𝟰. you don't even know my name
𝗝𝗔𝗡𝗨𝗔𝗥𝗬 𝟭𝟳, 𝟮𝟬𝟮𝟰
ᥫ᭡𝐌𝐀𝐓𝐓...
O gelo sob meus pés não é uma superfície fácil de domar. Aprendi esse fato quando tinha seis anos e usei os patins de gelo pela primeira vez no lago congelado perto de casa. Meu pai levou a mim e meus irmãos a esse mesmo lago dezenas de vezes naquele inverno, e eu experimentei centenas de vezes a queda dolorosa contra a superfície fria.
A queda não dói nem um pouquinho a menos desde então. Aos dezessete anos, eu ainda quero chorar quando meu corpo se choca com o gelo que mais parece um chão de cimento.
O barulho das lâminas dos meus patins de hóquei ressoa pelo ringue vazio quando me levanto e deslizo pelo gelo. O movimento familiar do metal afiado sob a superfície gélida me guia para o fim do treino, que é adiantado após o tombo brutal. O braço direito, que ficou embaixo do meu corpo na queda, implora por um saco de ervilhas do freezer mais tarde.
Sento no banco de reservas solitário do outro lado da pista de gelo e procuro pela minha garrafa de Gatorade pela metade, tomando o resto do líquido em um longo gole. Enquanto inspiro o ar frio para os pulmões, sinto uma mão no meu ombro esquerdo e, por reflexo, rebato com força para longe de mim.
— Aí! — Hunter reclama, segurando a mão atingida com a outra. — Que força é essa?
— Desculpa. Quando você entrou aqui?
— Eu já estou te observando há uns cinco minutos.
— E não achou que seria uma boa ideia me chamar, ao invés de me tocar do nada assim, quando eu achei que estava completamente sozinho aqui?
Hunter dá de ombros e sacode a mão dolorida.
— Você perdeu a última aula de álgebra — ele diz, sem me deixar dúvida de que é uma constatação. — O que está acontecendo?
— Eu só queria aproveitar a oportunidade que é ter essa pista desocupada em dia de semana e treinar mais um pouco. Você está certo, meus ataques estão desordenados e sem sincronia com o resto do time. Acho que, se melhorar meu desempenho individual, será mais fácil recuperar o ritmo com o time depois.
— Eu aprecio a dedicação e falo sério sobre os pontos fracos que enxergo em vocês, para que não precisem enfrentar a verdadeira fera, — ele responde, levantando as sobrancelhas em desgosto quando menciona seu pai, nosso treinador. — Mas você já está fazendo demais.
— Isso não é verdade. Não queremos perder as regionais, certo?
— Olha... — Hunter suspira daquele jeito pesado, como se preparasse para tocar em um assunto sensível. — Sei que a preparação para a faculdade e a possibilidade de um draft assim que terminarmos o ensino médio me deixa um lunático, mas não é minha intenção cobrar tanto de você também. Principalmente porque você é meu amigo e posso acabar perdendo a mão com isso. Não quero ser motivo para estar no seu caderninho de assuntos a serem tratados na terapia.
Eu rio da piada descontraída do capitão, que mais soa como uma infeliz realização. Ele sabe o que eu estou fazendo, claro que sim. Alguém que me viu passar por quatro terapeutas diferentes nos últimos sete anos só pode fazer o possível para que eu não coloque pressão demais em mim mesmo.
Mesmo quando me lembro do Hunter que conheci no terceiro ano do fundamental, as memórias já são do garoto que sempre assumia responsabilidades que não eram suas apenas para diminuir o peso nos ombros de seus amigos. Ele tem os próprios problemas e, às vezes, são incomparavelmente maiores do que os meus, mas nunca recusaria me ajudar primeiro antes de pensar em si próprio.
— Não se preocupe, Hunt. Seu nome não está no meu caderninho, mas o do seu pai, com certeza! — Mordo minha bochecha para não soltar uma risada, mas a gargalhada genuína do garoto me faz desmanchar em risos também.
— Ele está no topo da lista no meu caderninho também. — Ele dá dois tapinhas nas minhas costas como se estivesse me tranquilizando sobre o que acabamos de dizer e se levanta do banco. — É bom que peça para um zamboni passar limpando a pista antes que ele venha para cá com a garotada do oitavo ano.
— Pode deixar, capitão.
— Ei, se quiser aparecer lá em casa mais tarde, pode chegar. Nick, Sadie e Angel estão indo com a desculpa de terminar a nossa parte do trabalho de biologia, mas todos sabemos que eles estão mais interessados na minha jacuzzi.
— Não posso julgá-los, nesse frio tudo o que pedimos é a jacuzzi de um bom amigo.
— Por isso vou começar a dizer para a portaria do condomínio proibir a entrada de vocês!
— Você não vai precisar se esforçar tanto... — Começo a desamarrar meus patins. — E obrigado, mas já tenho outro compromisso. Fiquei de ajudar minha mãe com o jantar e meio que estou evitando a Angel.
— Hm, por que está evitando a senhorita Lewis?
— Só porque ela está no meu pé sobre o artigo para o jornal. E não que ela esteja errada, mas eu não estou conseguindo escrever nada e não quero que ela se preocupe.
— Ela sempre se preocupa com você, Matt. É o que amigos fazem.
— Eu não sou nenhum bebê!
— Sadie diz o mesmo quando nos preocupamos com ela.
— Mas ela é nossa bebê… Ou era, até você desvirtuar a menina, claro.
— Cala a boca, cara.
Ele empurra meu ombro quando rimos em conjunto.
— Tchau, Hughes. Me manda mensagem se for correr comigo amanhã de manhã. — Coloco os patins presos pelo cadarço sobre os ombros e já estou caminhando com a bolsa dos meus equipamentos para longe da arena quando o ouço resmungar:
— Se você não for às cinco da manhã e a temperatura não estiver abaixo de zero, eu topo!
❄︎ ❄︎ ❄︎
A casa cheira a carne assada e legumes refogados. Mamãe canta uma música infantil que toca na assistente virtual portátil na cozinha, provavelmente sem perceber que a porta se abriu e fechou quando três de seus filhos passaram por ela.
Subo rapidamente para deixar minhas coisas no quarto e volto para a cozinha, atrás de um saco de ervilha que possa aliviar a dor em meu braço.
— Olha quem veio jantar com a gente! — Nick diz, dando risada quando a garotinha se interessa pelo piercing de argola no nariz dele.
— Matty! — Os t’s soam como f’s, e é a coisa mais fofa que já ouvi uma criança falar.
— Aspen. — Bato palminhas e me aproximo, ela quase pula do colo de Nick para o meu. Quero pegá-la, mas além do braço dolorido, mamãe já aponta a bacia com as coisas da salada que eu preciso cortar. — Então, nós sabíamos que ela é irmã da Lilith?
— Como assim nós? — Nick enruga as sobrancelhas enquanto eu cumprimento minha mãe com um beijo na bochecha.
— É, se você soubesse, duvido que não teria me contado. Com essa boca grande...
— Vai se…
— Meninos! — Minha mãe o repreende rapidamente. — Eu não sabia que vocês frequentam a mesma escola que ela.
— Por que nunca nos falou sobre ela antes?
A resposta para essa pergunta vem à minha mente assim que Mary Lou me olha com aquele olhar caridoso.
Não é raro ver mamãe vasculhando os armários em busca de roupas que não usamos mais para doar, ajudando nas ações sociais da igreja, ou se voluntariando para servir a ceia de Natal no centro comunitário da cidade. Ela é a pessoa mais generosa que conheço e sempre nos ensinou a agir da mesma forma. No entanto, ela sempre evitou dizer quem eram as pessoas que estávamos ajudando, pois muitas vezes eram colegas de escola ou vizinhos, e ela não queria que começássemos a tratá-los de forma diferente por serem menos afortunados.
Com isso em mente, volto meu olhar para Aspen. Essa é a terceira vez que minha mãe cuida dela, e tudo o que nos contou foi que a garotinha é irmã de uma menina que também se voluntaria na casa de repouso.
Mary Lou balança a cabeça e continua o assunto de outra forma.
— Lilith pediu para que Aspen ficasse conosco por algumas horas. Parece que ela se envolveu em um acidente de carro mais cedo.
Engulo em seco. Certamente Lilith não sabe que eu sou filho de Mary Lou e prefiro que elas não cheguem nesse denominador em comum, assim evito levar um enorme esporro da minha mãe.
De todo jeito, vou ter que oferecer ajuda para pagar o conserto da minivan de Lilith. O problema é ter uma conversa normal com essa garota, que mais parece a Medusa em live action.
— Oh, sério? — Nick pergunta, e eu agradeço a mim mesmo por ter ficado ocupado demais o dia inteiro para lhe contar sobre o acidente. — E ela está bem?
— Está sim. Confirmou que estaria na confraternização que vamos fazer na casa de repouso. Inclusive, vocês também irão ajudar.
— Ah, mãe…
— Hoje? Tenho planos para hoje à noite.
Mary Lou solenemente ignora nossos resmungos.
— Podemos levar nossos amigos, pelo menos? — Nick pergunta.
— Se eles forem para se voluntariar, é claro que podem.
— Vou pedir ao Chris para convencê-los a ir então. Ele pode mentir sobre o verdadeiro destino da tal festa ou sei lá… eu já sou pecador demais para inventar mais essa.
— Nicolas!
Nick escapa da cozinha com Aspen no colo antes que possa ouvir o sermão de nossa mãe e terminamos de preparar o jantar sem mais interrupções.
❄︎ ❄︎ ❄︎
— Eu ainda não acredito que vocês nos trouxeram para uma festa de idosos! — Sadie diz pela terceira vez na noite, claramente entediada enquanto beberica seu ponche de frutas vermelhas.
Nada é alcoólico, nada tem sequer sabor – não que eu tenha ousado comer qualquer coisa servida nas longas mesas do salão de festa do Sweet Magnolias. A música ambiente é uma melodia tão antiga que faria o álbum da Cher de 1966 parecer recente.
É claramente um lugar nada convidativo para jovens, mas aqui estamos nós.
Mary Lou ficou imensamente feliz quando soube que trouxemos nossos amigos, e como eles adoram minha mãe, foram os voluntários perfeitos nas primeiras horas da festa, servindo aos idosos e suas famílias com bebidas e petiscos ou ajudando na organização de cadeiras e mesas dispostas no lugar.
Ainda tenho uma bandeja de alumínio no braço por preguiça de levá-la de volta à cozinha para os outros voluntários.
— Sério, podemos ir embora agora? Não vejo Mary Lou há algum tempo, e ela deve estar ocupada demais para notar que saímos. — Hunter reclama, mexendo o quadril como se fosse um dos idosos com dor nas juntas.
— Se ela estivesse supervisionando, você ficaria aqui? — Nick provoca com uma cutucada na costela do amigo.
— Sem pensar duas vezes, Nicolas, sem pensar duas vezes.
— Estamos indo então? Preciso passar no banheiro antes. — Nate avisa.
— Eu tenho que encontrar Angel. — Jogo a bandeja no peito de Chris, e ele não tem outra alternativa a não ser segurar, mesmo querendo me xingar. — Ela é uma garota exemplar e ainda deve estar ajudando por aí.
— Então tá, estaremos esperando no carro — Sadie diz, por fim.
O grupo se afasta para a saída enquanto eu e Nate vamos na direção dos banheiros.
Eu ia esperar Nate sair do banheiro para que fôssemos juntos procurar Angelina, mas noto seus cabelos cacheados quando ela desvia de um senhor em uma cadeira de rodas que parece perdido.
Abrindo a porta de vai-e-vem que dá acesso à área dos banheiros, seguro seu cotovelo e a puxo com cuidado depois de ouvi-la se desculpar com o idoso.
— Ei, o que é isso? — Ela ri quando tiro a bandeja com apenas um copo de suco – de sabor não identificado – das mãos dela.
— Estamos indo embora. Chega de trabalho para você por hoje.
— Já? Achei que íamos ficar até o fim.
— Sério, Angel? Você estava mesmo aproveitando seu tempo aqui?
— Claro que sim. — Ela franze as sobrancelhas. — Sua mãe ficou feliz em me ver ajudando, e então os velhinhos começaram a ser muito fofos e...
— E você sentiu que não podia decepcionar velhinhos fofos ou minha mãe.
— É, algo assim. — Ela solta uma risada triste desta vez.
Eu não entendo como Angelina pode ter problemas com autoaprovação quando tudo o que se propõe a fazer, faz com tamanha perfeição. Talvez ela ainda não tenha superado "decepcionar" seus pais com a infeliz lesão nas cordas vocais que teve no último ano e, com isso, ter afastado o sonho de ser a versão feminina de Andrea Bocelli – ou seja lá o que eles queriam que ela se tornasse. Isso não a faz minimamente menos perfeita aos meus olhos.
— Ei, você foi ótima hoje. Tenho certeza de que vou ouvir muitos elogios de Mary Lou sobre você. — Faço carinho em seus braços cobertos pelo fino tule na manga do vestido e olho intensamente em seus olhos verdes.
— Obrigada, Matt.
— Sabe quem mais está te achando ótima esta noite?
— Hm... — Ela já está se inclinando em minha direção quando me aproximo perigosamente do seu rosto.
Não me importo muito se Nate sair do banheiro neste momento e nos pegar no flagra, embora nenhum de nossos amigos saiba que eu e Angel fazemos isso às vezes.
— Você está linda.
Ela não espera mais nenhuma palavra para me beijar. Suas mãos estão em meu pescoço, e as minhas pressionam sua cintura contra meu corpo, totalmente quente por ela.
Sei que Nate está prestes a sair do banheiro, então, com os lábios ainda grudados nos dela, empurro a porta para sairmos antes que ele nos veja. Ter velhinhos nos julgando como promíscuos é melhor do que meu amigo descobrir sobre nosso lance desse jeito.
A porta bate em alguém, e ouço o som de líquido sendo derramado, seguido do barulho alto de alumínio caindo no chão.
Demoro alguns segundos para entender o que está acontecendo até notar Angel ajudando a recolher cacos de vidro no chão ao meu lado.
Aperto os lábios, pronto para pedir desculpas, quando os olhos cor de jabuticaba da garota cruzam com os meus. Ela está com as bochechas vermelhas, notável mesmo sob seu tom de pele e a iluminação ruim do local onde estamos.
— Você — ela diz, soando como se Deus estivesse me anunciando no dia do juízo final.
— Sinto muito. Eu não te vi... Eu... Vou buscar uma toalha. Sinto muito.
— Claro que não me viu! — Ela me interrompe, sussurrando. — Vocês estavam... Muito ocupados para ver.
Lilith olha para Angel por meio segundo antes de voltar a me encarar com raiva. Ela afasta o cabelo cacheado do busto e faz uma careta ao notar que eu desvio o olhar para a mancha laranja na blusa social.
— Foi um acidente — digo, cerrando meus dentes.
— Que poderia ser evitado.
— Eu não queria-
— É claro que não. — Ela ri sarcasticamente e meus nervos fervem como leite no fogão.
Nate aparece misteriosamente de algum lugar com uma toalha na mão para entregar a ela. Lilith começa a secar o cabelo, que mesmo da distância que estamos um do outro, ainda é possível sentir o cheiro que exala.
— Obrigada.
Meu amigo apenas sorrir como um idiota e eu evito revirar os olhos
— Desculpa — Angel diz, com um sorriso sem graça e logo me puxando para longe.
— O que caralhos aconteceu? — Nate pergunta olhando alarmado de mim para Angel.
— Eu nem sabia que ela estava aqui. E olha que estive em todos os cantos desse lugar hoje.
A voz de Angel começa a ficar distante enquanto ela inventa para Nate uma desculpa qualquer sobre o que nos levou a trombar com Lilith.
Eu estou quente. Dessa vez, não por causa de um beijo, mas por causa de Lilith. Porque ela sabe de um dos meus segredos agora.
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