𝟭𝟳. literature and game tickets
𝗠𝗔𝗬 𝟮𝟮, 𝟮𝟬𝟯𝟰
ᥫ᭡𝐋𝐈𝐋𝐈𝐓𝐇...
O domingo passou tão rápido que, quando me dei conta, já era noite e o fim de semana tinha escorregado pelos meus dedos como areia. Quase como se tivesse sido um borrão entre os minutos e as horas, um dia que mal deixou lembranças.
Depois de passar dois dias praticamente colada a Matt, a tensão entre nós finalmente estourou em mais um desentendimento bobo logo pela manhã. Foi algo pequeno, sobre o que deveríamos fazer para tentar entender essa bagunça de futuro em que nos metemos, mas o suficiente para nos fazer decidir que talvez precisássemos de um tempo afastados.
Ele subiu para o escritório, e eu fiquei com a casa inteira à minha disposição, sem saber exatamente o que fazer com tanta liberdade – e um elevador que eu havia acabado de testar pela primeira vez. Acho que parte de mim esperava que um de nós cedesse no meio do dia, porque no fim das contas, ele é o único que entende todas as nuances do que estamos passando, mas isso não aconteceu. No final, foi um domingo gasto com pequenas tarefas; tentando ler um livro para ocupar a mente, caminhando pela casa para tentar encontrar alguma resposta escondida entre os objetos, e checando a lista de filmes em um novo serviço de streaming que aparentemente eu assino. Quantos mais streamings devem existir agora?
Quanto a Matt, ele não fez nenhuma tentativa de se aproximar também. Passamos o dia como dois estranhos sob o mesmo teto, esbarrando de vez em quando na cozinha, mas sempre mantendo uma distância segura. No fim das contas, percebi que esse talvez fosse o nosso jeito de lidar com tudo – buscando espaços diferentes para respirar enquanto processamos o que quer que esteja acontecendo conosco.
Hoje de manhã, não o vi sair de casa. Quando desci para preparar o café da manhã, só encontrei uma mensagem dele no meu telefone, dizendo que estaria com o time o dia inteiro, se preparando para a última rodada contra o Toronto Maple Leafs naquela noite. Eles perderam o jogo de sábado e Matt, que assistiu a partida no sofá da sala ao lado de Aspen, que parece uma grande entusiasta do hóquei, ficou arrasado por não estar no ringue. Não entendo como ele está tão ligado ao hóquei quando eu estou me sentindo tão distante da minha profissão.
Quando abri os meus olhos pela manhã, a primeira coisa que me ocorreu foi não ter mais para onde correr. Um atestado falso já foi o suficiente – e difícil de arrumar –, eu não posso continuar evitando entrar em uma sala de aula e ser a professora de literatura de mais de 80 alunos. Vou ter que dar um jeito, mas isso não quer dizer que eu esteja tão animada com o meu trabalho como Matt aparenta estar.
Sacudo esse pensamento enquanto preparo o café para mim e Aspen. Ela sobe as escadas com os olhos ainda sonolentos, mas me dá um sorriso quando vê a mesa posta. Um sorriso? Eu vi um sorriso?
Mas não forço os limites dela. Comemos em silêncio e rapidamente tomamos caminhos diferentes para nos aprontar para o dia.
Agora estamos entrando no carro. Estou nervosa, embora tente não transparecer. Não tenho ideia de onde fica a escola dela, e a última coisa que quero é passar pelo vexame de ter que perguntar a Aspen qual é o endereço. Por sorte, me lembro de Nexa.
— Nexa, leve-nos à escola da Aspen — digo, tentando soar como alguém que diz isso regularmente.
— Iniciando rota para escola de Aspen — responde a voz suave do software do carro.
Respiro aliviada quando vejo a rota surgir no painel. Pelo menos um mistério resolvido. Puxo o cinto de segurança e olho para Aspen, que me lança um olhar curioso.
— Tudo certo? — pergunto.
Ela assente, logo antes de voltar o olhar para o celular, onde parecia estar respondendo mensagens.
— Tudo certo. Só queria saber se vamos ao jogo de Matt à noite.
Dou partida no carro, o som suave do motor preenchendo o silêncio entre nós enquanto penso no que responder. Nós íamos aos jogos de Matt com frequência? Mesmo que as coisas estivessem bagunçadas entre nós dois, eu ainda demonstrava apoio público ao meu noivo?
— Eu… Eu tenho uma reunião de trabalho importante hoje… — Começo a ensaiar uma desculpa sobre ter que trabalhar até mais tarde, mas, ao olhar para o rosto de Aspen, vejo a expressão da minha irmã murchar, seus olhos brilhantes de expectativa apagando-se em uma fração de segundo, dando lugar a uma careta emburrada. Estraguei tudo, mais uma vez. — Mas... — me apresso em consertar, quase atropelando as palavras. — O trabalho pode esperar. Claro que vamos ao jogo do Matt.
Aspen me olha, surpresa. O brilho volta aos seus olhos, embora ela não responda nada. Apenas um pequeno sorriso curva seus lábios antes de desviar o olhar de volta para o celular, os dedos voando pelas mensagens novamente. Me concentro na estrada à frente, sentindo um alívio inesperado ao vê-la feliz.
O silêncio entre nós é confortável, preenchido pelo som suave do motor e pelo clique ocasional do teclado do celular de Aspen. Enquanto avançamos pelas ruas, me atentando a rota calculada por Nexa, resolvo arriscar uma pergunta.
— Com quem você está falando tanto?
Ela dá de ombros, sem desviar os olhos do celular.
— Só com a Katie.
Não pressiono mais. Aspen é uma adolescente, trocar mensagens com quem suponho ser sua melhor amiga é completamente normal. Seguimos em silêncio até a escola.
Mas, quando Aspen está prestes a sair do carro, ela hesita. A observo, notando o jeito como ela olha para a rua movimentada por estudantes e ônibus escolares por um momento, mordendo o lábio inferior antes de falar.
— Ei... — ela começa, quase num sussurro. — Você acha que conseguiria um ingresso extra para o jogo? Eu queria levar um amigo hoje.
Ergo as sobrancelhas, surpresa. Não parei para pensar em todos os detalhes da nova vida que tenho, e agora, aqui estou, diante de uma versão da Aspen que tem amigos com quem quer ir aos jogos de Matt.
— Um amigo, hein? — tento brincar, suavizando o tom, embora tenha segurado a vontade de chorar. Ela não é mais um bebê.
Aspen dá de ombros, mas noto um leve rubor subindo pelas bochechas dela.
— É só um amigo, Lilith — responde, com os olhos fixos nas mãos. — Garrett. Já falei dele para Matt.
— Ah. — Sorrio, tentando não parecer ofendida por ela ter mais liberdade em conversar sobre garotos com Matt do que comigo. — Vou ver o que posso fazer. Mas não prometo nada, ok?
Aspen finalmente me olha, um brilho esperançoso nos olhos.
— Ok. Obrigada, Lily.
Ela se inclina rapidamente, me dando um abraço desajeitado antes de sair do carro em um salto. Fico sem reação. Foi tudo tão rápido que a única alternativa que tenho é observar enquanto ela entra na escola, sentindo um aperto no peito. Ela não é mais um bebê.
❄︎ ❄︎ ❄︎
Ao chegar à Somerville High School, veja mais um local que não parece ter mudado nada. O prédio é como me lembro, com sua fachada de tijolos vermelhos e janelas alinhadas. No entanto, há algo diferente: um anexo novo, que me parece ser um ginásio maior. Não me lembro de ter visto isso antes. Na frente da escola, uma faixa enorme está pendurada acima da entrada: "Bem-vindos às provas finais, turma de formandos de 2034”.
Respiro fundo, tentando manter a calma e a discrição. Preciso passar despercebida, pelo menos até entender exatamente onde estou me metendo. Caminho pelos corredores, mantendo a cabeça baixa e o olhar atento. A escola ainda está pouco movimentada para uma manhã de segunda-feira, o que é particularmente bom para mim. Os rostos dos alunos são desconhecidos, mas todo o ambiente é familiar, como se eu pudesse me misturar no meio deles e assistir às aulas normalmente.
Me dirijo à sala dos professores, certa de que nunca entrei nela antes. Ao abrir a porta, encontro um espaço muito mais moderno do que eu esperava. Há mesas com computadores alinhadas nas laterais e uma grande mesa redonda no centro, provavelmente um local para reuniões de professores. Uma parede inteira é ocupada por armários, iguais aos dos corredores dos alunos, onde os professores devem guardar seus pertences. Decorações e pequenos objetos pessoais se destacam em alguns deles, dando um toque de personalidade a cada um.
Procuro em minha bolsa a chave que pertence a um desses armários. Nenhum dos que estão decorados na parte externa parece ser o meu, pois acho que depois do ensino médio, é um pouco demais perder tempo com isso. Eu nem decorei o meu esse ano, ou melhor dizendo, no meu último ano de ensino médio, há 10 anos atrás. Encontro um chaveiro de plástico, daqueles que dá para colocar uma etiqueta por dentro. O número "44" está escrito na etiqueta. Caminho pela sala, os olhos percorrendo os números nos armários até esbarrar no 44.
Paro diante dele, coloco a chave na fechadura e a giro, ouvindo o clique. Ao abrir o armário, sou recebida por uma estranha onda de familiaridade. Há um espelho pequeno preso à parte interna da porta, e ao lado dele, uma foto.
Na foto, Matt e eu estamos abraçados em uma praia de águas cristalinas. Ele está de calção de banho e uma camiseta branca, os cabelos um pouco bagunçados pelo vento. Pela primeira vez, noto o quanto os olhos dele são intensamente azuis durante o dia, refletindo a luz do sol de um jeito que eu nunca percebi antes.
Estou usando um vestido de renda branca, com o biquíni amarelo aparecendo por baixo, contrastando com o tom dourado da minha pele, que parece bronzeada como nunca. A água do mar chega até os nossos tornozelos, enquanto uma palmeira acima de nós lança uma sombra suave. Ambos sorrimos para a câmera, um sorriso tão fácil, tão cheio de uma felicidade que parece quase impossível de se alcançar. A cena é tão natural, tão livre de qualquer tensão, que me pergunto como chegamos a esse ponto. Como duas pessoas que parecem tão conectadas nessa imagem podem estar à beira de procurar apartamentos separados agora?
Meu dedo desliza sobre a foto, tentando absorver cada detalhe. Posso quase sentir o calor do sol na minha pele e ouvir o som das ondas quebrando suavemente ao fundo. Olhando para Matt ali, tão descontraído, ele parece... feliz. E eu também. E, de alguma forma, isso torna tudo ainda mais doloroso. É uma foto de duas pessoas que têm um sentimento recíproco no olhar: amor.
Meus olhos percorrem o restante do espaço, que é surpreendentemente organizado. Há alguns livros, cadernos, e uma agenda. Tudo está arrumado, como se eu fosse uma daquelas pessoas que sempre sabem onde cada coisa está. Na prateleira superior, uma caneca de café com meu nome estampado, e ao lado dela, um pacote de balas de menta. Abaixo, uma pequena gaveta. Abro-a com cuidado e encontro papéis diversos: notas, recibos, algumas fotografias de alunos em eventos escolares, e um post-it com uma anotação apressada: "Conselho de classe - quinta-feira, 16h." Engulo em seco.
A sensação de deslocamento é forte. Minhas mãos tremem um pouco quando alcanço um caderno que parece ser uma espécie de diário de bordo das aulas. A capa está levemente desgastada, como se fosse usada com frequência.
Antes que eu consiga ver o que há nas páginas do diário, a porta da sala dos professores se abre, fazendo-me pular levemente. Uma mulher entra e me encara com uma expressão de surpresa.
— Lilith? O que você ainda está fazendo aqui? — ela pergunta, arqueando uma sobrancelha. — O portão está quase abrindo.
Por intuição, rapidamente pego o livro que parece ser o que mais uso nas aulas e o diário de bordo, abraçando-os contra o peito. Tento não demonstrar meu nervosismo enquanto me encaminho para a porta.
— Eu... só estava conferindo umas anotações — digo, dando um sorriso tenso.
Ela me observa enquanto passo por ela no corredor, seus olhos se estreitando com preocupação.
— Você passou da sua sala, Lilith — ela ri, apontando na direção contrária. Eu paro, sentindo meu rosto esquentar.
— Ah, sim, claro... — murmuro. Sem outra palavra, viro nos calcanhares e caminho apressada na direção correta, tentando ignorar o olhar desconfiado que ela lança em minhas costas.
Entro rapidamente na sala de aula, fechando a porta atrás de mim. Meu coração está disparado, e eu me sinto como uma intrusa. Coloco o material sobre a mesa, tentando me situar. O ambiente é simples: carteiras dispostas em fileiras, um quadro branco ao fundo e um canto decorado com alguns trabalhos dos alunos. Inspiro fundo, ainda processando a informação de que, de alguma forma, esta é a minha sala.
Não tenho muito tempo para pensar. Os alunos começam a entrar, cumprimentando-me com uma naturalidade que me assusta. E então, sinto exatamente o que Matt descreveu. Uma sensação estranha, como se meu corpo estivesse tendo lembranças próprias, uma "memória corporal". Sei exatamente o que fazer.
Minhas mãos se movem automaticamente enquanto organizo os papéis sobre a mesa, a postura muda, e minha voz soa firme quando cumprimento a turma de volta. Aos poucos, deixo de lado a confusão que tomou conta de mim nos últimos dias. É como se, diante dessa turma, eu me reconhecesse e soubesse exatamente o meu propósito aqui.
Decido começar a aula revisando um tema que parece o mais interessante para a reta final dos estudantes: a influência dos clássicos da literatura na cultura contemporânea. É um tema abrangente, que permite discussões, dinâmicas e conexões com as diversas mídias e estilos que eles consomem.
— Hoje, vamos falar sobre como os clássicos da literatura continuam influenciando a cultura atual — anuncio, observando as expressões curiosas dos alunos. — Quero que vocês pensem em algum livro ou autor que lemos este ano e façam uma conexão com uma obra moderna — pode ser um filme, uma série, uma música ou até mesmo um jogo. Algo que vocês sintam que carrega a essência de um clássico, mesmo que de forma sutil.
Os alunos murmuram entre si, empolgados com a tarefa. Dou um sorriso, surpresa com a confiança que sinto ao conduzir a discussão. Caminho pela sala, observando os grupos começarem a conversar, enquanto minha mente ainda tenta se ajustar ao que está acontecendo – e as referências que eles fazem à atualidade que finjo que conheço. Mas, felizmente eles também falam de obras como "O Conto da Aia" e sua adaptação para a televisão, relacionam "Orgulho e Preconceito" com romances contemporâneos e até mesmo traçam paralelos entre "1984" e algumas distopias modernas.
Por alguns instantes, deixo-me envolver pela discussão, impressionada com as ideias que surgem. É quase fácil esquecer que estou presa em um tempo ao qual não pertenço – quase.
❄︎ ❄︎ ❄︎
Sentada no carro e terminando meu yakisoba, olho pela janela, observando os alunos passarem distraídos no pátio da escola. Não tive coragem de ficar na sala dos professores durante o almoço e ter que interagir com adultos de verdade. Então, pedi meu almoço em um restaurante japonês com ótimas avaliações no Yelp e me escondi dentro do carro no estacionamento da escola.
Agora, o sol da tarde lança sombras suaves no asfalto, e o meu dia, que começou de forma tumultuada, agora parece mais calmo. Seguro o celular nas mãos, hesitando por um momento antes de finalmente decidir ligar para Matt. Não podemos evitar ter uma conversa para sempre, afinal.
Limpo a boca com um guardanapo enquanto ouço o clique, indicando que ele atendeu a ligação.
— Ei.
— Ei — Matt responde. A tensão é palpável, mas ele parece disposto a ignorar o que aconteceu ontem, e eu não vou ficar cutucando a ferida.
Decido começar com algo mais leve.
— Hoje de manhã, eu levei a Aspen para a escola. E foi diferente. Ela estava mais... — procuro a palavra certa, tentando não parecer emotiva demais — leve. A interação foi mais tranquila do que nos últimos dias.
— Sério? — Matt parece genuinamente feliz. — Isso é ótimo, Lilith.
— Sim, ela estava animada para o seu jogo. — Solto uma risada suave, lembrando-me do brilho nos olhos dela. — E parece que quer levar um amigo também.
Sinto Matt prender a respiração do outro lado da linha.
— Um amigo? Que amigo? Ela já tem idade para ter um namorado agora?
— O nome dele é Garrett. — Tento não rir ao perceber o tom protetor na voz dele. — Ela jura que é só um amigo.
— Hum... — Matt faz uma pausa, e quase posso vê-lo franzindo o cenho. — Certo, vou ver se consigo um ingresso extra para ele. Mas... — hesita, e eu sei o que vem a seguir. — Eu nem sabia que você e Aspen queriam vir ao jogo.
Minha garganta aperta, e lembro-me de como tentei evitar a situação mais cedo. Mas em vez de falar sobre isso, decido mudar de assunto rapidamente.
— E o treino? Como foi?
— Foi... — Matt suspira, e há um misto de alívio e confusão em sua voz. — Foi como eu achei que seria. Eu cheguei lá e sabia exatamente o que fazer. Tive entrosamento com o time, foi incrível, sabe? — ele ri de forma contida. — Mas eu tive que pesquisar na internet o nome de todos os meus companheiros de equipe, comissão técnica e suas famílias.
Dou risada, mas rapidamente me recordo do que aconteceu comigo mais cedo.
— Matt, acho que você tem razão sobre essa coisa de “memória corporal” — digo, procurando as palavras certas. — Na minha aula, foi quase a mesma coisa. Eu entrei lá, e soube exatamente o que fazer. Dominei a turma, conduzi a discussão. Foi como se meu corpo soubesse exatamente como agir, minha boca o que dizer, minha mente o que pensar, mesmo que eu não tivesse ideia de como tudo isso estava acontecendo.
Há uma pausa do outro lado da linha, e quase posso sentir os pensamentos de Matt zunindo no ar. Finalmente, ele fala, a voz baixa e cheia de um desconforto que espelha o meu.
— Lilith, e se a gente não viajou no tempo?— ele hesita, como se estivesse mexendo com algo proibido. — E se estivermos passando por algum tipo de episódio bizarro de esquecimento dos últimos dez anos?
Fecho os olhos, tentando processar essa ideia, o coração disparando. Faz sentido? Uma parte de mim quer acreditar nisso, mas não é possível. É?
Ouço vozes ao fundo e Matt se despede sem esperar por uma resposta.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro