|001 - A Estátua Do Anjo.
A primeira pá de terra caiu pesadamente sobre a madeira branca do caixão, como uma sentença inescapável. Um prenúncio do fim silente que aguarda a todos nós. Observei como pá a pá o leito eterno era engolido pelo solo, guardava o corpo da mulher que me deu a vida e também os meus maiores traumas. Talvez eu fosse o pior dos desgraçados por isso, mas me sentia incapaz de derramar uma única lágrima por ela, minha alma vazia de qualquer sentimento.
O orvalho frio na grama tão verde umedecia a barra da calça social que eu estava vestindo pela primeira vez, mas o céu estava muito limpo. Pintado de um azul vivo que os mortos invejavam sob os túmulos naquele plácido cemitério. O Sol da manhã irritava os meus olhos e as minhas pernas já se mostravam dormentes pelo longo período de pé. Quando por fim o mortório acabou, me aproximei da cova recente, com o cheiro de terra molhada e morte impregnando meu olfato.
Joguei ali um ramalhete simples de rosas brancas, meu último ato para com minha progenitora, e a forma frugal que adotei para lhe entregar meu perdão. Diante da figura perene de seu sepulcro, eu deixei para trás nas alvas pétalas daquelas flores toda a mágoa e o ressentimento. Libertei a nós dois.
Um suspiro repleto de irritante exaustão escapou dos meus lábios, afrouxei a gravata e alcancei no bolso a caixa amassada do Malboro. A fumaça espiralou desenhando formas inteligíveis no Sol morno quando o isqueiro incendiou o cilindro branco, a nicotina preencheu meus pulmões em um profundo trago. Quando soltei a fumaça, uma pontada de nostalgia tocou meu peito.
Me lembrei dela fumando na varanda de casa, com os cabelos louros como os meus arrumados em uma faixa colorida, cantando algum sucesso da Janis Joplin. Nesses momentos raros de paz, eu me enganava pensando que talvez ainda houvesse algum conserto para nós. Porém, tudo sempre voltava aos gritos e farpas depois. Um maldito ciclo vicioso que permeou toda a minha vida.
Em minha caminhada rumo à saída do local, notei um mausoléu em específico. A estátua de um anjo manchada pelo tempo repousava lá em cima, na serenidade de sua tristeza me encarou quase com pena. Um garotinho quebrado e solitário num mundo grande demais para ele.
Em um gesto de desafio e provocação para a figura de pedra, levantei o dedo do meio como toda a rudeza que havia em mim. Segui meu caminho depois, deixando para trás a melancolia que a estátua parecia emanar.
XXX
Aquela casa não combinava com o vazio em que se encontrava agora. Não havia mais o bater desastrado das panelas, ou o programa ruim passando na televisão, mas principalmente nunca mais haveriam os gritos estúpidos dela sobre como eu não servia para nada. Éramos apenas o silêncio e eu, em cada cômodo desarrumado e móvel coberto de poeira e latas de cerveja.
Estava livre, tanto, que não via mais um rumo para mim. Tudo o que restava a mim era a lacuna da mãe que ela nunca foi. Meu infortúnio maior e mais vivido no banquete de desgostos que era essa minha existência amarga, ela havia me privado de tanto, e agora nem o luto eu tinha. Nada, fora essa minha herança.
Eu poderia gritar sozinho, chorar por tudo que não foi na minha vida ou apenas me enforcar no banheiro, e eram opções tentadoras, principalmente a última. No entanto, ser achado morto pela polícia local naquele pardieiro de cinzas de cigarro e louça suja me pareceu a parte mais intragável daquele dia.
Coloquei no CD Player minha música favorita no volume máximo, a que ela nunca me deixava ouvir. Joguei no sofá o paletó e arregacei as mangas da camisa.
Na sala abafada com cortinas bregas ocultando minha festa, valsei com a vassoura ao som de Lana Del Rey. Meus passos lentos como uma marcha fúnebre eram intercalados com os movimentos suaves dos meus quadris acompanhando a sensualidade na melodia. Como uma maldita bicha, mamãe diria, e uma risada amarga fugiu fundo da minha garganta.
Será que foi por isso que você nunca me amou, mãe...?
Era apenas mais uma pergunta sem resposta que ela deixou.
A noite passou sem que eu notasse e quando o Sol nasceu pela janela do banheiro, toquei o feixe de luz morna com as pontas enrugadas dos dedos. Mergulhado na água fria da banheira ainda com as roupas do enterro no corpo, olhei para os azulejos mais limpos do que já estiveram em anos, mas nenhum sentimento de missão cumprida chegou a mim.
Com uma esparramação breve de água, sai da banheira e me despi cantarolando porque o silêncio havia se tornado meu segundo pior inimigo além de mim mesmo. Havia recém ligado o chuveiro para, afinal, um banho decente, quando um som diferente da minha voz trovejou por aquela casa morta.
Franzi as sobrancelhas de boca aberta como um imbecil e não sei por qual motivo sequer desliguei o chuveiro, antes de correr pelado casa afora para atender a porta. Talvez só quisesse ver qualquer outro ser vivo além da minha face deprimente no espelho.
Do sofá eu peguei o paletó de ontem para cobrir meu íntimo, destrancando a porta em seguida sem nem mesmo me certificar de que não havia ali fora qualquer maldito ladrão. Não sei o que ou quem eu esperava encontrar atrás daquela porta, mas qualquer supérflua animação em mim sumiu quando encontrei apenas aquele desconhecido me esperando.
-Em que posso ajudar...? - questionei incerto, ele me olhou de cima a baixo com ar de poucos amigos e eu tentei cobrir um pouco mais da minha nudez com o paletó.
-Tenho um documento a entregar para Joanne Lindbergh. - me informou profissional, tirando da maleta alguns papéis.
-Ela... Faleceu, antes de ontem. Pode me entregar, sou o filho dela. - ainda era estranho dizer aquelas palavras.
-Eu não sabia... Meus pêsames. - certa surpresa surgiu na face dele, acho que não é o tipo de coisa pela qual se passa todos os dias. Ele me encarou por mais um instante, não sei o que procurava no meu rosto e nem se encontrou quando me entregou o que trazia.
Segurei a folha lisa entre os dedos, começando a ler nas linhas cheias de palavras desnecessariamente difíceis o pior texto pelo qual já passei os olhos. Meu coração acelerou dolorosamente no peito e a respiração travou na garganta, sob minha visão que agora turvava havia uma ordem de despejo. Quarenta e cinco dias para desocupar a minha casa...
-Isso não está certo! É um golpe! Você não pode simplesmente bater na minha porta e mandar que eu saia da minha casa! - gritei antes que pudesse me conter, tremendo dos pés à cabeça.
Aquilo tinha de ser uma piada de mau gosto. Por que, afinal, o que eu faria com a minha vida se não fosse?
-Mais uma vez, sinto muito pela sua perda, Sr. Lindbergh... Mas este imóvel foi hipotecado e o valor não foi pago, a menos que pague o valor estipulado neste documento, não há mais nada que eu possa fazer. - aquele homem explicou com ar de quem fala com um moribundo, mas a pena em seus olhos de nada me servia perante a quantidade de zeros naquele papel - Você é ao menos maior de idade...? - a pergunta me pegou de surpresa, mas tratei de direcionar minha indignação a ela. Não iria parar em uma porcaria de orfanato nem morto.
-Obrigado por trazer o documento, tenha um bom dia! - com o máximo da rudeza adulta que pude encontrar, fechei a porta sem esperar uma resposta.
Assim que me vi novamente sozinho com a minha miséria, despenquei. Meus joelhos bateram no chão quando faltou força nas pernas, mas eu não senti o impacto, pois o nó em minha garganta era muito maior. Eu gritei com toda a força em meus pulmões, como uma besta ferida, minha alma de rasgos brutais trajada.
Eu havia perdido meu maldito emprego de meio período a dois meses, pois meu chefe achava que aquela mixaria que pagava sempre com atraso também pagava pelo meu corpo. As economias da casa foram todas gastas com o passar dos dias, com futilidades e cerveja. Na várzea dos meus pensamentos eu não enxergava mais uma saída para aquela pérfida situação.
Mesmo quando, um a um, aqueles dias longos e monótonos de noites cruéis se passaram diante dos meus olhos, minha desesperança continuava tão viva quanto o medo do futuro. Eu poderia dizer que a primeira semana foi a pior, isolado naquela casa e tendo apenas meu desgosto como companhia pois nunca tive realmente amigos, aprendi que a morte assusta muito menos que a solidão. Até mesmo tentei entregar alguns currículos nas lojas do bairro, qualquer emprego ruim que me desse uns trocados no final do mês para comprar comida. Nada deu certo.
No entanto, a segunda semana não foi melhor. Quando todo o cigarro acabou, a abstinência de nicotina era tão lancinante quanto a maldita solidão. Eu comecei a consumir todo o álcool que encontrei escondido naquela casa sufocante porque não encontrei mais nenhum meio de passar por aquilo. Sequer me lembro da terceira semana e só me dei conta de que estava no início da quarta, porque não havia mais qualquer coisa que impedisse a minha completa sobriedade ali.
Lá estava eu, olhos nos olhos com o espelho do banheiro, este mais uma vez encardido. A quarta semana passou tão devagar que era apenas a terça-feira da quinta semana, e eu sentia como se fizessem meses que aquele anjo me encarou com pena no cemitério. Senti vontade de suplicar a ele uma fuga deste infortúnio.
Sem qualquer resposta de um possível trabalho, toda a comida havia acabado antes de ontem. Meu estômago doía quase tanto quanto minha cabeça e eu estava tendo constantes quedas de pressão, o galo que ornava minha testa era a comprovação do último desmaio. Será que aquilo poderia ser coberto com maquiagem...?
-Uma puta com a cara estragada... Patético deveria ser meu sobrenome... - a amargura em minha voz impregnou o espelho quando encarei a pouca maquiagem que consegui comprar escondido no começo do ano, caoticamente jogada dentro da pia.
Era minha última e mais torpe tentativa, me vestir da forma mais vulgar possível e ir implorar para aquele homem nojento pelo meu antigo emprego. Uma forma mais branda de dizer que me tornaria um prostituto barato aos dezessete anos. Senti como mais uma parte da minha alma escoou junto da lágrima que teimosamente escorreu pela minha bochecha, mas tratei logo de secar aquele deslize.
Espalhei com as mãos a base pelo rosto, me escondendo como uma criança assustada atrás de uma máscara. Era o mero simulacro de uma pessoa, pois assim encontrei a melhor forma de fingir que poderia permanecer incólume depois daquilo. Gostaria de poder me salvar da iniquidade que consome esse mundo até o cerne, mas o sofrimento é perene como a eternidade, desde os arcaicos tempos em que tudo começou.
Ao contornar a face, o óbice mais doce que nesse dia encontrei me fez largar com surpresa o pincel, que manchou a pia já suja ao cair de minha mão. Desci a escada aos tropeços na pressa, rumando o telefone fixo na parede da cozinha que com uma desconhecida ligação quebrava o silêncio mórbido naquela casa.
Meu coração batia tão forte no peito que pensei ser capaz de quebrar minhas costelas. Uma onda de medo me tomou para si de repente e tremi com a possibilidade de ser novamente aquele homem, querendo me jogar na rua um pouco antes do prazo. Mesmo assim, algo em mim, e nunca soube se coragem ou desespero, me fez atender.
-Sim...? - a pergunta soou como se eu caminhasse à beira de um frágil penhasco, qualquer passo em falso faria a borda desmoronar, e então seria o meu trivial fim.
-Gostaria de falar com o filho da Joanne, acho que o nome é Erick, ele se encontra? - uma voz masculina desconhecida respondeu do outro lado.
-Qual seria o assunto? - me esquivei, tentando descobrir qualquer detalhe que me trouxesse a segurança de me revelar.
-Eu fiquei sabendo do que aconteceu com ela só ontem a noite... Meu nome é Billy Black. - ele começou, sua voz era mansa, me trouxe um conforto estranho - Conheço Joanne a muito tempo, e pelas minhas contas o garoto ainda deve ser menor de idade. Ela não iria querer o único filho jogado em um orfanato qualquer, pensei em estender uma mão... Tem um quarto vago na minha casa. Diga a ele que posso arcar com a passagem de ônibus.
-Você t-tem... Tem uma caneta? - gaguejei, minha garganta ressecada e a boca dormente.
Com uma breve afirmativa daquele homem que eu sequer conhecia, ditei o número da conta vazia da minha mãe no banco, sem saber o que sentir ou pensar.
XXX
NOTAS DA AUTORA:
Hello, darlings! Primeiro capítulo entregue e revisado com sucesso! Não tivemos muitas alterações nesse.
O que estão achando até agora? Deixem nos comentários!
Obrigada por ler e até a próxima!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro