É meu!
A cidadezinha estava como sempre, quase deserta. Com exceção dos habitantes locais que andavam pelas ruas de paralelepípedos disformes, não havia novidade.
As carruagens da turma de Flor Bonita estacionaram na rua da casa que Clementine tinha comprado ali. A mulher achou necessário ter onde ficar quando fosse até a cidade, pois era muito distante da fazenda para voltar no mesmo dia. Para ela, como ser humano e principalmente como mãe era vantajoso ter um descanso, afinal Émile tendia a ficar fadigado durante viagens longas.
As oito pessoas desceram das carruagens com nádegas dormentes de viajarem sentadas. Todos queriam descanso, mas acima de tudo estavam loucos para exercitar as pernas por isso Clementine deu a chave da casa à Paulínio, assim ele e Desidério descarregavam as malas e depois iam dormir enquanto os demais faziam compras. Com certeza eles eram os mais sofridos da viagem por terem conduzido as carruagens sem parar, um ato praticamente heróico. Mereciam mais descanso do que qualquer um.
— Vou comprar nossa casa, minha rosa. — Justino disse para Matilde e depois deu na noiva um beijo no rosto que a deixou toda encabulada.
— Até mais ver. — Ela se despediu.
Em vez de os grupos se separarem entre mulheres e homens, foram organizados por interesse. Bárbara e Tinoco foram com Justino para ajudar na escolha da casa e porque o senhor Silva conhecia um homem que vendia imóveis para negros sem superfaturar o preço. Era o próprio um liberto que tivera suas dificuldades antes de empreender na área.
Já Matilde, tinha a companhia de Marcel, Clementine, Maria Belinha e Valentin. O segundo grupo começou a andar pela rua de acesso ao empório do senhor Belismário, um velho muquirana que não gostava de nada além de dinheiro. Os réis, patacas e tostões eram seu grande amor, e com eles vivia feliz. O lado bom de tal comportamento era que na venda do homem qualquer um era bem vindo, independente da cor ou de qualquer outra característica. A única parte que interessava ao ambicioso era o bolso.
Os olhos do homem brilharam quando viram os Desfleurs entrarem em seu estabelecimento. A presença dos franceses sempre significava muito lucro.
— Sejam bem vindos! — Belísmário os recebeu com um caloroso abrir de braços. — Meus clientes prediletos enfim retornaram.
— Ora monsieur Belismário, sinto que está empenhado em deixar nossas bolsas consideravelmente mais leves. — Disse Clementine com um sorriso travesso.
O homem riu faceiro com uma mão sobre a barriga proeminente.
— Não posso negar. — Belismário sorria como uma jaguatirica prestes a capturar sua presa.
— Mercenário. — Clementine acusou.
— Visionário. — O homem se defendeu.
— Quais bebidas o senhor têm? — Matilde perguntou. — Para uma ocasião especial.
— Para uma ocasião especial tenho bebidas especiais! — Respondeu Belismário em tom convincente. — Duas caixas de vinho português de excelente qualidade. Chegaram há poucos dias, direto da corte.
— E o preço? — Matilde questionou já prevendo a facada que tomaria nas costas.
— Preço muito baixo para o enorme valor da mercadoria. Seu paladar agradecerá pela benfeitoria de dar a ele o que é bom. — O homem respondeu e em seguida sorriu cheio de dentes.
— Como poderemos saber se é realmente bom? — Marcel instigou.
— Tenho um aberto, de minha própria adega! — O comerciante anunciou. — Faço gosto que experimentem.
E eles experimentaram. O vinho era realmente bom, talvez mais pelo preço exorbitante do que pelo sabor. Acabaram comprando o estoque de duas caixas cheias e fizeram os pés de Belismário pisarem nuvens do paraíso.
— Vim da Europa e já me fartei de "vine" por lá. — Disse Valentin. — Quero sua melhor cachaça brasileira, por favor. Daquela com aroma de açúcar novo.
Os olhos de Belismário brilharam tanto que já podiam concorrer com o sol. Vendeu para Valentin a melhor cachaça de engenho. Era amarela e forte, uma dose levaria alguém desacostumado ao álcool para o céu ou o inferno.
— Não tem tecidos aqui, senhor Belismário? — Maria Belinha questionou, geralmente o homem tinha muitas peças.
— Não, menina. Uma senhora veio e comprou todos. — Ele lamentou profundamente. Se tivesse mais tecidos ganharia mais dinheiro. — Todavia tenho aviamentos. Botões, linhas, agulhas... Ofereceu.
— Serão necessários, obrigada. — Ela replicou enquanto pegava Émile que andava pelo estabelecimento.
— Precisamos dos tecidos. — Matilde disse a todos com preocupação.
— Talvez a costureira venda as peças que tem. — Belismário sugeriu.
— Tem razão, senhor. — Matilde falou com o coração cheio de gratidão.
Todos saíram do empório com as mercadorias que tinham adquirido e eram demasiadas para carregar a todo lugar em que fossem.
— Eu, Valentin e Marcel voltaremos a casa com as mercadorias e vocês seguem ao ateliê da costureira. — Maria Belinha sugeriu.
— Me recuso. — Marcel se agarrou ao braço de Matilde. — Quero aproveitar as últimas horas com minha musa.
Maria Belinha revirou os olhos.
— Não se preocupe, mademoiselle Silva. Sozinho sou melhor que dez cópias de Marcel. — Valentin se gabou.
— Um frangote de grande papo. — Marcel implicou. — Não aguentas carregar nem o peso do próprio corpo, paguem ajuda de rapazes forros.
— Por quem me tomas, Desfleurs? — Valentin disse com orgulho ferido. — Sou mais atlético do que você em toda a sua vida.
— Atlético como? Não o vejo exercitar-se! — Marcel provocou.
— Ora seu almofadinhas, devo chamá-lo toda vez que me dedicar aos exercícios na solidão de meu quarto? — Replicou emburrado. — Olhe para si, o que dizes? Parece um palito.
— Sou forte do trabalho no campo, meu caro. — Marcel flexionou o bíceps para fazer inveja a Valentin.
— Ambos têm porte de galinha desnutrida. — Clementine interrompeu a discussão. Valentin olhou para ela com o orgulho realmente ferido e Marcel riu. — Agora façam algo de útil da vida.
Clementine esticou os braços para pegar Émile, mas Maria Belinha recusou.
— O levarei comigo. — A jovem afirmou. — O sol já está forte e há de fazer mal a Émile.
— Está bem. — Clementine disse em concordância. — Então iremos.
Clementine, Marcel e Matilde partiram para o ateliê de dona Leonilda Marina, a costureira. Valentin, Maria Belinha e Émile foram para a casa. O senhor Lyon pediu para ela não contar que contrataram seis homens para carregar toda a mercadoria, a que ela respondeu que era difícil tentar esconder e seria questão de minutos até que a noticia se espalhasse.
— Nem conheço essa gente, a troco de quê mexericam sobre minha vida? — Valentin reclamou perplexo.
— De diversão. Uma novidade é sempre bem vinda. Se o senhor ficar na janela da sala de estar, de onde é possível ver a rua, logo verá que as moças da cidade passarão todas por ali. — Belinha explicou.
Valentin riu enquanto imaginava o pavoneado desfile.
— Será divertido. — Decretou.
Dito e feito. Valentin se sentou perto da janela e logo todas as moças da cidade passavam por ali. A maioria era de fato muito bela, mesmo a mais singela.
Valentin concluiu que o Brasil era a terra das belezas. A própria Maria Belinha era uma moça admiravelmente linda, os olhos dele sabiam identificar uma beldade. Todos aqueles traços harmoniosos que viviam enfeitados por belos ornatos eram um deleite para o olhar. Marcel era mesmo como um irmão para ela, pois do que conhecia do amigo Desfleurs, sabia que uma moça tão bela jamais escaparia de suas garras.
Maria Belinha aproximou-se sem Émile no colo, uma vez que o menino tinha dormido e ela o colocara no berço.
— Quantas já passaram? — A moça perguntou se aproximando da janela e seu cheiro de flores preencheu o ambiente.
— Pelo menos uma centena delas. — O homem respondeu.
Ela riu.
— Sequer há uma centena de moças neste lugar. — Ela retrucou.
— Conhece todas? — O homem questionou.
— Quase todas. — Maria Belinha se debruçou no batente da janela.
— Diga-me mademoiselle Silva, qual sua impressão sobre mim? — Valentin questionou enquanto olhava para o teto.
Maria Belinha virou o rosto estreito com olhos arregalados, por estar nitidamente surpresa.
— Acho que o senhor é agradável. — Respondeu um pouco sem jeito.
— Apenas "agradável"? — Ele mirou os olhos nos dela.
— Bem... Inteligente também. — A moça olhou novamente para a rua. Seu rosto queimava de vergonha.
— Não tenho qualidades "de homem" para a senhorita? — Valentin apoiou o cotovelo no braço da poltrona e tombou a cabeça de lado, de modo que ficou sobre a palma da mão dele.
Achou uma graça quando a mocinha se virou nitidamente sem jeito e começou a falar enquanto tinha o cuidado de não por o olhar no rosto dele. Era tão virginal...
— N-Não. D-Digo... Sim. O senhor tem muitas qualidades de homem, mas eu não observo. — Ela começou a entrelaçar os dedos das mãos. — Não que o senhor não seja digno de ser observado, eu só...
Maria Belinha parou de falar quando o homem se levantou da poltrona e a puxou para longe da janela. Sem dar oportunidade para ela entender a situação, Valentin encostou os lábios nos dela.
Primeiro a moça ficou tensa e depois relaxou nos braços dele.
Ótimo para Valentin que, naquela tarde, em alguns minutos, ensinou Maria Belinha a beijar. E tomou para si o primeiro beijo dela.
Um pouco distante dali, Clementine negociava as peças de tecido da costureira. A mulher era difícil de lidar e gostava de ser mimada, por isso desavergonhadamente a senhorita Desfleurs usou o irmão como moeda de troca. Marcel mimou a velha senhora até que, com olhos brilhantes, ela concordou em fazer a transação.
— Seu coração é como uma estrela, madame. — Marcel agradeceu e beijou as costas da mão da mulher. — Difícil de alcançar, mas quente e brilhante.
A mulher se segurou no balcão para não cair porque as pernas tremiam. Marcel tinha algo de muito hipnótico e ela sentia como se estivesse sozinha com um lobo, a diferença é que gostaria de ser devorada.
— Fico tão feliz que a madame gentilmente cedeu. — Clementine dissimulou. — Pagaremos bem.
E de fato pagaram os olhos da cara pelo material, mas era o que tinham em um lugar tão isolado.
Já do lado de fora do ateliê decidiram se separar, todavia não era possível andar por aí com as peças de tecido.
— Volto com Matilde para a casa, Clementine. — Marcel se dispôs.
— De acordo. Caso não se incomode irei procurar brinquedos novos para Émile. — Clementine abriu a sombrinha para se proteger do sol.
— Incômodo nenhum, menina. — Matilde a tranquilizou. — Não se demore, vou providenciar alguma refeição para nós.
— Bem pensado. — Marcel passou a mão sobre a barriga plana. — Há horas que não comemos.
— Nos vemos em breve. — Clementine se despediu e saiu em direção à loja de presentes.
A loja de presentes era um lugar pequeno com um estoque razoável de mimos, prendas, brinquedos e quinquilharias brilhantes, tudo disposto em prateleiras nas paredes. Na entrada havia uma cortina feita de contas furta-cor que davam a sensação de ingresso em um mundo mágico.
Assim que adentrou o recinto, Clementine sentiu o delicioso cheiro de doces que emanava de uma baleira cheia de pães de mel. No mostruário do balcão havia lindos laços de fita para meninas pequenas usarem no cabelo e com eles bonecas que combinavam, pois tinham laços semelhantes nos cabelos e nas cinturas.
O dono da loja não estava no balcão e não apareceu rápido, mesmo que o sino da entrada tenha soado.
Clementine então olhou para o que interessava: os brinquedos. E apaixonou-se por um soldadinho de chumbo. Os detalhes eram tão bem feitos que dava dó de deixar uma criança destruir aquele trabalho artesanal. Pela estrutura certamente era de corda.
Sem ver a figura que estava no canto escuro junto às prateleiras, a francesa se aproximou do brinquedo e estendeu a mão para pegá-lo, entretanto, teve o membro interceptado por outro que entrou na frente pegou o brinquedo.
Furiosa, Clementine olhou para o lado onde olhos sarcásticos a fitavam.
— O que pensa que está fazendo? — Questionou indignada.
— Comprando um brinquedo. — Ícaro respondeu com um dar de ombros.
— Este brinquedo é meu! — Clementine franziu o cenho.
— Deve estar louca, eu cheguei primeiro. — A voz de Ícaro era tranquila e ele olhava para o soldadinho.
— Francamente, um homenzarrão procurando encrenca por um brinquedinho. Por favor, devolva. — A mulher tentou soar tranquila.
— Francamente, uma mulher crescida procurando encrenca por um brinquedinho. — Ícaro ironizou. — Já disse que é meu, o vi primeiro.
— Mas não pegou! — A francesa saiu do sério.
— Peguei sim, por isso está em minhas mãos e não nas tuas. — Riu debochado.
Clementine estreitou os olhos. Aquele brinquedo seria dela sim, custasse o que custasse.
A mulher puxou o homem pela gola da camisa e sem titubear o beijou. Caprichou no movimento e Ícaro devolveu o beijo. Quando sentiu que a postura dele estava relaxada, Clementine abriu os olhos e tomou o brinquedo da mão do desavisado.
Afastou-se agarrada ao soldadinho e com a expressão repleta de vitória.
Ícaro abriu os olhos completamente desconsertados por se sentir traído.
— Ora sua... Cascavel! — Rosnou para Clementine.
Ela riu de maneira dissoluta.
Ambos então ouviram um limpar de garganta, e quando olharam o dono da loja assistia tudo do balcão. Clementine e Ícaro imediatamente se puseram constrangidos. Pela cara do comerciante ele também vira o beijo.
Logo Clementine consertou a postura e, fingindo normalidade, comprou o soldadinho.
Ícaro logo depois dela comprou uma caixinha de música para a mãe.
O par saiu da loja ao mesmo tempo, mas sem trocar olhares. Ícaro seguiu para a esquerda e Clementine para a direita, mas depois de alguns passos ela voltou ao se lembrar que sua casa ficava no caminho para a esquerda. Sentiu-se estranha, pois por uma boa parte do caminho parecia que seguia Ícaro.
Mirar as costas, e principalmente, os ombros largos, se tornou um suplício. Ao contrário das outras vezes em que o viu, ele estava esmeradamente arrumado e perfumado. Se já era atraente em trajes normais, naqueles feitos para se exibir em sociedade o homem estava realmente belo. Usava até mesmo uma charmosa bengala que ela não vira antes.
Sorrateiros, os pensamentos de Clementine deslizaram para o beijo que ela roubara. Havia algo de realmente estranho neles que fazia as bocas se encaixarem perfeitamente sempre que se tocavam. Se não fosse a força do ódio por ele tentar tomar o soldadinho, ela simplesmente não conseguiria parar o beijo. Clementine suspirou aliviada quando ele virou para a esquerda, já que ela continuaria seguindo na reta e era um conforto não ser mais obrigada a vê-lo.
Não que Ícaro tivesse dobrado à esquina por necessidade. Ele percebeu que Clementine estava logo atrás de si e se sentiu incomodado com a sensação de ter as costas observadas, principalmente porque ainda sentia o coração acelerado pelo beijo que ela roubara.
Clementine Desfleurs era uma megera. Uma terrível feiticeira pela qual estava irremediavelmente apaixonado. Junto a todos aqueles sentimentos tinha a vergonha pela ereção que tivera em plena loja de brinquedos. Esperava que ninguém tivesse percebido.
Logo que saiu do caminho de Clementine encostou-se à parede e com os braços cruzados sobre o peito a viu passar. Majestosa com seu vestido verde.
Ícaro suspirou. Era melhor morar na ilha de Circe que lidar com aquele sentimento, mas não tinha escapatória.
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