𝟭𝟭. new reality
𝗠𝗔𝗬 𝟭𝟵, 𝟮𝟬𝟯𝟰
ᥫ᭡𝐋𝐈𝐋𝐈𝐓𝐇...
Me pego de frente para o espelho do closet, que mais parece uma boutique sofisticada do que um espaço pessoal. Roupas penduradas em cabides de madeira, organizadas por cor e categoria, me cercam. É estranho como tudo aqui parece ser uma versão mais cara e estilosa do que eu escolheria para mim mesma. Um vestido longo de tecido fluido com estampa floral, blusas leves e saias de cintura alta, botas de couro com um ar vintage – todas peças que, estranhamente, parecem ter saído diretamente do meu guarda-roupa, mas com um toque mais refinado e profissional.
Eu deveria me sentir perdida, desconectada desse lugar, mas a verdade é que essas roupas me chamam. Como se, de algum modo, eu tivesse escolhido cada peça com cuidado, como faço no meu guarda-roupa, na minha casa, no meu estilo de sempre.
Minha casa. Prendo a respiração quando lembro-me de Aspen. As imagens da bebê passam na minha cabeça em 360 enquanto me condeno por estar gostando das roupas de uma desconhecida e não ter parado para pensar um só segundo na minha irmã.
Visto quaisquer peças que me cubram o bastante, saio do closet e me aproximo da janela, hesitando antes de olhar para fora.
Quando olho para os carros estacionados na rua, percebo que não faço ideia de qual é o meu. Se é que eu tenho um carro. São veículos modernos, muitos deles elétricos, com designs que parecem ter saído de um filme de ficção científica. Eu não sei nem como abrir a porta de um desses carros, quanto mais dirigir um. O pensamento de que estou a pelo menos 20 minutos de carro da minha verdadeira casa me deixa tonta. Eu tenho que ir embora daqui, mas como?
Preciso de ar, de espaço – qualquer coisa para aliviar essa sensação sufocante. Meus pés se movem quase por conta própria, me levando para fora do quarto, passando pelo escritório que mais parece uma biblioteca particular, e descendo as escadas. Cada passo ecoa na minha mente, a urgência de fugir aumentando a cada segundo.
Ao chegar ao final da primeira escada – e recuperando o fôlego porque, quem é que tem duas escadas em espiral dentro de uma única casa? –, vejo Matt parado diante de uma foto emoldurada na parede. Ele se vira quando percebe minha presença, seus olhos carregando a mesma confusão que eu sinto.
Continuo descendo em direção à porta da saída, agora ouvindo os passos dele atrás de mim.
— Aonde você está indo? — ele grita, a voz tensa e carregada de confusão.
— Pra casa! — respondo, sem hesitar, passando correndo pela porta e ignorando o fato de que eu mesma não faço ideia de como chegar nela.
Saio de casa e sou atingida por uma sensação de estranheza ainda maior. É como estar em um lugar completamente desconhecido, apesar de ter certeza que ainda estou em Boston. As construções ao redor têm um ar novo e imponente, os prédios de tijolos vermelhos contrastam com fachadas modernas, de vidro e aço. As lojas têm letreiros elegantes, minimalistas, e as vitrines exibem produtos que nunca vi antes, como se a tecnologia tivesse dado um salto que eu perdi.
As pessoas passam por mim, algumas vestindo roupas que remetem à moda dos anos 2010, mas com um toque mais sofisticado, quase futurista. A mistura familiar e desconhecida faz meu estômago revirar, como se eu estivesse numa realidade paralela.
Vejo um bicicletário logo adiante, com bicicletas motorizadas estacionadas em fila. Elas parecem futuristas, com design aerodinâmico e painéis de controle digitais no guidão. Aproximo-me, tentando entender como funciona. Um pequeno painel de LED exibe instruções, mas não tenho tempo de ler. Apenas puxo uma das bicicletas, tentando soltá-la da base. Nada acontece. Puxo novamente, mais forte, mas a bicicleta não se move.
Olho ao redor, procurando algum sinal de como liberar o veículo, mas estou sem dinheiro, sem nenhum recurso, e claramente cometeria um crime se conseguisse tirá-lo. Mas, para ser honesta, não estou preocupada com isso agora. Tudo o que eu quero é fugir.
— Com licença, você está bem? — uma voz feminina me interrompe. Viro-me e vejo uma mulher na casa dos quarenta anos, com um sorriso gentil, mas preocupado. Ela também me parece familiar.
— Eu... eu só estou tentando... — começo a dizer, sem saber como terminar a frase.
— Senhorita Nadin? — ela pergunta, e meus olhos se arregalaram. — Você está tentando pegar uma dessas bicicletas? Você não precisa disso, ainda mais agora. — Ela solta uma risadinha, como se fosse um absurdo pensar em mim andando nessas bicicletas. — Sabe a Cassie? Minha filha? Queria te perguntar uma coisinha que não vai parecer muito adequada para uma conversa entre mãe e professora, mas já que não estamos na escola...
Professora? Que história é essa de professora? Não tenho o menor perfil para ser como Erin Gruwell em Escritores da Liberdade ou até mesmo como a srta. Norbury de Meninas Malvadas.
É então que olhando para os olhos castanhos escuros e o ruivo artificial bem cuidado da mulher à minha frente, que o nome dela bate como um sino na minha mente. Ela é Eve Benward, moradora da minha vizinhança e mãe da adorável Cassie Benward, uma das crianças do meu bairro, que eu levo e busco na escola para conseguir uma renda extra.
— Cassie...? — minha voz sai fraca, mas a mulher continua, sem notar meu choque.
— Ela tem andado com esses rapazes para cima e para baixo, e acho que estou certa em me preocupar desde que o número de adolescentes grávidas em Somerville High aumentou absurdos nos últimos anos! Não que seja culpa de vocês, é claro, sei que educação sexual nem é sua área e você ainda assim faz mais por essas crianças do que a conselheira estudantil... Enfim, só queria que você pudesse me dizer se ela está com um comportamento diferente na escola... ou quem sabe, você pode conversar com ela, já que Cassie sempre me evita quando quero tratar desse assunto!
Fico impressionada por ela não ter perdido o fôlego em nenhum momento do monólogo. E fico ainda mais impressionada por Eve estar querendo falar da vida sexual da filha dela comigo. E que papo é esse de que sou a professora de Cassie? Quantos anos essa menina tem?
— Ah... bem, quantos anos Cassie tem mesmo?
Eu tento fazer cara de paisagem, como se fosse comum que professores não guardem informações pessoais de todos os seus alunos.
— Oh, ela fez dezessete anos no mês passado.
Ela sorri docemente, exatamente como a Eve que me entrega seu orgulho e felicidade em forma de criança para levar a escola, me fazendo garantir que vou devolvê-la intacta. Sempre a achei uma boa mãe, embora seu emprego como diarista a deixe longe por mais tempo do que gostaria da única filha.
Mas nem fudendo que Cassie tem dezessete anos, porque isso significa que eu tenho vinte e sete anos. VINTE E SETE!
Como é possível que eu tenha perdido uma década inteira da minha vida? Meu estômago revira, e sinto uma onda de pânico subir pelo meu corpo. Preciso de respostas, mas não posso simplesmente perguntar que ano é sem parecer completamente maluca.
Engulo em seco, tentando manter a compostura, mas sei que meu rosto deve estar denunciando a confusão interna. Olho para Eve e tento pensar em uma maneira de descobrir em que dia, em que ano, nós estamos sem levantar suspeitas.
— Sra. Benward... — começo, a voz trêmula. — Você disse que Cassie fez dezessete anos no mês passado, certo?
— Isso mesmo, em abril. — Ela confirma com um sorriso caloroso.
— Eu... acho que estou um pouco confusa com as datas. — Digo, tentando soar casual. — Sabe como é... uma noite ruim de sono, e agora estou meio desorientada. Que dia é hoje mesmo?
Eve franze a testa por um segundo, obviamente surpresa pela pergunta, mas depois seus olhos suavizam, e ela me olha com uma pitada de preocupação.
— É 19 de maio, querida. 19 de maio de 2034. — Ela responde, seu tom gentil, como se estivesse tentando me acalmar.
Não. Isso é absolutamente impossível. Hoje é dia 19, mas é de janeiro. E estamos em 2024, não em 2034. Falta uma semana para o aniversário de Aspen, não para o meu aniversário, que é no dia 28 de maio.
Minha visão fica turva por um momento, e sinto minhas pernas enfraquecerem. Preciso me agarrar a alguma coisa para não desabar ali mesmo, mas consigo forçar um sorriso.
— Claro, claro... 19 de maio... de 2034. — Repito mecanicamente, tentando me acostumar com a ideia. — Me desculpa, Eve. Foi só uma noite ruim. Eu estou bem, de verdade.
Eve me encara por mais um segundo, claramente preocupada, mas então assente, aceitando minha explicação.
— Certo. Mas se precisar de alguma coisa, me avise, está bem? Você parece um pouco cansada. Talvez seja melhor descansar um pouco antes de seguir seu dia.
— Sim, sim, preciso de uma ajudinha agora mesmo. — Olho para o bicicletário e em seguida, de volta para ela. — Como é que eu pego uma dessas bicicletas mesmo? Saí com tanta pressa de casa que esqueci documentos, dinheiro, cartões...
Solto uma risadinha, como se fosse a pessoa mais desatenta do mundo e percebo, com muita clareza, que Eve está achando mesmo que tem algo de muito errado acontecendo comigo. E ela está absolutamente certa, porque eu não sou daqui!
— Ahn... bem, essas bicicletas são disponibilizadas gratuitamente pelo governo para pessoas com renda abaixo de cinco mil dólares mensais, querida. Se estiver nessa categoria, você só precisa escanear o seu ID aqui — ela aponta para o painel de controle, onde há um sensor de leitura.
E como professora, eu não estou nessa categoria? penso, mesmo que não faça ideia de quanto recebe mensalmente um professor do ensino médio.
— Certo... — murmuro, tentando assimilar a informação.
— Achei que, morando deste lado da cidade e ainda mais estando prestes a se casar com Matt, você não...
Eve se interrompe, me olhando envergonhada e eu constato que, na hierarquia socioeconômica em que ocupo nesta realidade, com certeza ela não imagina que eu realmente precisaria usar bicicletas gratuitas do governo.
Não me concentro tanto nessa parte, mas no fundo da minha mente, esse "ainda mais estando prestes a se casar com Matt" se destacou como um outdoor em letras neon.
— É, eu só... só pensei em dar uma volta no parque e queria usar uma dessas. Mas, tudo bem. Obrigada mesmo assim.
— Vem cá, vou liberar uma das bicicletas para você. Eu consigo pegar duas bicicletas por dia mesmo — ela diz, escaneando o ID dela no painel de controle de uma das bicicletas. — Aqui está. Prontinho.
Pego a bicicleta motorizada e monto nela, observando o dispositivo tecnológico no espaço onde os guidões se encontram.
— Eu não sei como te agradecer. Sra. Benward. Muito obrigada mesmo, você está sendo minha heroína hoje! E pode deixar que tentarei conversar com Cassie sobre... — Fico desconcertada para falar "como anda a vida sexual dela" e apenas abro um sorriso. — Enfim, vou falar com ela. Até mais!
Disparo dali, indo o mais rápido que a velocidade máxima de 60 km/h me permite alcançar.
Chego em Somerville com a minha mente ainda girando com a confusão do dia. O bairro parece bem mais silencioso do que lembro. As casas são as mesmas, mas o ambiente tem uma aura de modernidade que eu não reconheço.
Ando pelas ruas reduzindo a velocidade, até a casa que era minha até ontem à noite, sentindo a ansiedade crescer a cada passo. Finalmente chego à porta, e dando uma última olhada ao redor, onde vejo que jardim agora está bem cuidado e a minivan que antes eu dirigia, parece ter sido substituída por um sedan sofisticado, eu toco a campainha .
A porta logo se abre e, ao ver minha mãe, uma onda de emoções me atinge como uma maré incontrolável.
Celeste está de pé na porta, usando um vestido casual que realça sua beleza natural. Seu cabelo está preso em uma meia lua com uma pregadeira de borboleta, e ela parece saudável e radiante mesmo sem qualquer maquiagem no rosto, muito diferente do estado em que a encontro quando ela decide dar o ar da graça em casa. É uma visão tão reconfortante e que eu não consigo me conter.
Sem pensar, eu a envolvo em um abraço apertado, lágrimas começando a escorregar pelo meu rosto. O alívio de vê-la tão bem é esmagador, e eu choro como se o simples ato de vê-la tivesse o poder de consertar tudo o que está errado no meu mundo.
Celeste fica momentaneamente surpresa, mas logo devolve o abraço com um leve aperto. Ela se afasta um pouco para me olhar, com uma expressão de preocupação misturada com confusão.
— Lily? Está tudo bem? — Ela pergunta, os olhos cheios de uma dúvida gentil. — Você já veio buscar a Aspen para o final de semana?
Sua voz é tranquila e carinhosa, mas a pergunta me faz lembrar que, apesar do que vejo, a realidade aqui é muito mais complexa do que eu consigo entender. Tento recompor meu semblante e limpar as lágrimas, ainda sem conseguir controlar totalmente o turbilhão emocional dentro de mim.
— Ah, não, não...Quer dizer, ela está aqui? — eu murmuro, tentando me recompor. — Eu só... só precisava ver você.
Ela me observa com um olhar mais preocupado agora, esperando por uma explicação que eu ainda não tenho certeza se posso oferecer.
— Precisava... me ver? — Algo me diz, pela expressão da minha mãe, que nosso relacionamento ainda é um borrão de como deveríamos nos comportar como mãe e filha. — O que está acontecendo?
Antes que eu possa dizer alguma coisa, Aspen – ou uma versão de treze anos dela – surge no corredor, e meus olhos voltam a salpicar de lágrimas. Antes que ela perceba minha presença, eu corro até ela e a envolvo em um abraço apertado. Ela está distraída com o celular nas mãos e leva um segundo para registrar o que está acontecendo. Quando um minuto inteiro se passa sem que a garota retribua o abraço, eu me afasto, sentindo-me confusa e envergonhada pela rejeição perceptível.
Aspen finalmente ergue os olhos do celular e me encara com uma expressão confusa.
— O que você está fazendo aqui? — ela pergunta, o tom levemente desconfiado. — Não é pra eu ir pra sua casa só depois da escola?
As palavras dela me atingem como um balde de água fria, e eu sinto um nó se formar na garganta.
— Como assim? — pergunto, tentando manter a calma enquanto minha mente corre para entender o que está acontecendo.
Aspen solta um suspiro impaciente, com aquele ar entediado que parece dominar todas as garotas de treze anos.
— Como assim, o quê? Não aja como se não tivesse um calendário bem explicativo dos dias que fico com você e dos dias que fico com minha mãe, que você não me deixa esquecer — responde ela, o tom levemente irritado, como se eu estivesse fingindo ignorância de propósito.
— Aspen, não fale desse jeito com a sua irmã! O que já conversamos sobre essa atitude?
Não sei se sinto meu coração apertar mais com a frieza e a formalidade na resposta de Aspen ou pela forma como é Celeste a repreendê-la, a agir como mãe. Tento disfarçar a dor que suas palavras causam, mas não consigo evitar que a confusão tome conta de mim.
— Desculpe, é claro que sei que você não iria esquecer, pequena...
O apelido parece não combinar mais com minha irmã, que agora está bastante alta para a sua idade, assim como eu era aos treze anos. Compartilhamos alguns traços de nossa mãe, como o maxilar anguloso e os lábios cheios, mas minha pele é um tom mais escura que a dela, enquanto a de Aspen é uns dois tons mais escura. Vejo no momento em que ela franze o cenho, como se não fosse mais comum me ouvir chamando-a assim.
— Mas, estou aceitando uma carona para a escola — anuncia ela.
Minha mãe está me olhando com expectativa e eu bato a cabeça em silêncio, pensando em como direi que não estou de carro e o pior, que não faço ideia de onde Aspen estuda agora.
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