ANNE

Anne abriu a última caixa que havia chegado naquele dia, e sorriu feliz ao ver que eram as cortinas de renda que havia encomendado na loja local.

O apartamento estava ficando lindo, exatamente como tinha imaginado, e era uma pena que Mike estivesse muito ocupado com seu trabalho para ajudá-la na decoração. Mas ele dissera que confiava em seu bom gosto, assim, ela colocara seu coração naquele lugar onde em breve estaria morando com seu futuro marido.

O casamento seria dali a um mês, e ela estava em uma correria para conseguir organizar tudo a tempo. O vestido de noiva teria sua última prova dali a três semanas, e depois partiriam em lua de mel para os Alpes suíços, consolidando assim o sonho dos dois.

Anne e Mike se conheciam desde a faculdade, e ela o vira pela primeira vez em um jogo de futebol no campus. Ele era um dos jogadores principais e reparara nela assim que a vira sentada na primeira fila com um boné preto e uma camiseta enorme escrita I got you.

No primeiro gol que ele fizera naquele dia, o rapaz oferecera a ela, e Anne quase não pudera acreditar que aquele rapaz bonito de olhos verdes tivesse feito esse ato tão significativo para uma desconhecida.

O time dele ganhara naquele dia, e quando Anne o fora cumprimentar e agradecer pelo gol oferecido, ela ganhara além de um lindo sorriso, o número de telefone particular do rapaz, e assim, em duas semanas estavam saindo juntos, um mês depois começaram a namorar, e nunca mais se largaram.

Isso tudo tinha acontecido seis anos antes, e agora que ambos estavam finalmente estabilizados na vida, decidiram se casar, e Anne não podia estar mais feliz, embora seus tios Matthew e Marilla não se simpatizassem muito com Mike, e achassem que ela merecia alguém melhor.

Anne não sabia bem, o que levara seus tios a terem essa antipatia gratuita por seu noivo que sempre os tratara com respeito e simpatia, e a única vez que Anne fizera esse questionamento em voz alta, Matthew dissera que Mike era artificial demais para o seu gosto, e que não acreditava em seus sorrisos e em sua fala mansa, que ele poderia enganar todo mundo, mas não a ele que era um homem das antigas, que sabia muito bem avaliar o caráter de alguém só por sua forma de se comportar.

Marilla não dissera nada, mas Anne pudera perceber que ela concordava com o irmão. A verdade era que essa situação aborrecia imensamente a Anne, que gostaria que seus tios aprovassem seu futuro marido, uma vez que eles a criaram desde que seus pais tinham morrido, mas tinha esperanças de que com o tempo e a convivência, essa má impressão que tinham dele acabaria por mudar.

Mike tinha lá seus defeitos como ela também tinha os dela, mas era um bom rapaz, focado no trabalho de sua empresa de marketing que fundara com seu primo Brian, sempre preocupado com o futuro e dar conforto a Anne na nova vida que estavam construindo juntos.

Era verdade que às vezes Anne ficava aborrecida por Mike ser viciado em trabalho, e em algumas ocasiões cancelar um compromisso com ela por conta de alguma reunião importante, mas isso não era um motivo muito grave para que ela ficasse aborrecida com ele por muito tempo. Mike sempre aparecia com flores ou uma caixa com os bombons favoritos de Anne, e dessa forma, ela esquecia tudo, pois não poderia sentir-se zangada com alguém que parecia sempre pronto a agradá-la com tanta gentileza.

O celular de Anne tocou no momento em que ela terminava de colocar a cortina que comprara na janela da sala.

-Alô. - ela disse quase de forma distraída, enquanto seus olhos passavam pelo tecido de renda, tentando encontrar algum vinco ou alguma imperfeição na maneira como colocara o suporte na janela.

-Onde você está, garota? Estamos te esperando no clube.- ela ouviu Josie dizer do outro lado da linha.

-Ainda não é cedo?- Anne perguntou, passando as mãos pelo cabelo.

-Querida, são sete horas. Onde você está?- Josie perguntou, enquanto Anne ouvia uma música tocando ao fundo da linha.

-Nossa, tudo isso?- Anne disse surpresa ao olhar para fora e notar que tinha escurecido. Passara a tarde toda ali e não percebera.: -Estou no apartamento.- ela respondeu a pergunta que Josie fizera antes.

-Então, vem para cá. Estamos te esperando.- a amiga insistiu.

-Estou indo. Já terminei tudo por aqui.- ela confirmou, pegando sua bolsa e se preparando para sair.

-Espero que não se importe. Eu convidei um amigo para vir aqui. Ele acabou de levar um chute da namorada, e está na pior, e quis dar uma força à ele.

-Tudo bem. Chego daqui a quinze minutos.- Anne respondeu já no elevador.

-Te aguardamos então.- Josie disse, desligando o telefone.

Anne chegou ao estacionamento, e deu uma checada em sua aparência antes de entrar no carro. Seus cabelos loiros no momento estavam bastante apresentáveis, apesar de sua raiz naturalmente ruiva estivesse começando a aparecer.

Aquela fora uma loucura que fizera por Mike. Ele a convencera a pintar seus cabelos ruivos de loiro, o que particularmente não a agradara, mas ele parecera gostar, pois não se cansava de dizer o quanto ela ficara linda e sofisticada.

Ele também costumava controlar a alimentação dela, pois adepto à coisas naturais e sem conservantes, Mike vivia dizendo a Anne o quanto ela precisava tomar cuidado com as coisas que comia, pois poderia prejudicar seriamente sua saúde, além de fazê-la correr o risco de engordar, o que era um absurdo, pois ela dificilmente aumentaria de peso por ser esbelta por natureza. Contudo, para fazer a vontade de Mike, ela acabara por se privar das melhores coisas da vida que era uma apetitosa pizza de queijo, ou um enorme sundae de chocolate.

Anne entrou no carro, e se ajeitou por trás do volante, enquanto colocava o endereço do clube no GPS. Era aniversário de Josie naquele dia, e todas as amigas de ambas estariam nesse clube noturno que ela não conhecia. Mike não fora convidado, e Anne sabia o motivo.

Josie também não se simpatizara com Mike, desde uma vez que ela e o noivo de Anne discutiram por um motivo bobo, a amiga nunca mais dera chance ao rapaz de se aproximar e fazê-la mudar de opinião. Assim, ele não acompanhá-la a festinha particular da amiga não causaria nenhuma estranheza, pois todos sabiam que tanto Josie quanto Mike não eram fãs um do outro.

A ruivinha ligou a chave de carro e começou a dirigir, indo em direção ao local que o GPS lhe indicava. Não conhecia muito bem aquele lado da cidade, pois os lugares que frequentava com Mike não incluíam clubes noturnos.

Ainda bem que era sexta-feira e Anne não precisaria trabalhar no dia seguinte. Ela era secretária de Diretoria em uma empresa de cosméticos muito importante no momento, e adorava seu trabalho, apesar de toda a responsabilidade que ela tinha. Esse era seu primeiro trabalho importante, pois durante a faculdade para pagar seus gastos, ela trabalhara em uma livraria, e nos fins de semana trabalhara como garçonete em uma pizzaria. Foi só no penúltimo ano que conseguiria um estágio no departamento pessoal da empresa, e logo que se formara fora promovida, assim a vida ia tomando seu rumo de estabilidade, e Anne se sentia plenamente feliz.

Ela chegou no clube quinze minutos depois. As ruas de Vancouver na sexta à noite pareciam mais tranquilas do que normalmente eram naquele dia, o que deixava Anne mais calma, pois detestava dirigir em tráfego pesado.

Assim que entrou, ela percebeu a quantidade de pessoas que enchia o local, e a fumaça de néon que irritava suas narinas com seu aroma adocicado. Anne apenas viera até ali para prestigiar a amiga, mas não tinha intenção de ficar por muito tempo, pois estava cansada e queria dormir cedo. Mike tinha viajado a trabalho e só voltaria na segunda feira, o que lhe dava um tempo extra para passar consigo mesma, o qual queria aproveitar para relaxar e ler seu livro favorito.

-Anne, aqui!- ela viu Diana lhe acenar, mostrando onde todas as suas amigas estavam.

Ela se encaminhou para lá com um grande sorriso no rosto, ao ver que Josie conseguira reunir todas elas juntas dessa vez. Fazia tempo que Anne não falava com Diana e Ruby pessoalmente. O máximo que conseguia era mandar mensagem uma vez ou outra para saber como elas estavam, pois a vida de cada uma tinha seu próprio ritmo, e infelizmente não estavam mais participando dos mesmos círculos sociais.

-Deus, Anne. O que fez com seu lindo cabelo ruivo?- Diana perguntou de sua forma direta de ser. E antes que ela respondesse, Josie disse de forma mordaz:

-Ela fez isso pelo Mike.

-Pinto seu cabelo por causa de um cara?- Ruby perguntou, olhando-a ceticamente.

-Não foi só por ele. Eu também queria mudar um pouco e gostei do resultado.- Anne mentiu. Não queria que as amigas pensassem que fosse o tipo de garota alienada que fazia tudo que o namorado pedisse. Fora somente daquela vez que cedera, ela pensou, tentando não se sentir tão culpada. Para mudar o foco da conversa, ela perguntou:

-Onde está seu amigo?

-Ainda não chegou, mas assim que estiver aqui, vou te apresentar. Tenho certeza de que você vai gostar dele. Para falar a verdade, vocês são bem parecidos, românticos e certinhos.- Josie disse, fazendo uma cara falsa de tédio.- Ele é o fotógrafo das estrelas de cinema, muito bem conceituado em sua área de trabalho. Recentemente terminou um relacionamento de anos, e anda muito chateado. Parece que a garota conheceu um outro cara e o dispensou. - Josie explicou, fazendo com que Anne sentisse pena do rapaz. Era triste quando uma situação assim acontecia, especialmente se um dos lados ainda estivesse bastante apaixonado.

-Vamos dançar!- Diana convidou, puxando as amigas para a pista de dança.

Dançar nunca fora uma das coisas que Anne soubesse fazer com facilidade, mas naquele dia tentou se soltar para curtir melhor as amigas e aquela reunião tão esperada.

Quando estava realmente se soltando, uma mensagem chegando em seu celular a fez parar um instante para verificar se era seu noivo tentando fazer contato, e seu sorriso congelou nos lábios ao ver as fotos que tinham acabado de ser enviadas.

Em uma delas, Mike estava com uma garota que não era ela, e a beijava como se ela fosse sua noiva e não Anne. Nas outras, ele estava em um restaurante bastante sofisticado, depois caminhava com ela de mãos dadas pela cidade em uma intimidade que não deveria ter com ninguém mais a não ser com Anne, e na última foto, eles estavam em um píer onde havia barcos atracados e trocavam mais um beijo apaixonado.

Anne reconheceu a cidade, e era a mesma onde Mike dissera que iria a trabalho naquele fim de semana. Uma dor imensa tomou conta do peito de Anne, que ela pensou que sufocaria quando deu-se conta que Mike tinha um caso com outra mulher, e não parecia ser algo recente.

Os últimos anos passaram por sua cabeça como um raio, a fazendo se lembrar de todas as vezes em que ele viajara e a deixara sozinha, acionando um alarme em sua cabeça naquele momento, questionando-se se ele também não mentira.

Sua cabeça deu um nó como se ela estivesse em um looping gigante, sentindo-se tola ao pensar que dedicara seis anos de sua vida a um amor que existira apenas em sua cabeça. Mike não a amava e talvez nunca a tivesse amado. Apenas fora conveniente mantê-la a seu lado, enquanto nas horas vagas, longe dela, se divertia por ai sabe se lá com quem.

Um enjoo enorme a acometeu, e ela sentiu que tinha que sair dali o quanto antes. Sem se despedir das amigas, que a olharam confusas e sem entender nada enquanto a viam se afastar.

Anne venceu a barreira de gente dentro do clube que a impedia de deixar o local como desejava, e correu para o estacionamento onde seu carro estava. Chorando feito louca, ela colocou o cinto de segurança, enquanto os conteúdos das fotos não saiam de sua cabeça.

Ela começou a dirigir sem de fato enxergar direito para onde estava indo, pois as lágrimas que rolavam pelo seu rosto continuam a cair abundantemente. Mas nada importava naquele instante, pois ela queria apenas um lugar para se esconder e se livrar daquela dor terrível que a estava fazendo agonizar por dentro.

Alguém gritou:

-Moça, cuidado!- mas ela não ouviu, pois naquele instante, Anne não estava escutando nada, a não ser seu próprio coração que se partia um pouco mais a cada quilômetro vencido.

Então, o baque violento, que fez o carro dela capotar três vezes, antes de parar mais adiante em frente a várias pessoas chocadas com o terrível acidente.

Enquanto isso, presa nas ferragens Anne permanecia, alheia ao que acabava de acontecer, completamente desacordada, ela continuava silenciosa e mergulhada na tão abençoada escuridão.