|002 - O Lobo De Madeira.
O cobrador me olhou feio quando depositei em sua mão a passagem amassada. Nunca soube se pelo péssimo estado do bilhete, ou pelo cigarro preso entre os meus lábios. Talvez ele apenas não tivesse feito sexo o suficiente nos últimos tempos, de toda forma, eu não poderia me importar menos agora.
Tinha pela frente uma maldita viagem de um dia e meio entre ônibus e trem, já que como um menor de idade, preciso de uma autorização dos meus responsáveis para viajar num avião desacompanhado. O que, para alguém que recentemente perdeu a mãe e nem mesmo se recorda da face do próprio pai, convenhamos não era muito viável.
Acho que a melhor parte de viajar de ônibus era a possibilidade de observar com tanta facilidade, uma vida inteira ficando para trás junto com a paisagem conhecida. O vento frio de janeiro soprou como um afago a minha face pela janela entreaberta, quando enfiei no maleiro as duas bolsas pesadas, cheias com tudo o que pude salvar da minha antiga casa. A poltrona era macia, mas cheirava a mofo e falta de higiene, ao menos o lugar do lado do meu estava desocupado.
Me acomodei no assento, afundando no banco por um cansaço mais profundo que o físico e numa curiosidade inocente, olhei em volta. As marcas do tempo estavam nítidas nos estofados roídos e manchados do veículo, mas assim como eu, os poucos passageiros de ar taciturno pouco pareciam se importar. Talvez estivessem fugindo daquela cidade cheia de lembranças ruins, como eu. O Sol ainda nascia atrás das árvores que limitavam meu campo de visão, meu reflexo se misturou a elas na janela.
Havia ali um adolescente de pele clara, cabelos de um tom louro sujo com mechas vermelhas que precisavam de retoque, e olhos de um azul perturbadoramente claro. O tipo de aparência que atraia olhares admirados de crianças e caretas dos adultos, um típico vagabundo. Me perguntei boa parte da vida se algum dia eu poderia ser apenas um pouco mais que isso, quase respeitável era suficiente, mas aos dezessete anos você desiste de se responder muita coisa.
Mais algumas pessoas entraram e se acomodaram nos assentos, os passageiros se entretiam em conversas baixas uns com os outros. Conectei os fones e selecionei uma playlist qualquer, o ronco do motor soou abafado por uma música lenta quando o motorista deu a partida. O veículo começou a se mover devagar, até sair da rodoviária, e então ganhou o asfalto craquelado naquela estrada.
Metro a metro, a cidade em que passei toda a minha vida ficou para trás. Era estranho me afastar de tudo o que eu conhecia, assustador, mas ainda havia um quê de liberdade delicioso em tudo isso, que me fez inconscientemente sorrir para o vagabundo na janela.
Meu destino era uma cidadezinha minúscula chamada Forks, no estado de Washington. O lugar em que minha mãe nasceu e passou toda a adolescência, até fugir de casa com o sonho de ser cantora aos dezesseis.
Ela nunca se cansou de me falar sobre como o meu nascimento prejudicou a carreira que tanto almejava, como se tivesse sido uma escolha minha pisar uma única vez nesse mundo de merda. O ódio que eu sentia por ela, no entanto, me parecia supérfluo agora.
Joguei o filtro do cigarro pela janela e soltei a fumaça devagar, observando os desenhos sem forma dançarem no ar, enquanto uma mulher duas poltronas atrás, audivelmente me xingava. Era no mínimo cômico que depois de tudo, meu único refúgio possível, fosse o lugar do qual minha querida mamãe um dia fugiu.
XXX
As horas seguintes se arrastaram com uma vagareza quase imoral, e num tempo diuturno dormi e acordei três ou quatro vezes em ônibus diferentes e agora um trem. Já havia passado por Idaho e atravessado metade de Washington, pela janela eu via menos montanhas, as árvores pareciam diferentes. Não era uma distância tão longa, nem mesmo era um outro país, mesmo assim era como se estivesse em um mundo completamente diferente.
No banco xadrez daquele trem, com os rangendo abaixo de mim e o vento gelado que me alcançava pela janela, eu respirava melhor do que em anos enfurnado na grande capital de Montana. A velocidade da locomotiva aos poucos diminuiu, e vi a estação de Edmonds se aproximar pelo vidro sujo. Passei por mais dois ônibus depois daquilo, até desembarcar por fim em Forks.
Do lado de fora da velha rodoviária, uma chuva fina umedecia as calçadas em poças e estalava no asfalto. As janelas estavam embaçadas, naquela plataforma aberta estremeci de frio e o cheiro de mofo do cômodo impregnou minhas narinas quando adentrei a recepção com o guichê em que vendiam as passagens. O senhorzinho que devia cuidar do lugar olhou feio para o meu cabelo pintado de trás do balcão. Dei a ele um sorriso irônico quando me aproximei, a careta do velho piorou.
-Boa tarde, meu caro senhor! Será que poderia me emprestar um telefone? Fiquei sem bateria no meu infame aparelho móvel.
Pensei que a resposta do idoso àquela provocação seria puxar uma clássica espingarda e atirar em mim, talvez eu nem corresse, mas ele meramente indicou o telefone no canto da mesa com desdém e saiu de perto sem olhar novamente para mim. Disquei o número de Billy Black, que havia decorado durante o tempo livre na viagem, e logo o som estridente da chamada chegou ao meu ouvido.
Esperei por alguns instantes, enrolando inconscientemente no dedo o fio encaracolado do telefone, mas ninguém se deu ao trabalho de me atender. Não tinha ideia de onde esse cara esse cara morava, mas depois de três ligações perdidas, minha paciência se esvaiu e devolvi o telefone ao gancho. Minhas malas ainda estavam intocadas, no banco de madeira ao lado de um barril de lixo em que as deixei quando retornei a elas. Ajeitei o capuz do moletom na cabeça, como uma proteção improvisada para a chuva, e me xinguei por ter trazido aquelas tralhas comigo quando precisei carregar tudo.
A lama molhou meus tênis quando desci da plataforma, em volta só haviam lojinhas simples e pinheiros que cercavam o lugar até que se perdessem no horizonte neblinoso. Vi um carro ou outro transitando pela avenida naquela velocidade moderada das cidades pequenas, a aparência do lugar era de uma melancolia encharcada e pacata. Eu diria que era uma paisagem depressiva, combinava comigo, afinal.
Daqueles carros, uma pick-up laranja e enferrujada que parecia estar se desmanchando em seu estado deteriorado se aproximou da rodoviária. Mas eu nem mesmo tinha uma casa, então não perdi tempo julgando latas-velhas alheias. Ignorei sua chegada e comecei a andar, sem a menor ideia de onde estava indo, mas disposto a encontrar meu destino onde quer que ele fosse.
O que eu não esperava era o som de uma buzina próxima, muito próxima, e tive o mau pressentimento de que era direcionado a mim. Andei mais alguns passos e o barulho novamente irritou meus ouvidos. Ao olhar para trás encontrei aquela pick-up horrorosa me seguindo devagarinho. Do para-brisa eu não podia ver o motorista, mas julguei ser algum velho tarado querendo tirar uma casquinha do recém chegado, isso era comum na antiga cidade.
Sabia que apertar o passo não iria adiantar, então larguei a bagagem no canto menos enlameado que encontrei e me virei para o carro. Com os dois dedos do meio no ar em um gesto rude, esperei que o infeliz descesse para poder lhe mandar à merda cara à cara.
No entanto, tudo que eu menos esperava é que daquele carro ridículo descesse um rapaz mais ou menos da minha idade, chutei ser mais novo e definitivamente era bonito. Sua pele era parda e as feições com traços de etnia indígena. Seus olhos escuros pareciam carregar um suave brilho que chamou minha atenção, eu não sabia o que era e nem porque tinha reparado tanto naquilo, mas ignorei a sensação estranha que seu olhar me causava. O cabelo cor de ébano que fugia em mechas sedosas de um gorro cinza era liso, tão longo que se perdia atrás de suas costas.
Ele era alto, muito mais do que eu, devia ter quase dois metros. Confesso que tive de inclinar a cabeça muito discretamente para cima a fim de encontrar seu rosto, e a expressão do desconhecido não era exatamente boa. A irritação nítida em seus lábios franzidos me fez engolir em seco. Pensei que ele me daria um soco no nariz, ou ao menos me xingasse, mas o que ele disse apenas me deixou confuso.
-Você é Erick Lindbergh? - meu nome soou mais bonito do que era naquela voz grave, mesmo que ainda fosse nítido um toque de aspereza mal disfarçado na pergunta.
-Como sabe meu nome? - o nervosismo me deixou na defensiva, tanto que me surpreendi com sua resposta.
-Billy Black me mandou buscar você. Sou filho dele. - ele não estendeu a mão para um aperto nem me contou seu nome, simplesmente passou por mim como se eu não existisse, pegou minha bagagem e voltou para o carro.
Quis mais que nunca na minha vida ter um infarto e morrer ali mesmo, mas ainda que sentisse minhas bochechas queimando de vergonha tive de alcançar a pick-up velha em uma corridinha antes que ele me deixasse para trás. O que parecia bem disposto a fazer, e eu nem poderia culpá-lo.
O interior do carro era pouco mais aquecido que o lado de fora, mas mesmo o ligeiro aumento na temperatura foi bem vindo para as minhas mãos geladas. Havia um perfume leve no ar que eu não sabia de onde vinha e o rádio estava ligado em volume baixo, era um ambiente estranhamente agradável em comparação com o exterior do carro, isso se não fosse meu carrancudo motorista.
Ele não disse uma única palavra durante todo o percurso, o silêncio era sufocante. Mas, não tive outra opção se não me recostar na janela embaçada por onde via apenas os vultos de pinheiros e do comércio local ficando para trás e esperar. O baque do carro parando foi o que me fez abrir os olhos num susto pouco depois, estava quase dormindo na janela e isso me trouxe uma nova onda de vergonha.
No entanto, o tal filho do Billy nem mesmo pareceu notar isso. Desceu do carro rápido e pegou mais uma vez minhas malas antes que eu pudesse pensar nelas, me deixando novamente para trás.
Eu desci em seguida, frustrado e nem um pouco disposto a pedir desculpas pelo que tinha feito enquanto ele continuasse agindo como criança. Nunca foi virtude minha ter boas relações sociais, mesmo.
O lugar em volta era muito verde, com uma estrada de terra enlameada cortando a grama e se perdendo em uma curva entre as árvores, era uma reserva indígena pela placa que estava na entrada. Vi apenas uma casinha simples e vermelha, próxima à borda da floresta, onde o gigante carrancudo entrou. Olhei para o céu, oculto por nuvens cinzentas e respirei fundo em busca de coragem.
Não tinha ideia de como seria morar com esses desconhecidos, dependendo deles para tudo, mas que escolha mais me restava? A alternativa eram as ruas geladas daquela cidade, pois eu nem mesmo poderia voltar de onde vim. Por fim, deixei de enrolar e cruzei a grama úmida até a casa.
Além do batente branco da porta, havia uma sala de estar decorada em tons de castanho e marrom. Tinha um sofá de flanela xadrez a frente de uma televisão pequena sobre uma mesinha de madeira, quadros com fotos de família nas paredes e um busto de lobo entalhado em madeira em destaque entre elas.
Sequei brevemente a sola dos sapatos no tapete sujo da porta, cada passo meu ali dentro parecia uma invasão de privacidade, eu não tinha o direito de atrapalhar aquela feliz das fotos com os meus problemas. No entanto, não poderia dar meia volta e sumir dali.
Estava distraído, observando uma daquelas fotos com curiosidade. Haviam na imagem três crianças, sendo duas meninas lindas com sorrisos largos e um menininho menor, que reconheci como o gigante emburrado, e um casal feliz. Meu coração se apertou no peito com inveja daquele pequeno gigante, pois nunca tive uma família nem mesmo para aparecer em fotos.
Com a garganta ardendo de forma irritante, deixei de lado aquele assunto e arrastei meu olhar até o lobo de madeira na parede. Mesmo os detalhes de sua pelagem foram representados no trabalho que era, querendo ou não, impressionante. Só desviei meu olhar do trabalho artístico quando uma voz chamou minha atenção.
-Gosta de lobos, rapaz? - foi o que o homem perguntou, se aproximando em sua cadeira de rodas. Tinha cabelos longos e escuros como o gigante, mas ao invés de gorro usava chapéu de caubói, e foi a primeira pessoa naquela cidade a me ofertar um sorriso e um aperto de mãos - Sou Billy Black.
-Acho que eles têm seu charme. - foi minha resposta breve ao retribuir o cumprimento - Erick.
-Bem-vindo a Forks, garoto. Gostou do presente? - sua pergunta me pegou de surpresa, não tinha ideia do que ele estava falando, e acho que isso era nítido em minha expressão - Não contou pra ele, Jacob?
-Me esqueci... - o gigante que eu nem notei entrar na sala resmungou.
Então, o nome dele é Jacob? Interessante...
-Não conseguimos uma vaga pra você na escola da reserva, então achei que precisaria de transporte para a cidade. - Billy informou, indo até a porta e eu o segui já com um pressentimento ruim.
O homem apontou com o queixo a lata-velha laranja, majestosamente parada na lama com sua ferrugem reluzindo no sol inexistente de Forks.
-Dei uma calibrada no motor, mas se der problema eu posso consertar de novo. - foi Jacob quem falou, de braços cruzados e sem olhar para mim.
"Obrigado", a palavra saiu dos meus lábios por puro costume, enquanto eu me via no topo de um pódio como
o ferrado com mais azar no mundo.
XXX
NOTAS DA AUTORA:
Hello, darlings! Mais um capítulo entregue para vocês!
Deixem seus votinhos e comentários que isso me incentiva muito, e obrigada por ler!
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