𝟯. collide
𝗝𝗔𝗡𝗨𝗔𝗥𝗬 𝟭𝟳, 𝟮𝟬𝟮𝟰
ᥫ᭡𝐋𝐈𝐋𝐈𝐓𝐇...
Olho para o calendário na parede, sentindo o peso dos últimos três meses que se resumem em um turbilhão de emoções, decisões difíceis e preocupações constantes.
Desde que minha mãe retornou ao hábito de desaparecer, agora por mais tempo e com mais frequência, comecei a desconfiar que os problemas dela vão muito além dessas ausências. A sensação de que ela está envolvida em algo mais sombrio me inquieta, mas sei que confrontá-la diretamente não adianta – Celeste sempre tem uma resposta evasiva, uma desculpa pronta, e a conversa acaba ali.
Além do mais, acho que ela arrumou um emprego no último mês, pois parou de me implorar por dinheiro e já encontrei alguns dólares nas calças jeans dela quando pego para lavar. Eu só não sei se quero saber a procedência dos trabalhos que ela anda fazendo.
A luz dos meus dias sombrios é Aspen, como sempre. Ela já frequenta a escola, e sua felicidade ao falar dos novos amiguinhos e da professora é um raro conforto para mim. Aspen completará três anos na próxima sexta-feira, e me agarro à alegria infantil dela como um refúgio para minha realidade caótica.
Por outro lado, também há a vovó Marjorie. Ela, que em um dia pode falar sobre o passado com uma clareza assustadora, e no outro, mal consegue lembrar o próprio nome. O Alzheimer está avançando, e a incerteza de como serão os dias de vovó daqui para frente se tornou uma preocupação que precisa de uma solução.
Foi em uma dessas noites, com minha mãe mais bêbada do que eu podia suportar, que decidimos colocar vovó em uma casa de repouso. Celeste provavelmente nem se lembra da conversa, mas a decisão foi tomada pelo bem de todos nesta casa.
O problema é o custo. Sei que não tenho como arcar com a estadia da vovó no Sweet Magnolias, mas não posso deixá-la sozinha em casa por muito tempo quando tenho que estudar ou trabalhar. Sem opções, me ofereci para trabalhar na casa de repouso. Camareira, cozinheira, ou o que precisarem que eu faça – qualquer coisa para garantir que a vovó esteja sendo bem cuidada.
Paro para suspirar quando desço meus olhos mais um pouco pelo calendário, parando em maio. Faltam quatro meses para o meu aniversário de dezoito anos, o que parece muito insignificante diante da vida adulta que eu já levo.
Aviso minha mãe por mensagem que eu e Aspen estamos saindo de casa. Se eu esperar mais alguns minutos para ver se ela chega em casa, vou me atrasar para pegar as crianças e levá-las para a escola. E não posso perder o primeiro tempo da aula de Literatura, porque a professora Kirby já está no pé.
E por crianças, me refiro a cinco pirralhos que me fazem de transporte escolar. Mas eu não tenho muito do que reclamar, todas as crianças moram na vizinhança e estudam junto ou na escola ao lado da creche de Aspen, o que não me dá muito trabalho para levá-las e trazê-las. Além disso, a renda extra compensa.
Aceno para a Sra. Peterson, mostrando que Maxon está bem preso em sua cadeirinha no banco de trás, e dou a volta na minivan tentando não parecer tão apressada. Espero que ela não tenha me visto acelerar após o quebra-molas, porque realmente não tirei o pé do acelerador até encontrar um sinal vermelho.
— Uh, parece que alguém está com pressa hoje. — A voz irritante de um pré adolescente zumbindo em meu ouvido é quase impossível de ignorar, mas eu já o faço com naturalidade.
Por morar no início da rua, Jason é a primeira criança que eu busco. E por ser o mais velho, ele ocupa o banco do passageiro. Isso significa que, de segunda a sexta-feira, eu passo quase vinte minutos tendo que ignorar a existência de um garoto de onze anos que me provoca com piadinhas, flertes tenebrosos e uma pitada de sarcasmo em tudo o que diz.
— O que foi, hein? O namorado te dispensou? Ah é, esqueci que com esse mau humor e vestindo as roupas da professora Trelawney de Harry Potter você nunca poderia ter um namorado.
Ele ri alto, mas sua gargalhada logo se transforma em um uivo de dor quando puxo um dos lados de seu fone de ouvido até o limite e o solto, fazendo-o voltar a se encaixar na orelha do garoto com um estalo.
— Isso é machismo, para começar… Não que eu espero que você saiba o que é machismo. — Suspiro derrotada. Eu deveria apenas ignorá-lo. — Volte para seu joguinho e cala a boca.
Sussurro a última parte porque todas as outras crianças no veículo tem menos de oito anos de idade e eu não quero que elas voltem para casa repetindo o que a srta. Nadin falou. Isso seria péssimo para a reputação que eu estou criando no bairro.
Quer dizer, todos conseguem notar de longe que eu sou mesmo meio mal humorada e rabugenta, mas minha personalidade doce e divertida aparece facilmente quando eu estou ao redor de crianças. E tirando Jason – que também não tem culpa da má criação que recebe em casa e em como isso reflete em seu comportamento –, eu adoro esses pirralhos.
Não sei em que momento me distraio com a conversa paralela das crianças, mas percebo meu erro ao sentir o solavanco provocado pela batida no carro da frente. Felizmente, a culpa não é inteiramente minha; o outro carro está praticamente estacionado no meio da pista, bem na direção da curva que eu havia acabado de fazer.
— Está todo mundo bem? — pergunto, olhando para as crianças nos bancos de trás. Todas elas estão devidamente em suas cadeirinhas ou com o cinto de segurança bem instalado, e mesmo que a batida não tenha sido forte, é melhor checar por conta do susto. — Sinto muito, pequenos.
As crianças balançam a cabeça em afirmação – Maxon me mostra o dedão para cima e Aspen o imita –, então eu começo a desafivelar o meu próprio cinto de segurança e estou abrindo a porta do carro quando ouço um grito vindo da calçada.
— Ei! Esse é o meu carro! Mas que porra?
Matt aparece com seus dois braços para cima – sem se importar se iria derrubar ou não as embalagens recém-compradas na cafeteria – enquanto grita como um louco.
É só o que me faltava!
Matt Sturniolo não é um completo estranho para mim. Eu ainda me lembro da segunda semana de aula, quando estacionei na vaga do jogador titular do time de hóquei e fui recebida nos corredores por cochichos altos o suficiente para que eu logo entendesse que tinha parado no lugar reservado para um dos garotos mais populares da Somerville High School. Ele nunca veio falar comigo pessoalmente sobre o ocorrido, mas eu fiz questão de decorar cada vaga no estacionamento do colégio para não cometer um erro desses de novo.
Desde então, nossos esbarrões são cheios de conflitos e farpas. Talvez ele só esteja no lugar errado e na hora errada quando nos encontramos, porque é sempre a pedra no meu sapato em um dia já bastante tumultuado.
— Você conhece esse cara? — Jason está com o corpo projetado para frente para ver além de mim, encarando Matt com uma careta.
— Não — digo, em partes porque é verdade.
Matt não é um completo estranho, mas eu não o conheço.
— Boa sorte. Ele parece uma fera.
— Não foi minha culpa! — Me viro para Jason, colocando meu dedo bem perto do rosto dele. — Não saia daqui, vigie as crianças e qualquer coisa, me grita.
— Ok.
Eu posso dizer que ele está amedrontado pela forma como seus olhos se arregalam, mas esse não é Jason. O garoto não tem medo de nada e quando eu virar as costas, ele estará dando risada da minha cara, sem dúvidas.
Quando saio do carro, a expressão de Matt muda. Ele me reconhece e caminha mais rápido em minha direção. Cruzo os braços e o espero, me encostando na lateral do meu veículo.
Ele se inclina para ver o estrago no próprio carro, mas é possível enxergar qualquer coisa quando a lataria dos veículos parecem ter se fundindo uma na outra.
Ele enfia de qualquer jeito as embalagens da cafeteria dentro da minivan e volta à passos pesados até mim.
— O que porra você fez? — Seus olhos me analisam de perto, suas narinas dilatadas em fúria.
— Para de xingar! Eu tenho um carro cheio de crianças que podem chutar a sua canela o dia inteiro se eu mandar.
Matt olha para as janelas fechadas do carro e encontra todos os pirralhos espremidos no vidro, tentando enxergar ou ouvir o que acontece do lado de fora. Quando se recompõe e me encara de volta, sua boca está fechada como se nunca tivesse sido aberta antes.
— Isso é sua culpa por estacionar numa esquina — eu continuo, aproveitando o silêncio dele. — Você está maluco? Qualquer pessoa teria batido nesse carro!
— O meu carro está com o pisca-alerta ligado e ficou aí por cinco minutos sem que ninguém batesse nele até você aparecer!
— Ah sim, porque o pisca-alerta ligado resolve todos os seus problemas de estacionar em lugares indevidos!
— De estacionar em lugares indevidos você entende!
— LILITH! — A voz abafada de Jason vem seguida de batidinhas desesperadas na janela.
Dou as costas para Matt e gesticulo para que o garoto abaixe a janela.
— O que foi?
— O seu carro está pegando fogo! — Ele aponta.
Meu pescoço gira tão rápido que tenho certeza de que ficarei com torcicolo mais tarde, mas não penso muito nisso ao ver fumaça saindo do capô fechado da minha minivan.
Cacete, a batida não tinha sido de leve?
— Meu Deus!
Abro a porta de trás enquanto mando Jason descer do carro e me ajudar a tirar as outras crianças. Minha irmã está na cadeirinha da ponta esquerda e logo estende os braços quando eu tiro o cinto de segurança.
Matt, acredito eu, em um momento de desespero, também se propõe a ajudar e quando todas as crianças estão fora do carro, levanto o capô para encontrar a bateria queimada entre as fiações e outras peças cuja funcionalidade eu não faço entendo.
— Cacete…
— Olha a boca. — Matt me repreende como se tivesse o direito de o fazer. Eu olho para ele como se pudesse matá-lo e se Aspen não estivesse no meu colo, talvez eu teria o matado aqui mesmo.
— Lilith, eu estou atrasado. — Jason diz, bufando igual criança birrenta e o cacho ruivo que caiu sobre sua testa, voa para cima.
— Eu sei, estamos todos atrasados agora.
Olho para frente, tentando estimar a distância até a escola. Talvez sejam apenas duas quadras de caminhada, mas o atraso faz parecer que estamos a quilômetros de distância.
Matt pega a mochila e tranca o carro, parecendo pronto para sair da cena do crime. Observo-o por um instante antes de interferir, como se eu fosse a minha vez de ser a criança birrenta.
— Você vai me ajudar a levar as crianças para a escola.
— Não — ele responde, ofendido pela forma como ordenei.
— Você é um idiota! Por que acha que pode simplesmente arruinar meu dia e não me ajudar a lidar com as consequências?
— Não é problema meu! Eu não tenho nada a ver com essa turma de Barney e Seus Amigos ou de onde quer que essas crianças tenham saído.
— Você tem a ver com todas elas a partir do momento em que provoca um acidente!
— Foi você que bateu no meu carro!
Solto um grunhido alto e começo a me afastar dele.
— Cassie, dê a mão para o Maxon e venha aqui — oriento a garotinha, que logo faz uma corrente segurando minha mão e a de Maxon. — Jason, segure Aiden e Connor e venham para frente.
As crianças seguem minhas instruções, mas é difícil acompanhar meus passos apressados enquanto desviamos de pessoas, mesas de estabelecimentos, e paramos quando gatos pulam na nossa frente na calçada.
Ouço um suspiro atrás de mim e, de relance, vejo Matt surgir ao meu lado.
— Quer que eu a segure?
Paro para entregar Aspen a Matt, e os dois já parecem familiarizados quando ela abre um sorriso e se agarra ao moletom dele. Estranho, mas não tenho tempo para questionar nada hoje.
Trazendo Maxon para o meu outro lado, seguro sua mão e ajusto meu ritmo aos passos pequenos que suas perninhas alcançam.
— O que foi? Pesou na consciência? — pergunto.
— Não fui eu que bati no seu carro. O peso na consciência não deveria estar em mim.
— No entanto, está.
— Eu odeio você.
— Até parece.
Minha mãe costumava dizer que eu adorava fazer os garotos chorarem quando estava na pré-escola. Por sempre ter sido desapegada, eu não fazia um escândalo para entrar em sala de aula nos meus primeiros anos escolares e, na verdade, morria de rir ao ver garotinhos chorando e implorando para voltar para casa com suas mães.
Em minha defesa, não sou mais tão cruel assim, mas a ideia de fazer um garoto como Matt chorar e correr para a mãe, ainda me dá borboletas no estômago.
Andamos o resto do caminho em completo e absoluto silêncio. Bem, exceto pelas conversas das crianças, que estão interessadas demais em Matt para ignorá-lo.
— Você pode levar Jason, Cassie e Connor até a entrada da escola? — peço a ele. — Eu preciso levar Aspen, Aiden e Max até as salas.
— Tudo bem. Vamos trocar.
— Pode colocá-la no chão.
Aspen resmunga, mas eu a tranquilizei, dizendo que já chegamos ao nosso destino. Felizmente, ela adora a escolinha, então não prolonga a pirraça e logo me puxa para entrarmos na creche.
Antes de me virar, ouço a voz enjoada de Jason:
— Então, você é o namorado dela? Porque, se for, não sei o que ela está fazendo perdendo tempo contigo. Sabe que ela é muito mais bonita do que você merece, né?
Quero repreendê-lo, mas eles já estão se afastando, e eu me pego rindo daquilo.
Jason é um pré-adolescente, e eu sou sua primeira paixão platônica, é claro. A única forma que ele sabe demonstrar isso é me enchendo o saco, como qualquer pessoa de onze anos faria. É o que fazemos nessa idade, afinal.
Estou tão ocupada entregando as crianças em suas respectivas salas e pensando no meu gigantesco atraso — considerando que seria banida de participar da aula de literatura se chegar um minuto depois, já que a professora é um pesadelo —, que nem me passa pela cabeça como vou chegar à minha escola.
A essa altura, o ônibus escolar já passou, e o dinheiro que eu poderia usar para pegar qualquer outro transporte público foi gasto ontem para colocar gasolina na minivan – e terei que gastar mais um pouco com o reboque para levá-la até a oficina. Sacar dinheiro me tomaria ainda mais tempo, e não há ninguém em um raio de duzentos metros que confiaria em me dar uma carona…
Voltando para onde está o veículo com a minha mochila dentro, a ansiedade que aflora em meus poros dá uma pausa quando vejo Matt parado diante do capô levantado da minha minivan. Ele parece mexer em alguma coisa, mas estou muito distante para ver o que realmente acontece, então apresso o passo.
— O que você está fazendo? — pergunto, vendo-o saltar no lugar. Se estivesse com a cabeça um pouco mais abaixada, teria acertado a nuca no capô, e eu daria risada.
— Aí, caralho! Que merda, você me assustou. — É incrível como o sotaque dele fica aparente quando xinga. — Estou vendo a situação disso aqui. E, se quer saber, não foi a batida que causou isso. Essa minivan quase não está andando mais por si própria.
Me sinto seriamente ofendida com suas palavras.
O Chrysler Grand Caravan 2009 é o melhor carro que encontrei em uma agência de automóveis que aceitou negociar o valor por menos de dez mil dólares em espécie. Não tenho dívidas e tenho um veículo que atende às minhas necessidades. Ouvir Matt apontar os defeitos é uma ofensa a mim e ao carro.
— Essa minivan anda perfeitamente bem e não estava soltando fumaça nenhuma antes de eu esbarrar na sua imprudência.
— Então você admite que foi a responsável pela colisão?
— A colisão não teria existido se o seu maldito carro não estivesse mal estacionado, Matthew!
Ele coloca a própria minivan um pouco mais para frente, agora realmente tirando a traseira da curva, e, para minha surpresa, não há qualquer arranhão aparente na lataria do carro.
Arranco a minha mochila do porta-malas e bato a porta com certa força. São sete e cinquenta da manhã, e eu já estou enlouquecendo de tanta impaciência e estresse.
Contorno o carro e paro ao lado de Matt, tirando o apoio do capô e fechando-o sem me importar onde as mãos dele estão. Não o ouço reclamar, então assumo que seus dedos não foram esmagados.
— Você quer uma carona para a escola?
— Me deixa em paz. — Já estou caminhando para o meio da rua.
Se vovó e Aspen não dependessem inteiramente de mim, eu me jogaria na frente do primeiro carro que cruzasse essa esquina.
— Qual é, nós vamos para o mesmo lugar!
E eu não tenho dinheiro para me dar ao luxo de recusar a carona.
— Está bem! — É irritante como minha voz soa estridente. — Mas apenas porque você me deve um conserto para o carro.
— Eu não sei quem você pensa que é, mas tem que parar de querer me dar ordens.
Eu poderia pedir desculpas e dizer que é força do hábito, mas me render a Matt seria algo que ninguém nunca me veria fazer. Nunca.
— Não são ordens. Estou pedindo o justo perante a situação.
— Pedindo o justo perante a situação? — Ele me imita enquanto abre a própria minivan. É um Kia Carnival 2016, incomparavelmente mais novo e inteiro do que o meu veículo champagne-desbotado de 2009. — Quem é você? O papa? Fala igual gente, princesa.
— Não me chama assim. Meu nome é Lilith.
— Pelo menos combina com a personalidade.
— Idiota.
— Mandona.
— Não vou fazer isso — digo, interrompendo a sessão de xingamentos antes que se prolongue por mais minutos do que minha maturidade permite.
Ele ri. Um fodido riso audível e irritante. E minha única escolha é ignorá-lo até ser obrigada a agradecer pela carona quando chegamos à escola.
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