ele em suas veias, e seria uma excelente mentira. Mas, não sou estúpido, sei identificar quando estou ferrado. A questão é, como me livrar do problema que acabou de me dar uma cotovelada nas costelas, como se pudesse me fazer sentir dor?
-O professor estava explicando a dinâmica com o microscópio, você prestou o mínimo de atenção? - ele resmungou, olhando as amostras na mesa com uma carranca de desânimo.
-É só uma aula sobre fases da mitose, você não entendeu a proposta? Posso te ajudar, se precisar. - Havia um sorriso de zombaria em meu rosto, e mesmo eu estava me achando irritante agora, mas era impossível controlar meus modos quando ele ficava tão bonito quando irritado.
-Eu deveria te fazer engolir aquela cebola de ouro ridícula. - ainda que ele estivesse sorrindo de volta, seu olhar era digno de um leão enjaulado, não consegui segurar a risada.
-Vamos, gente! Sem risadinhas na aula, a cebola de ouro está em jogo aqui! - o professor repreendeu, mas dessa vez Erick riu comigo.
As brincadeiras se propagaram do início ao fim de nosso trabalho, o suficiente para que o professor de biologia desistisse de reclamar conosco. Quando saímos da sala, ainda rindo e com o jovem Lindbergh tendo em mãos a cebola dourada que tanto ridicularizou, a realidade novamente se abateu sobre nós. No corredor, sob um olhar fulminante de Rosalie ao passar perto de mim junto de Emmett - ele piscou para mim, como o perfeito infeliz que é -, tudo pareceu muito mais sério.
-Preciso falar com você hoje, em um lugar reservado... - o loiro tocou meu braço nu com as pontas de seus dedos cálidos, e poderia jurar que senti um arrepio com sua ação, mas ignorei o fato.
-A sala do clube de música, no horário do almoço.
Ele concordou devagar com a cabeça, parecendo tão incapaz quanto eu de quebrar aquele contato. Seus olhos estavam fixos nos meus, quase como se pudesse ler minha mente de volta. Foi com horror que a percepção chegou a mim. Maior do que a rotineira vontade de cravar meus dentes na carne macia de seu pescoço e sugar dele cada gota de vida, fora a vontade que senti de tocar com esta boca fria e impura, os lábios rosados de vil delicadeza daquele humano. E eu não sabia quão pior esse sentimento poderia ser que meu instinto assassino.
Me afastei sem dizer mais nada quando senti Jasper e Alice se aproximando.
XXX
Nota da Autora:
Hello, darlings!
Sei que estou com dois dias de atraso e peço mil desculpas pela demora, porém finalmente conseguir trazer esse capítulo. Ele está um pouco mais curto que o habitual, mas é um marco importante na história.
O que acharam dessa aproximação dos nossos protagonistas? Quero ver as opiniões e teorias de vocês nos comentários!
Obrigada por ler!
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