🐚 . ⁰¹ Maldita seja Miami
De todas as coisas que Kylie esperava nunca mais fazer, voltar a Miami era a única que ela esperava não realizar nem forçada. Mas lá estava a Cantrall olhando pela janela do avião enquanto deixava as ilhas caribenhas para poder disputar mais um de seus campeonatos de surf.
Em Miami.
Naquela maldita Miami.
Não que a surfista de mechas vermelhas achasse que era um lugar feio, nada disso, era lindo. Areia clara, água cristalina e ondas de tirar o fôlego - literalmente - compunham uma paisagem sem igual. Mas quem morava por aquelas redondezas que a fazia querer esquecer aquele lugar a todo custo.
Baker. Malia Baker.
A garota foi sua amiga, uma das melhores… Talvez muito mais do que amiga, mas Kylie não admitiria isso, nunca, ela não era disso. Depois da discussão idiota que tiveram, a surfista nunca mais se deu ao trabalho de voltar a praia daquele lugar, nem que fosse para uma mísera onda.
Sentia saudades de Malia, era óbvio, alguns diziam na época que toda aquela amizade acabaria dando em algo mais, até mesmo Cantrall chegou a pensar nisso por um tempo, mais tempo do que realmente desejava e bem, depois de uma briga nada saudável as duas nunca mais se viram.
E Kylie achava melhor assim. Afinal, a culpa tinha sido dela, não é mesmo? Ela que estragou tudo, agora não tinha mais volta.
Se lembrava como se tivesse acontecido a poucos minutos atrás da primeira vez que viu a cacheada. Sua mãe tinha se mudado para Miami após o divórcio, não era fixo, mas foi um bom lugar temporário para que ela fugisse um pouco do mundo sem que a filha precisasse parar com seu esporte mas águas. Desde cedo a Cantrall demonstrou muito talento em cima de uma prancha, se ela estava competindo, os concorrentes geralmente ficavam cabisbaixos. Ela era uma baixinha inalcançável.
Com o avião começando a se distanciar cada vez mais do solo e a única visão da janela agora serem nuvens fofinhas, Kylie se recostou na poltrona e colocou seus fones, agora se permitindo afundar em lembranças do que lhe pareciam ter sido uma outra vida.
Kylie tinha dezeseis anos quando seus pais se divorciaram.
Com certeza ela não compreendia o motivo daquilo, eles sempre se deram bem, nunca presenciou uma briga que fosse deles, nada que justificasse aquela decisão.
Sua mãe resolveu se mudar, ela estava inconsolável e acabou por descontar isso numa busca terrível pelo que ela chamava de “controlando tudo que posso quando tudo está fora de controle” e isso incluía, em parte, a vida da Cantrall mais nova. A mudança gerou um desconforto óbvio para a garota, para quem não geraria, não é?
Miami não era ruim. Mas significava estar longe de seus amigos, de seu pai e de sua vida. E ela faria de tudo para odiar aquele lugar.
A mãe de Kylie se empenhou em alugar uma casa perto da praia, para que sua filha se sentisse pelo menos um pouquinho feliz com a mudança e talvez parasse um pouco de a olhar como se ela fosse a culpada daquilo tudo, quando na realidade não era bem assim.
A surfista conseguia ver o mar da janela de seu quarto, mas aquela não era nem de longe o lugar em que ela mais queria estar. Queria sua casa. Sua cama. Sua praia. Seus amigos.
O que tinha restado de sua outra vida no Texas foi apenas a sua prancha.
Era um dia qualquer, o terceiro desde a mudança e pela primeira vez Kylie estava saindo do quarto, mesmo que pé a pé para que sua mãe não notasse carregando sua prancha junto ao corpo. Precisava do mar, e aquele deveria servir.
O plano era: sair de casa silenciosamente, atravessar a rua, e ficar naquela praia até escurecer e depois voltar para casa do mesmo jeito que saiu.
Mas como ultimamente a vida da surfista não estava nada simples, assim que abriu a porta se deparou com um par de olhos castanhos, uma garota de cabelo cacheado com o punho fechado mais ou menos na altura de seu rosto, provavelmente ela estava prestes a bater.
Com toda certeza aquela era uma das garotas mais lindas que Kylie já havia tido o prazer de ver na sua vida, e não sentia nem um pingo de remorso por pensar nisso, descobriu sua bissexualidade quando tinha quinze anos e, na época, sua família era perfeita o suficiente para aceitar uma filha gostando de garotas também.
Mas aparentemente não era suficientemente perfeita para continuar junta.
Apesar de encantada pela garota cacheada de pele parda, a Cantrall não iria se deixar levar assim, odiava aquele lugar, e odiaria quem quer que fosse aquela garota.
──── Oi, meu nome é Malia, moro na casa da frente, acho que a gente vai ser meio que vizinhas agora, né? - a garota quebrou o silêncio, sorrindo de canto a canto, e juntando as mãos na frente do corpo de um modo fofo.
Malia Baker, mesmo que não saísse do quarto, as pessoas por ali fofocavam alto demais para os ouvidos da surfista que se recordava de ter ouvido o nome da garota três ou quatro vezes.
Agora ela entendia o porquê.
──── É, acho que sim, por enquanto. - respondeu tentando deixar a voz o mais distante o possível e torcendo para que sua cara de tédio fosse o suficiente para disfarçar suas pupilas dilatadas e as mãos levemente trêmulas.
Aparentemente, foi tão suficiente que Malia pareceu um pouco sem graça, desviando o olhar para a prancha ao lado da garota, com um sorriso esquisito.
──── Bom, você não me disse sem nome, garota surfista. - tentou mudar o assunto, claramente a Baker não era burra e notou que a mudança não foi totalmente consensual pela garota bonita de mechas vermelhas.
──── Kylie. - a simplicidade da resposta fazia a Cantrall querer se matar, a cacheada não tinha nada haver com seus problemas, afinal.
──── Kylie… - a morena pareceu testar o nome ainda olhando para prancha e em seguida para a garota a sua frente - Gostei, é bonito, combina com você!
A Baker não teve resposta, apenas pode assistir a boca da garota formar uma linha tensa, as sobrancelhas se levantarem um pouco e um leve rubor tomar conta das bochechas da surfista. Bingo, ela não era de ferro afinal de contas.
Sem esperar uma resposta, e com medo de ter quebrado a garota, Malia decidiu mudar de assunto mais uma vez.
──── Estava indo para praia? Posso te mostrar alguns lugares legais, sabe? Moro aqui desde sempre então… - ao notar que Kylie apenas a olhava, aparentemente, tentando acompanhar seu ritmo, ela parou - Desculpa, devo estar sendo muito chata, eu costumo falar de mais e…
──── Não, tudo bem, mas eu ia preferir ficar soz… - Cantrall parou assim que ouviu a voz da mãe perguntando se estava bem e com quem estava conversando - Eu aceito a companhia, vem, vamos!
A surfista pegou a mão da cacheada e saiu andando a toda velocidade com a prancha sendo segurada com força do lado do corpo. A primeira parte do plano matinha ido para o ralo.
Já Malia sorria sem notar, havia conseguido tirar a garota misteriosa de dentro de casa e estava andando de mãos dadas com ela. Baker só conseguia pensar no quão bem Kylie ficava com o biquíni preto e o shorts jeans. Um pensamento idiota, mas que não deixava de passar pela cabeça da cacheada desde que Cantrall abriu a porta.
──── Bom, o que gostaria de ver primeiro?
Aparentemente, a surfista só se deu conta de que ainda estava arrastando a cacheada quando ouviu a pergunta, e logo se apressou em soltar a mão alheia, parando na faixa de areia que dividia a cidade do mar.
──── Onde eu posso pegar uma boa onda?
──── Perto da pedreira tem as melhores, mas é um pouco perigoso, então… - Malia parou um pouco para pensar em um outro lugar, mas foi interrompida pela garota a seu lado.
──── Essa vai servir, me leva até lá.
──── Você me parece meio rebelde, se quiser conversar eu posso… - ao ver a cara nada boa da Cantrall, a cacheada decidiu que se quisesse que aquilo desse certo ia ter que ficar quieta - Okay, certo, ondas, vamos lá.
A parte rochosa da praia realmente tinha ondas espetaculares, mas o fato delas quebrarem muito próximo da pedreira dificultavam a vida de qualquer surfista, talvez seja esse o motivo de terem poucas pessoas por aquela área, ou talvez ninguém goste muito de ir a praia por aqui durante a manhã.
Kylie simplesmente fingiu que Malia não estava ali, deixou seu short em um canto qualquer da areia e foi de encontro ao mar sem se importar se a garota esperaria ou não, torcendo mil vezes para que não, do contrário, odiar aquele lugar e, principalmente, odiar Malia Baker seria uma tarefa muito difícil.
Para o azar da Cantrall, Malia desamarou a canga da cintura e a jogou por cima da areia, recolhendo a peça de roupa que a surfista havia deixado para trás e a colocando em cima do pano, se sentando para observar Kylie se aventurar naquelas ondas nada calmas do mar de Miami.
Sem dúvidas ela tinha talento, Kylie tinha uma conexão quase que sobrenatural com o mar, a onda perfeita sempre estava a sua espera, tinha brincado um pouco nas duas últimas ondas, mas seu real desafio estava vindo somente agora, e de longe, ela pode notar Baker a observando, céus, como ela faria para não gostar dessa cidade?
Assim que a onda se aproximou o suficiente lá estava ela, podia ouvir a narração que seu pai fazia quando ela era pequena se misturando com as narrações de seus últimos campeonatos.
"Kylie Cantrall está pegando sua melhor onda dessa bateria! Aéreo altíssimo isso vai jogar a nota dela muito pra cima, viu? Ela vem muito em cima da crista da onda, cara, isso é coisa de louco! Essa é a nossa Rainha das ondas, pessoal!Caraca, olha isso, que tubo sensacional! Se ela conseguir sair do outro lado, com certeza vem um 10 aí e ela tem o primeiro lugar garantido!"
Sentiu então tudo a puxar de volta para onde estava. Miami. Não era campeonato. Não tinha seus amigos a esperando na areia. Não tinha seu pai pulando e gritando que ela estava indo bem. Não tinha nada.
A água se fechou, a luz no final do tubo deu lugar a visão da pedreira, ouviu alguém gritar seu nome de longe. Não daria tempo.
E então ela caiu.
Por mais leiga que Malia fosse no assunto surf, ela tinha certa noção de que aquele tubo inacreditável, que a surfista tinha pegado, estava um pouco estranho e a demora de Kylie para sair dele um tanto incomum. Chegou até a beirada da água e chamou o nome da garota algumas vezes, estava com água na cintura quando viu a prancha sendo arremessada para fora da onda, por sorte não se chocando com as pedras.
Malia entrou em desespero e mergulhou. Com que cara ela iria bater na porta da casa a frente da sua e dizer que a surfista tinha se afogado? Aquilo estava fora de cogitação, mesmo que o que quer que ela estivesse fazendo agora fosse uma ideia idiota e talvez até inútil.
Depois de um minuto e meio Malia conseguiu ver a garota aparentemente desacordada embaixo d'água. Subiu para tomar ar e voltou para pegar a garota.
Baker nadou até a praia carregando a surfista do jeito mais rápido que conseguia. Rezando para que nada ruim acontecesse. Colocou Kylie deitada na areia e tentou as manobras de resgate que seu pai havia ensinado.
Juntou as mãos sob o tórax da Cantrall e começou a contagem.
──── KYLIE! MEU DEUS, KYLIE!
A cacheada estava desesperada, a massagem cardíaca não estava funcionando. E, droga, ela realmente faria aquilo.
Tapou as narinas da surfista e abriu levemente sua boca sobrando ar assim que juntou seus lábios nos de Kylie.
Fez pressão com as mãos no tórax da garota mais cinco vezes e então ela começou a ter alguns espasmos e a tossir água.
Graças a Deus.
──── Meu Deus, você tá bem? - Malia segurou a Cantrall pelos ombros assim que ela se recuperou um pouco - Se machucou? Aí, como eu vou explicar isso pra…
──── Malia… - a voz de Kylie estava rouca e ela sentia a boca extremamente seca, o que fez com que o nome não passasse de um sussurro esganiçado.
──── E-eu?
──── Cala a boca.
A cacheada entendeu o recado e apenas ficou ali, esperando a garota ter sua voz de volta e garantir que ela não fosse voltar para o mar e tentar se matar de novo.
Ficaram em silêncio por longos minutos,Malia olhando para Kylie e Kylie olhando para o chão.
──── Obrigada, por me tirar da água.
A Cantrall quebrou o silêncio olhando pela primeira vez para a cacheada, reparando só agora no biquíni azul marinho que ela estava usando.
Ela tinha a salvado. Aquela garota não tinha a menor obrigação e mesmo assim, tinha entrado no mar e a tirado dali.
Acho que não teria como não gostar de Malia Baker afinal.
──── Que isso, não foi nada e você meio que estava sob minha responsabilidade, então…
Ela não completou, ficaram ali, olhando uma para a outra, dividindo sorrisos fechados e aproveitando a companhia uma da outra.
Depois do que pareceu uma eternidade, Kylie se levantou e estendeu a mão para a Baker a fazendo sair do tranze.
──── Eu surfo desde os sete. - a garota de mechas tentou puxar conversa tentando de certo modo de desculpar pela forma grossa de mais cedo.
──── Sério? - a cacheada comentou tirando um pouco da areia dos braços - Que incrível! Eu não faço nenhum esporte, a não ser que você considere fazer as melhores panquecas de Miami algo digno de um troféu. - brincou tirando uma risada da surfista que, desde que chegou ali, se permitiu sorrir pela primeira vez.
──── É, acho que talvez sim.
E foi ali que Kylie Cantrall, a surfista prodígio, se apaixonou por Malia Baker, a filha das águas.
Ao se virar novamente para a janela do avião, Cantrall contemplou a pedreira que quase a matou daquela vez, só que dessa vez, não teria ninguém que entraria na água por ela.
Não depois de tudo.
×
Notas do Autor:
Aqui é treta atrás de treta, primeiro capítulo dessa história, postando de uma vez antes que eu me esqueça e, caramba, eu amo essa fic de coração já!
O que acharam? Tem ideias do que pode ter acontecido? Do porque a fic ter esse nome? Ou só vão esperar as coisas acontecerem?
Enfim, espero que tenham gostado e até a próxima ^-^
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