𝟮𝟲. not your fault
𝗠𝗔𝗬 𝟮𝟱, 𝟮𝟬𝟮𝟰
ᥫ᭡𝐋𝐈𝐋𝐈𝐓𝐇...
Assim que entramos na casa do tio Bobby, sou imediatamente transportada para outra era – talvez os anos 90. O espaço tem cheiro de livros antigos e café adormecido. Paredes cobertas de pôsteres desbotados de filmes de ficção científica, prateleiras abarrotadas de colecionáveis e revistas em quadrinhos empilhadas como se fizessem parte de uma torre em construção.
No centro da sala, há um sofá enorme, do tipo que afunda completamente quando você se senta, e uma poltrona de canto onde Matt parece meio perdido, tentando se acomodar. À esquerda, uma prateleira inteira dedicada a action figures de personagens que não reconheço, mas que parecem importantes. Figuras de plástico em poses heroicas, cheias de detalhes, fitando-nos de suas vitrines empoeiradas como guardiões de um tesouro oculto.
Isso parece uma cápsula do tempo, penso, enquanto tento absorver todos os detalhes ao redor. Em meio a tantos itens, meu olhar cai em duas cadeiras brancas com formato de ovo. São grandes, acolchoadas, e têm um ar futurista que destoa um pouco da decoração caótica. Com tanto espaço para se acomodar, me pergunto se tio Bobby recebe visitas em sua casa frequentemente.
Sadie sussurra, apontando para uma estante repleta de livros de metafísica e mais algumas estátuas de super-heróis:
— A minha mãe sempre dizia que a pior coisa que aconteceu com o tio Bobby foi ser o filho mais novo, que nunca foi mimado pela vovó... — Ela dá uma pausa e olha ao redor, claramente impressionada. — Mas eu acho que ele tem uma vida bem legal.
Matt solta uma risadinha discreta, antes de pular de susto quando um gato preto e branco salta em cima de uma pilha de gibis ao lado dele, derrubando alguns deles. Mas ao invés de se afastar, ele observa o gato enquanto parece ponderar consigo mesmo se é seguro tentar fazer um carinho no felino.
— Oi! — Matt exclama, movendo a mão para alcançar o gato.
O tio Bobby aparece do corredor com uma bandeja cheia de canecas e uma chaleira fumegante. Seu cabelo muito longo e seus óculos grandes, pendurados no nariz, só aumentam o ar de professor de física aposentado.
— Oh, vejo que o Ernesto já deu as boas-vindas a vocês — ele comenta com um sorriso torto, pousando a bandeja sobre a mesinha de centro.
Sadie olha confusa para o gato e depois para o tio Bobby.
— Ernesto? O mesmo gato que você tinha quando eu tinha 12 anos? — ela pergunta, perplexa.
O tio Bobby ri, um som rouco e divertido, enquanto enche as canecas com chá de casca de laranja.
— Não seja boba, Sadie. Este é o Ernesto III — ele diz, com orgulho na voz. — Resgatei ele de um beco sem saída no ano passado.
Ele faz uma pausa, o gato pula para o chão e enrosca-se nas pernas do dono com um miado satisfeito. O sorriso de Bobby, meio caridoso e meio malicioso, de alguma forma me lembra de vilões de desenhos animados, o que não ajuda a aliviar o desconforto de estar cercada por tantas coisas que não entendo.
— Bom, acomodem-se, acomodem-se! — Ele nos aponta para as duas cadeiras em formato de ovo. — Espero que gostem de chá de casca de laranja. Agora, me contem, o que traz vocês à minha humilde residência?
Ele se joga em um divã escuro à direita, enquanto Ernesto III rapidamente salta para o colo dele, ronronando como se estivesse exatamente onde deveria estar.
Eu e Matt trocamos olhares rápidos, repensando se é uma boa ideia compartilhar com mais alguém que pensamos ser viajantes do tempo. O silêncio paira por alguns segundos, até que Matt toma a dianteira.
— O que você sabe sobre viagem no tempo, tio Bobby? — Ele pergunta casualmente, mas o brilho em seus olhos denuncia a tensão.
Sadie se inclina para frente, ansiosa por mais detalhes, e acrescenta:
— Essa era sua área de estudo, não é?
Tio Bobby estreita os olhos, parecendo medir se a pergunta é séria ou apenas mais uma tentativa de fazer piada sobre sua reputação. Ele sabe como muitos o veem – o professor universitário que abandonou a academia, rotulado como o "louco" pelos seus antigos colegas. Mas, depois de alguns segundos de reflexão, ele decide não se esquivar da questão.
— Bom, ninguém sabe ao certo como a viagem no tempo funcionaria... — começa ele, erguendo uma sobrancelha. — Existem teorias, muitas delas. Portais, velocidades extremas, gravidade, animação suspensa, buracos de minhoca... — Ele faz um gesto vago, como se listasse as opções de um menu infinito. — Todo tipo de mecânica quântica.
Ele fala com uma tranquilidade desconcertante, como se estivesse recitando o alfabeto. A explicação não é técnica demais, mas é profunda o suficiente para provocar um arrepio na espinha. Eu, sempre cética – até ser jogada no futuro repentinamente –, respiro fundo e decido entrar na conversa.
— E, hipoteticamente falando, se uma pessoa for trazida para o futuro sem ter provocado ativamente? — Minhas palavras saem hesitantes, mas logo encontro confiança. — Quero dizer, sem ter querido ir parar ali... Qual seria o propósito disso? Mudar ou impedir algum acontecimento?
O tio Bobby reflete por um instante, levando um gole de seu chá antes de responder.
— Há uma teoria... — ele começa, com a voz mais baixa, quase conspiratória. — De que a história é imutável. Mesmo que alguém voltasse no tempo para tentar alterá-la, os eventos se realinhariam de modo a preservar o curso original.
— Então, está dizendo que não importa a interferência, o resultado continua o mesmo? — Matt interrompe, agora mais engajado, tentando processar o que isso significaria para nós.
Tio Bobby coloca sua xícara na mesa e olha diretamente para Matt, seu rosto sério.
— Exato. É como jogar uma pedra num rio. Você pode até mudar o lugar onde ela cai, criar algumas ondas diferentes, mas no fim, a água sempre encontra seu curso natural. Não importa o quanto você mexa na correnteza, o rio sempre segue em frente, sempre deságua no mesmo lugar. Você pode alterar o percurso, mas nunca o destino.
Acho que estou um pouquinho bêbada da dose dupla de Pomegranate Margarita, porque minha cabeça lateja tanto durante a explicação que começo a achar que nada disso é real. Nem o carpete encardido sob meus pés, nem o cheiro de ração de gato que invade minhas narinas. Muito menos a sensação da perna de Matt encostada na minha, que batuca no chão em um ritmo ansioso. Por que homens se sentam tão desleixados?
— E se... — Matt hesita um pouco antes de continuar. — E se um viajante do tempo, que não tem uma máquina ou portal, acaba vindo parar no futuro? O que ele faria para voltar ao presente, onde estava antes?
Tio Bobby se recosta no divã, acariciando Ernesto III, que ronrona tranquilamente em seu colo.
— Existe uma outra teoria. — Sua voz está mais baixa agora, quase num tom de advertência. — Se algo está errado neste futuro... algo que vocês — ele faz uma pausa, nos observando atentamente — hipoteticamente precisem reparar, talvez isso abra um portal natural de volta. Mas há um problema.
O silêncio preenche a sala, e ele continua.
— Mesmo que consigam voltar, as chances são mínimas de que se lembrem do que viveram e assim, possam fazer escolhas diferentes. Vocês seriam levados a cometer os mesmos erros, porque, no fim, o destino é imutável.
Matt parece perder o fôlego por um momento, tentando processar a ideia. A pergunta queima em minha garganta, mas Sadie se adianta.
— Então, não importa o que façamos... — Sua voz soa estranhamente pequena. — Nada pode mudar?
Tio Bobby se inclina para frente, balançando o indicador para a sobrinha.
— Talvez não seja questão de mudar o futuro, mas de entender seu papel nele. — Ele franze o cenho, desconfiado. — E seja lá qual for o motivo desse interesse em viagem no tempo... é melhor não mexerem com isso. Pode causar consequências mais graves do que imaginam.
— Mas você não acabou de dizer que a história é premeditada? Que não podemos mudar o percurso do rio? — Me vejo perguntando, mas confusa do que antes.
— Disse, sim. Mas também falei que uma pedra jogada em um rio, cria ondas em diferentes direções. Isso também quer dizer que a viagem no tempo é rondada por teorias. E não conheço ninguém que já as tenha comprovado.
❄︎ ❄︎ ❄︎
Depois de deixar Sadie, voltamos para casa em um silêncio mortífero. Apenas falamos algo quando Matt estranha eu ter ido me encontrar com Sadie sem o carro, e tenho que confessar o open hour que fizemos logo cedo. O caminho até nossa casa parece mais longo, e eu não consigo evitar pensar em tudo o que o tio Bobby disse. Assim que chegamos, Matt entra alguns minutos depois de mim, visivelmente quieto. Tento não pressioná-lo, mas seu silêncio me incomoda.
— E aí, o que achou de tudo que o tio Bobby falou? — pergunto, enquanto tiro os sapatos.
Matt hesita. Ele tenta disfarçar, mas a expressão dele é muito reveladora quando está incomodado com algo.
— Não consigo acreditar que está premeditado que sou um idiota — ele solta de repente, a frustração deixando sua voz mais grave e rouca. — Com você, com a minha família…
Suspiro. Me aproximo dele, sentando no sofá ao seu lado e despejando a bolsa na mesinha de centro.
— O tio Bobby disse que isso é só uma teoria. A verdade é que, pelo jeito, nós vamos ter que descobrir como será quando voltarmos.
— Como você pode ter tanta certeza de que vamos voltar?
Sorrio de leve, tentando manter o otimismo.
— Eu não tenho. Mas vamos testar as teorias, né? Se a gente consertar todos os problemas desse futuro... quem sabe? Talvez o portal natural se abra pra gente. — Faço uma pequena pausa antes de soltar, quase brincando: — E nem que eu tenha que desafiar todas as leis da quântica, eu não vou terminar em um futuro onde estou noiva de você.
Matt levanta uma sobrancelha e responde no mesmo tom, com um meio sorriso.
— Já te disse que esse não é o pior dos cenários. Você poderia ser um jogador de hóquei de sucesso que acabou de deixar uma Stanley Cup deslizar por entre seus dedos, por exemplo.
— Não seja tão melodramático, Matthew. Você ganhou o troféu três vezes por duas equipes diferentes. Isso já é um legado e tanto.
— Poxa, eu estava pronto para soltar mais uma frase bastante melodramática… Mas você conseguiu me quebrar.
Solto uma risada solidária, daquelas que queimam todo o caminho até o estômago. Eu entendo o sentimento de Matt de querer que o tempo seja uma coisa palpável, algo que pudéssemos quebrar com nossas próprias mãos e desfazer todas as consequências.
— Já que estamos sendo melodramáticos… Posso te perguntar como foi a conversa com Angelina?
— Foi uma daquelas conversas difíceis, sabem? — Ele passa a mão pelo cabelo, como já reparei que sempre faz quando está nervoso. — Mas ela não me odeia. Me tratou com uma naturalidade que estranhei, até entender que era o jeito dela de não piorar as coisas.
Ele está olhando para frente, evitando fazer contato visual comigo e eu apenas espero que ele continue no seu próprio tempo.
— Cada vez que escuto outras versões sobre o que aconteceu, tenho mais certeza de que eu sabia o que estava fazendo quando me afastei de Chris e dela. Eu e meu irmão entramos em uma competição de ego auto destrutivo e não medimos as consequências.
— Como assim?
Pelos próximos minutos, ele revive a conversa com Angel para me contar todos os mínimos detalhes. Ele fala sobre o estágio do relacionamento entre ela e Chris, como as coisas aconteceram no passado, como Chris se sente em relação a Matt e como Angel garantiu que tudo estava esclarecido entre eles, sem mais sentimentos confusos e palavras não ditas. Ele também diz que o irmão virá para Boston em breve e como está convencido a fazer Chris engolir o ressentimento para ouvi-lo de mente aberta.
— Sabia que ele me mandou uma mensagem quando me lesionei no início do ano? — acrescenta ele em voz baixa.
— Eu nem sabia que você tinha sofrido uma lesão. — Me ajeito no sofá, puxando as pernas para cima do estofado. — Quer dizer, naquele vídeo que me mostrou na praia você fala algo sobre isso, né?
— É, foi uma lesão na parte inferior do corpo que me tirou de uns cinco jogos… Estava vendo umas mensagens antigas no meu celular ontem e achei a dele.
Pressiono os lábios em hesitação, lembrando de que fiz o mesmo quando encontrei as mensagens entre eu e ele, e que foram elas que me levaram a ficar ainda mais paranoica com a suposta gravidez.
— E o que ele te disse?
— Que sentia muito por mim e que esperava que a recuperação fosse rápida — ele responde sombriamente. — Parece uma dessas mensagens de feliz aniversário que você manda para a pessoa que costumava ser sua melhor amiga. Imparcial, mas como se ainda se importasse, sabe?
Quando estou prestes a dizer como isso pode ser um ponto positivo para reatar a confiança entre eles, sou interrompida pelo toque do meu celular. É Aspen. Atendo rapidamente.
— Oi, Lilith. Queria saber se você e o Matt podem me levar a uma festa da minha colega em Londonderry no próximo domingo. A mamãe vai estar trabalhando, e eu realmente queria ir — ela diz tão rápido que tenho que me esforçar para entender as palavras-chaves que possam me dar algum contexto.
Dou uma olhada para Matt, que está tão próximo de mim que deve ter ouvido Aspen através da ligação. Ele abre um sorrisinho de lado, confirmando minhas suspeitas antes de sussurrar:
— Isso é quase uma hora de distância daqui.
Repito a informação para Aspen, dizendo que assim perderemos o dia inteiro nessa tal festa.
— Ah, claro... faz sentido. Não se preocupem, então — Aspen respondeu, o tom claramente desapontado.
Olho novamente para Matt como se perguntasse “e agora?”, ao que ele responde só com um balançar de ombros. Reviro os olhos e acabo cedendo, lembrando-me de ser mais razoável com a Aspen que não parece ter o melhor relacionamento do mundo comigo.
— Tudo bem, ok, nós vamos.
Aspen imediatamente muda o timbre da voz para uma mais animada.
— Muito obrigada, vai ser divertido! Ah, e a festa é num rancho, então vocês têm que ir a caráter!
Mal tenho tempo de reagir antes de ver Matt se levantar do sofá, esbarrando na minha bolsa, que cai no chão. Alguns dos pertences dentro dela se espalham, incluindo... o exame que Sadie finalmente abriu. Meu estômago congela.
Matt vê as imagens primeiro. Ele as pega e vira para mim, segurando o ultrassom enquanto ainda estou ao telefone com Aspen.
Engulo em seco, tentando manter a calma enquanto finalizo a ligação.
— Qualquer coisa, fala comigo mais tarde, ok?
Desligo o celular e encaro Matt, sentindo meu coração disparar. É como se houvesse uma tocha acesa em meu peito, o calor zumbindo em minhas veias, mais potente do que a própria bebida, que agora se desfaz do meu sangue com a mesma rapidez que bebi a taça do coquetel.
— O que é isso, Lilith? — ele pergunta, a voz quase um sussurro.
Não há jeito fácil de explicar, é verdade, mas também não estou preparada. É difícil até colocar os pensamentos na sequência dos acontecimentos agora, por onde tudo começou? Forço meus pés a me equilibrarem quando levanto, não sei como conduzir essa conversa, mas quero estar no mesmo nível que os olhos dele.
— Eu encontrei o exame no dia do seu jogo, na segunda-feira — começo, a voz tremendo levemente. — Claro que eu não podia te contar algo assim naquela noite. Você tinha a partida mais importante da temporada... — Sinto meu coração pulsar tão forte que parece que vai sair do peito. — Não tinha como...
Matt franze o cenho, um músculo no maxilar contraído. Seu tom se torna mais grave.
— Contar o quê, Lilith? — Ele já sabe a resposta, mas quer ouvir da minha boca, como se, ao ser dito em voz alta, tudo ficasse real.
Respiro fundo e continuo, recapitulando os eventos na ordem em que aconteceram, mesmo que minha cabeça ainda esteja girando. Conto sobre as mensagens antigas, o ultrassom esquecido, e como, movida por dúvidas e confusão, fui até a farmácia comprar testes de gravidez.
— Os dois deram negativos.
Ele me observa, o olhar fixo, os olhos brilhando em alerta, absorvendo tudo. Tento respirar, mas parece que o ar ao meu redor é rarefeito.
— E hoje de manhã, com o tempo livre, isso voltou à minha cabeça. — Aperto as mãos, sentindo o tremor que corre pelos meus dedos. — Eu precisava desabafar sobre, então fui até a Sadie. Ela leu o exame porque não tive coragem para abrir antes. Ela... — Minha voz falha por um momento. — Ela me explicou que a gravidez não evoluiu.
Matt fica imóvel. Sua respiração é silenciosa, mas consigo ver seus punhos se fecharem lentamente. O choque nos olhos dele é tão palpável que quase me faz recuar.
— Incompatibilidade sanguínea — digo, e dessa vez não consigo segurar o choro. As lágrimas começam a escorrer pelo meu rosto, meu corpo tremendo. — Nós temos tipos sanguíneos incompatíveis, o que fez meu corpo expelir o tecido em formação.
Matt encara o ultrassom nas suas mãos, os olhos fixos nas imagens como se fossem uma espécie de enigma impossível de resolver. A expressão dele muda, seus ombros caem levemente, e então ele passa a mão pelos cabelos, um gesto automático. Seus olhos ficam marejados. Ele parece mais vulnerável do que já o vi, mesmo na praia, mesmo depois de sua partida perdida, e não consigo evitar que mais lágrimas rolem.
Ele se vira para mim e, sem dizer uma palavra, balança a cabeça lentamente, como se estivesse tentando lidar silenciosamente com tudo. Ele dá um passo em minha direção e, pela primeira vez desde que nos conhecemos, Matt me abraça de verdade. É um abraço cheio de sentimentos, todos eles coagulados e pesados, difíceis de nomear. Sinto seus braços ao redor de mim, apertando-me contra seu peito, e toda a tensão acumulada parece desmoronar de uma só vez.
Eu me permito desabar ali, afundando meu rosto no ombro dele, abafando meu choro. As palavras mal conseguem sair da minha boca, mas eu tento.
— Por favor... diz alguma coisa.
Matt aperta um pouco mais o abraço, sua voz trêmula quando finalmente responde.
— Eu... eu não sei o que dizer, Lilith. — Ele faz uma pausa, tentando encontrar as palavras certas. — Eu nunca pensei nisso. Nunca pensei se queria ou não ter filhos até esse momento. — A mão dele acaricia minhas costas de leve, numa tentativa de me acalmar, mesmo que ele esteja agitado. — Mas... não é sua culpa. Nada disso.
Levanto a cabeça devagar e o olho, as lágrimas ainda embaçando minha visão. Ele está com os olhos cheios d'água, a pele ruborizada de emoção, e é difícil para mim manter a compostura ao vê-lo tão despido de qualquer armadura emocional.
— Talvez tenha sido coisa do destino — ele diz, a voz soando um pouco distante, como se estivesse tentando racionalizar. — Quero dizer, olha o que a gente está enfrentando agora... tentando entender uma viagem no tempo, um futuro maluco... Imagina se a gente ainda tivesse que lidar com uma gravidez.
Eu não digo nada, mas internamente concordo. O destino, o tempo, o caos... tudo parece tão fora de controle. E, mesmo assim, uma parte de mim não consegue deixar de imaginar como seria carregar aquele bebê. Algo que nunca terei a chance de saber, não agora.
Então me dou conta de que eu e Matt não temos um relacionamento real. Nada disso faz sentido no nosso contexto. Talvez fosse ainda mais complicado do que já é.
Ele olha para mim, seu olhar mais suave agora, mais presente.
— Como você está se sentindo? — ele pergunta, a voz mais gentil. — Não queria que você tivesse passado por isso sozinha.
Eu encaro os olhos sensíveis dele, o nó em minha garganta ficando cada vez mais apertado. Tento engolir as demais lágrimas e, finalmente, respondo.
— Não sei, Matt... Acho que sinto o mesmo que você. — Minha voz falha, e passo a mão no rosto, limpando as lágrimas que ainda escorrem. — Falta de palavras. Um sentimento... opressor. É como se tudo estivesse tão vazio, e eu nem soubesse por onde começar a explicar.
Ele me olha com tanta compreensão, tanto cuidado, que faz parecer fácil depositar todas as expectativas do mundo nele. Ele não vai me machucar. Ele não acha que a culpa é minha.
— E como você quer lidar com isso?
— Apenas vivendo um dia de cada vez, eu acho — digo com a voz rouca, colocando apenas um pouco de espaço entre nós. Estou abraçada a mim mesma, mas os braços de Matt ainda estão ao meu redor. — Como acha que estávamos lidando com isso antes?
— Não sei como, mas acho que as coisas melhoraram entre nós. — As palavras lentas dele neutralizam a tensão enquanto ele me olha nos olhos. Ele não pensa que a culpa é minha e tento mostrar toda a minha gratidão quando pulo para abraçá-lo. Os braços em seu pescoço enquanto meu rosto encontra lugar em seu peito, segurando-o tão firme quanto ele me segurou alguns instantes atrás. Não tenho que ficar na ponta dos pés para alcançá-lo, ainda assim, meus calcanhares saem do chão. — O que é tudo isso?
— Você não acha que a culpa é minha.
— E como poderia ser? Tenho certeza que você não sabia que tinha perdido um bebê até encontrar esse exame, e que também não sabia sobre a incompatibilidade.
— Eu poderia ter te contado antes.
Ele dá uma leve bufada.
— Isso não importa agora, Lily. Nós passamos por muita coisa nos últimos dias, e você tem todo o direito de ainda está processando isso.
Ele me solta primeiro e não sei o que fazer comigo mesma, então tomo distância e olho para minha imagem no espelho quadrangular preso na parede. Abaixo dele, há uma mesa de madeira escura e brilhante, com pés trabalhados e bordas detalhadas, como algo que pertenceria a uma casa de campo antiga. Nela, repousa uma bandeja de prata com diversas garrafas e copos cuidadosamente arranjados. Quatro deles são os típicos copos baixos de whisky, perfeitamente alinhados como se estivessem esperando por um momento especial.
Ainda fungando, com as mãos inquietas, faço um movimento em direção à bandeja.
— Se tem algo pelo qual eu não me sinto mal em ser uma adulta de verdade — minha voz sai entrecortada — é poder ter bebido a margarita que Sadie fez.
Quando adolescente, eu até experimentei uma coisa ou outra, mas nunca tive muito tempo para quebrar as regras de beber antes da idade permitida. Agora que posso legalmente fazer isso, parece a oportunidade perfeita para descobrir se prefiro os coqueteis doces ou as bebidas quentes.
Matt segue o meu olhar até a pequena mesa de bebidas e, por um instante, um sorriso tênue e cúmplice aparece no canto de sua boca.
— Não parece uma ideia ruim — ele diz, se aproximando da mesa e olhando melhor as variedades alcoólicas. — Acho que, depois de tudo o que passamos nos últimos dias, merecemos fazer pelo menos uma coisa normal de adultos.
Ele pega uma das garrafas de whisky, e me olha, como se estivesse pedindo permissão silenciosa para compartilhar aquele momento. Concordo com a cabeça, incapaz de conter um pequeno sorriso que surge no canto dos meus lábios.
— Vamos beber à normalidade — ele diz, enquanto despeja o líquido âmbar nos copos.
— E à ser adultos, acho — completo com um riso baixo, pegando um dos copos, sentindo o calor da bebida contra minha mão.
Erguemos nossos copos em um brinde silencioso, e decido me permitir acreditar que podemos ser mais simples assim. Um dia de cada vez.
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