𝟮𝟮. he's just a scared boy
𝗠𝗔𝗬 𝟮𝟯, 𝟮𝟬𝟯𝟰
ᥫ᭡𝐋𝐈𝐋𝐈𝐓𝐇...
Estou feliz comigo mesma ao sair da sala de aula. Ver o brilho nos olhos dos alunos e o sussurro de empolgação deles enquanto discutiam as possibilidades para o projeto final é o tipo de sensação que faz tudo valer a pena.
Naquele caderninho que encontrei em meu armário, vi que eu estava rascunhado várias ideias sobre um possível projeto que substituísse as provas tradicionais – e destaquei com caneta vermelha a versão final do meu projeto. Eu realmente nunca achei justo medir o conhecimento das pessoas com questões de múltipla escolha, isso sempre me pareceu raso e impessoal. Mas parece que eu tive uma ideia e convenci o diretor Hobbes a deixar que eu os livrasse da prova final, desde que se dedicassem a um projeto equivalente a estudar para todas as provas finais juntas.
A proposta que apresentei hoje parece ter acertado em cheio, como se eu de fato conhecesse os meus alunos e qual metodologia funcionasse com eles. Pedi que se imaginassem daqui a dez anos, narrando as escolhas do dia a dia e como isso afetaria ou não o futuro deles e das pessoas ao seu redor. Eles precisavam detalhar até as mínimas decisões, desde qual café escolheriam beber pela manhã até se trocariam uma corrida no parque por mais uma hora no videogame. Cada pequena escolha deveria definir o cenário de onde estariam em uma década.
O desafio deixou muitos alunos inquietos, mas de um jeito bom. Eu os vi trocando olhares animados, rabiscando ideias nas bordas dos cadernos enquanto ainda absorviam a proposta. Estavam ávidos para imaginar as próprias vidas, visualizar quem poderiam se tornar, como se eu tivesse acabado de entregar um mapa do futuro para cada um.
E eu não pude deixar de perceber como isso tudo é irônico. O projeto que criei é exatamente o que eu mesma tenho enfrentado agora: um exercício constante de ver como cada escolha, cada pequeno desvio, me trouxe até este ponto. É um reflexo direto do que tenho vivido, seja nesse deslocamento temporal ou da vida que fui tirada há dez anos atrás. Porque, sinceramente, se eu algum dia voltar a ter 17 anos, vou fazer até as mínimas escolhas diferentes?
Enquanto caminho em direção à sala dos professores, pensando no que pedir para o almoço, acabo esbarrando com Nate no corredor. Ele é do grupo de amigos de Matt, e até onde me lembro, estava um ano abaixo de mim na escola, sempre me olhando como se eu fosse a Cindy Crawford no auge da carreira. Agora, continua um pouco mais baixo do que eu, mas com porte de adulto e um apito balançando no peito por cima do casaco de nylon com o símbolo do time de lacrosse de Somerville.
— Ei, Lily! — ele me chama com um sorriso largo, inclinando a cabeça para o lado. — Tá afim de almoçar com a gente hoje? Eu e Aisha vamos ao restaurante de sempre.
A pergunta me pega de surpresa. Assim como o visual de Nate, e o fato de eu não saber quem é Aisha. Mas, pelo círculo dourado no dedo anelar de sua mão esquerda, estou supondo que ele esteja falando da esposa.
— Ah, eu... — Eu me embolo, tentando pensar em uma desculpa qualquer, mas ele apenas ergue as mãos e balança a cabeça, compreensivo.
— Não, não, desculpa. Imagino que você esteja planejando almoçar com o Matt. — Nate me estuda por um momento e depois inclina o corpo para frente, como se compartilhasse um segredo. — Como ele tá depois do jogo de ontem?
— Sentindo tudo ao mesmo tempo, sabe como é...
— Poxa, eu imagino. Nós conversamos por mensagem no domingo e eu senti ele meio estranho, perguntando como estava todo mundo, com quem ainda mantém contato... Fiquei com a sensação de que tinha algo acontecendo e até cheguei a perguntar. Mas, apesar do resultado, ele parecia bem ontem no jogo.
Luto para pensar numa resposta rápida.
— Ah, isso... é que a gente passou o final de semana mexendo em fotos antigas do tempo de escola, falando sobre aquela época. Deve ser só um pouco de nostalgia da parte dele.
Nate assente, agora oferecendo um sorriso reconfortante, como um amigo de longa data.
— Entendi. De qualquer forma, espero que ele esteja animado para reunir todo mundo e ter um momento nostálgico desses.
Fico com a impressão de que ele está falando sobre algo que está prestes a acontecer, como se tivéssemos marcado uma reunião para essa noite. Ou talvez Matt tenha convidado todo mundo para minha festa de aniversário surpresa? Essa também é uma das coisas que não consigo tirar da cabeça.
— Nós não... fazemos isso com frequência, né?
— Bom, com metade do grupo morando em Los Angeles, as viagens de trabalho de Matt e Hunter, você e Sadie sendo duas workaholic como sempre... não sobra muito espaço na agenda para conseguirmos fazer isso mais vezes do que gostaríamos. É a correria da vida, mas fico muito feliz quando conseguimos.
— É, eu também fico feliz — respondo, mordendo o lábio enquanto tento me lembrar de alguma interação adulta que já presenciei. O que devo perguntar agora, como vai a família ou em que mercado tem comprado leite mais barato?
Acho que Nate percebe a aflição no meu rosto, porque seu sorriso é discreto quando diz:
— Então eu vou indo. Tenha um bom almoço, Lily. — Ele rapidamente beija a lateral da minha testa e dá um aperto na parte superior do meu braço. — E ofereça minhas condolências ao Matt. Qualquer coisa, vocês sabem onde me encontrar.
Com uma piscadinha, ele parte na direção contrária a minha, cumprimentando alguns alunos com joinhas e "soquinhos" pelo caminho. Posso dizer que ele é o treinador legal, do tipo que todos os garotos procuram como referência e as garotas imploram para que seja professor de educação física delas no próximo ano.
Nate é um adulto que tem 'condolências' em seu vocabulário e me trata como uma espécie de... irmã? Sei que é assim que posso classificar nossa relação porque, apesar de desconcertada por encontrar com alguém que tem 16 anos de onde vim, eu me senti segura com ele.
Sigo para a sala dos professores e a encontro praticamente vazia, apenas dois ou três professores espalhados pelas mesas, cada um concentrado em seu próprio mundo. Eu me acomodo em um canto perto da janela e abro o cardápio do aplicativo, decidida a pedir algo rápido. Pizza, salada ceaser, tiras de frango empanado... Não importa o que eu escolha, há uma pontada de culpa quando percebo o quanto tenho gastado nesses almoços improvisados – embora dinheiro não seja mais o problema, sinto falta de cozinhar algumas das minhas refeições.
Quando decido por uma salada com frango e um suco natural, não consigo ignorar o impulso de pedir a sobremesa mais incrementada que encontro, dizendo a mim mesma que mereço um doce terapêutico depois da montanha russa que tem sido os últimos dias. Logo após confirmar o pedido, procuro o contato de Matt na lista telefônica.
Ligo. E o som da caixa postal preenche o vazio alguns segundos depois. Aperto o botão de desligar, hesitante. Talvez ele esteja ocupado, penso, ou me evitando. Toco no nome dele de novo e levo o celular ao ouvido, respirando devagar, como se pudesse controlar a reação do outro lado da linha.
Nada.
Ele não atende.
Fecho os olhos por um momento, a mão segurando o aparelho com mais força do que deveria. Um lado meu quer continuar tentando, quer ouvir sua voz dizendo que está tudo bem, mesmo que a ausência de resposta seja exatamente o que eu temia. O outro, mais lógico, me alerta que não posso forçá-lo a falar. Ele vai me procurar quando estiver pronto. Ou... talvez não.
E então eu terei que lidar com isso. Com essa sensação estranha de preocupação, misturada com o receio de que o problema pode ser maior do que ele queira admitir. Ou menor. Algo tão banal que nem vale a minha inquietação, mas que, por algum motivo, me deixa à beira da impaciência.
Esse é o problema de absorver demais o mundo, de me importar demais com as pessoas logo que me deixo ser vulnerável.
Encosto o celular na mesa e cruzo os braços, tentando me forçar a pensar em qualquer outra coisa.
Suspiro, pegando o celular de novo, desta vez apenas para digitar uma mensagem rápida. Algo simples, sem peso: "Tudo bem por aí?"
E deixo o telefone de lado, como se ignorá-lo fosse suficiente para fazer o nó no meu peito desaparecer.
❄︎ ❄︎ ❄︎
Mais cedo, uma notificação apareceu no meu celular dizendo que a porta da frente da casa tinha sido acessada. Eu quase tive um derrame no meio da aula. Nem sabia que tenho um sensor vinculado ao celular para avisar sobre movimentações suspeitas na casa, quando, teoricamente, não deveria ter ninguém lá. Mas, poucos minutos depois, recebi uma mensagem de Marta – que, ao rolar a conversa para os históricos mais antigos, descobri ser nossa empregada doméstica – perguntando quais cômodos eu gostaria que fossem limpos primeiro.
Chegando em casa, a primeira coisa que noto é o cheiro de produto de limpeza e um objeto grande e pesado no meio do caminho, quase me fazendo tropeçar. Levo um segundo para identificá-lo: um aspirador de pó, desses bem potentes. Talvez Marta tenha se esquecido de guardar, ou nem tenha terminado o serviço, já que a casa é tão grande que poderíamos passar um dia inteiro sem nos esbarrar. Chamo por ela, mas não obtenho resposta. Deixo minha bolsa na cadeira reclinável da antessala e me volto para o aspirador.
Empurro-o em direção ao corredor e sigo para onde imagino ser o quartinho da bagunça – uma pequena porta de celeiro no quintal arejado. Mas, quando a abro, não encontro o espaço apertado e caótico que esperava.
Paro na entrada, ofegante por ter empurrado o trambolho que é o aspirador. Fico me perguntando se Marta usa esse aparelho todas as quatro vezes por semana que vem aqui.
O ambiente à minha frente é cuidadosamente organizado. As prateleiras estão alinhadas com precisão, cada objeto colocado com um precisão quase reverente. E, logo na parede oposta à porta, está ela: a prancha quebrada. A minha prancha.
Dou um passo à frente, quase hipnotizada.
As cores estão um pouco desbotadas, o brilho desgastado pelo tempo. A rachadura ainda corre pela parte de baixo, bem onde o tubarão rasgou o material como se fosse papel naquele dia em que meu avô e eu fomos arrastados pela correnteza. Meu peito aperta enquanto toco a superfície áspera e marcada, deslizando suavemente os dedos pela base da prancha como se pudesse remendar os pedaços despedaçados.
Quando cheguei a Boston, a primeira coisa que fiz enquanto arrumava meu quarto foi pendurá-la acima da cabeceira da minha cama, como um item de decoração. Ou um lembrete da minha insistência em querer algo que custou a vida do meu avô.
Fazia tanto tempo que eu não pensava nele. No velho que me ensinou a amar o mar, que me ensinou a respeitar suas ondas e a correr atrás delas como se fossem o último respiro de liberdade. Desde que nos mudamos de Barbados, nunca mais tive a chance de surfar. Nem de sentir aquele tipo de euforia que só o mar pode oferecer – a promessa de ser engolida pelo azul profundo e, ao mesmo tempo, de ser salva por ele.
Limpo uma lágrima antes que ela escorra, mas a emoção persiste como um nó na garganta. Surfar nunca foi só um hobby para mim. Era o que me definia. O que me conectava ao meu avô e, por um tempo, o que me mantinha inteira. Desde que cheguei a Massachusetts, não só me afastei do surfe, como nunca mais me aproximei de qualquer praia daqui. A vida ficou mais complicada. Ou talvez eu só tenha deixado essa parte de mim adormecer.
Outra coisa chama minha atenção. No fundo do quarto, escondidas entre equipamentos de mergulho e sticks de hóquei desgastados, três pranchas estão arrumadas lado a lado, todas em perfeitas condições. A menor delas, é decorada com um cavalo-marinho azul em meio ao fundo branco. Sorrio, sentindo um calor familiar no peito ao admirar a shortboard, um modelo de pranchas de surf indicado para pessoas com mais experiência no esporte, que eu havia começado a usar há pouco menos de um ano antes de me mudar. O símbolo está tão impecável que parece brilhar sob a luz amarelada da lâmpada.
Por um instante, me vejo de volta à praia, com os pés afundando na areia molhada, a água gelada lambendo os tornozelos enquanto eu ajusto o corpo na prancha, pronta para remar em direção ao horizonte. Sinto a necessidade de experimentar isso de novo, de me reencontrar com quem eu era antes de tudo.
Me viro e vejo as horas no relógio pendurado acima da porta. Ainda há tempo antes que escureça.
Uma pontada de adrenalina atravessa minha espinha, e antes que possa hesitar, escolho a prancha que parece perfeita – não a menor, mas uma intermediária, de linhas limpas e leves. Subo as escadas correndo, determinada a aproveitar essa oportunidade. Não sei exatamente se tenho uma roupa apropriada para o frio das águas daqui, mas isso não importa agora. Eu só preciso sentir o sal na pele, as ondas debaixo dos pés, o vento no rosto.
Ao abrir o armário no quarto, encontro exatamente o que esperava. Uma blusa térmica preta e um biquíni que me parece incrivelmente confortável. Minha versão adulta, ao menos, manteve algum traço de quem eu sou. Talvez ela também se apegue a esse passado. Talvez ela ainda busque o mar quando as coisas ficam difíceis.
Troco de roupa o mais rápido que consigo e, ao prender o cabelo em um rabo de cavalo apertado, algo dentro de mim se acalma. De repente, a ideia de cair no mar antes que o sol se ponha é tudo que eu preciso para me sentir viva outra vez.
Prancha em mãos, desço as escadas com passos rápidos, como se estivesse correndo para encontrar uma velha amiga. Porque, de certa forma, estou.
Nexa me leva até Nahant Beach, onde há até uma escola de surfe para iniciantes. A princípio, fiquei frustrada pela falta das ondas enormes e desafiadoras que são tão comuns em Bathsheba, um dos melhores pontos de surfe do Caribe, ideal para surfistas de todos os níveis. Mas não é de todo ruim, e consigo pegar algumas ondas antes que a água se torne fria demais à medida que a tarde avança.
Quando meus pés tocam a areia, solto o cabelo molhado e sinto um arrepio agradável correr pela espinha. Há uma leveza em mim, uma sensação renovada de corpo e alma, como se cada gota de água salgada tivesse lavado parte do peso que tenho nos ombros. Por um momento, apenas fico ali, admirando o horizonte alaranjado pelo pôr do sol, deixando o cheiro do mar e o som das ondas envolverem meus sentidos.
Mas, conforme varro a praia com o olhar, algo me faz congelar. Não muito longe, a alguns metros de onde as ondas se desfazem na areia, há uma figura caída. Meu coração dispara com um pressentimento ruim.
A praia está praticamente deserta, e a ideia de que alguém poderia estar ali machucado – ou pior – me faz estremecer. Se realmente algo aconteceu, quanto tempo levaria até que alguém percebesse? Sinto o medo pulsar em mim enquanto caminho hesitante na direção do corpo estirado.
Cada passo parece mais pesado que o anterior, mas, quando me aproximo o suficiente, meu pânico se transforma em pura incredulidade.
É Matt.
Ele está deitado de costas, parcialmente coberto de areia, os cabelos desgrenhados e as roupas – ou melhor, o pijama – completamente fora de lugar. Finco a prancha na areia e me agacho ao seu lado.
— O que você está fazendo aqui? — pergunta ele, ofegante como se tivesse acabado de sair do mar.
— O que você está fazendo aqui, se empanando na areia de pijama? — retruco, gesticulando com o queixo em direção às suas roupas.
Ele pisca para mim, ainda desorientado, e então solta um suspiro cansado, a cabeça tombando de volta para a areia.
— Minha mãe pediu para você vir atrás de mim?
— Sua mãe sabe que você veio para essa exata praia?
Levanto uma das sobrancelhas, tenho uma ideia de qual será sua resposta. Ele não parecia estar em condições de avisar ninguém para onde iria quando saiu da casa dos pais, e muito menos sabia para onde iria quando entrou dentro do carro.
— Não — ele responde, finalmente.
— Então pronto.
De repente, toda a sensação de leveza que eu tinha ao sair do mar evapora, substituída por uma inquietação difícil de nomear. O fato de tê-lo encontrado aqui, assim, me faz perceber o quanto a distância entre nós é maior do que eu imaginava. Talvez ele só precise de mais espaço...
— Você quer que eu vá embora? — A preocupação escalando como fogo na minha garganta.
Ele fecha os olhos, e estou pronta para me colocar de pé e ir embora quando seus dedos se fecham no meu pulso. A camisa térmica não me permite ter o contato direto com a palma de sua mão, mas consigo sentir o choque que nossos corpos transferem um para o outro.
— Não vá. Por favor — ele sussurra tão baixo que suas palavras se camuflam no vento.
Balanço a cabeça, colocando a prancha deitada na areia antes de sentar entre ela e Matt. Evito olhar para ele porque o pensamento absurdo de que ele parece mais um menino assustado do que o homem com quem deveria estar prestes a me casar me atinge em cheio. Ele é um menino assustado.
— Preciso te contar uma coisa — dizemos ao mesmo tempo, logo antes de nenhum dos dois ter coragem de dizer mais nada por uns bons minutos.
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