28. o herdeiro do inferno.
Poucos filhos de psicopatas aprendem a sobreviver. Muitos fogem e trocam de nome, tentando apagar as cicatrizes que carregam. Outros preferem a morte à angústia de viver com o sangue de alguém cruel correndo em suas veias. Marylin, porém, escolheu a fuga — não apenas física, mas emocional, distanciando-se de tudo que a lembrava do que aconteceu.
O pai de Mary não precisava de um diagnóstico.
Ela sempre soube que ele era um psicopata, embora não tivesse as palavras para explicar. Mas a certeza veio aos sete anos. Naquela noite, escondida atrás da parede, ela viu seus pais brigando na cozinha, as vozes altas e cheias de raiva. Então, como se o tempo parasse por um instante, ela testemunhou o momento em que sua mãe caiu, o sangue escorrendo pelo chão.
O som do corpo caindo ainda ecoava em sua mente anos depois. Seu pai estava parado ali, sem emoção, como se tivesse derrubado um objeto e não uma vida. Mary soube, naquele momento, que ele era um monstro.
E, a partir daquele dia, ela passou a viver uma existência de fuga — não só do homem que a criou, mas de tudo que ele representava dentro dela.
O pai de Marylin, Rideon Bruce, era um homem moldado por traumas sombrios e profundos. Ele odiava a própria mãe, uma mulher que havia abusado dele durante a infância, deixando cicatrizes psicológicas impossíveis de apagar. A violência e o desprezo que ela infligiu nele o marcaram de maneiras que ele mesmo não conseguia compreender completamente.
Diante desse trauma, talvez como uma cruel ironia do destino, Rideon se casou com uma mulher que era, em muitos aspectos, a réplica de sua mãe — uma mulher alcoólatra e violenta.
Esse padrão se repetia em sua vida, como se ele estivesse preso em um ciclo de dor e abusos passados, incapaz de se libertar. Talvez fosse exatamente por isso que ele nutria tanto ódio por Marylin. Sua filha não apenas lembrava a esposa que ele desprezava, mas também, de forma mais profunda e perturbadora, evocava a figura de sua mãe. Para Rideon, Marylin era um espelho do seu próprio tormento, uma constante lembrança do abuso, do ódio e da impotência que ele carregava desde a infância.
O que começou como uma relação de pai e filha rapidamente se deteriorou. Marylin, sem saber, tornou-se o alvo dessa raiva, carregando nas costas o peso de um legado de dor que não era seu.
(...)
Mary ficou imóvel, seus olhos arregalados enquanto observava o homem à sua frente — o pai ensanguentado, uma visão que trazia à tona memórias enterradas. O sangue manchava suas roupas, pingando no chão do altar como uma terrível oferenda. O rosto de Rideon Bruce, desfigurado pelo tempo e pelos horrores do passado, parecia ainda mais sombrio sob a luz fraca das velas da igreja.
—— Pai? —— a palavra escapou dos lábios de Mary como um sussurro quase imperceptível, carregado de incredulidade e terror.
Rideon se aproximou lentamente, a mesma expressão fria que ela conhecia desde a infância. Seus olhos brilhavam de uma forma insana, como se o peso de tudo o que havia feito — e tudo o que ele era — estivesse prestes a explodir naquele momento. Ele levantou a mão, ensanguentada, passando-a lentamente pela própria testa, como se fosse um ritual.
—— É aqui que você se escondeu, Mary? —— Rideon deu um passo à frente, com um sorriso que não combinava com a gravidade da cena. —— Você me disse que não acreditava em Deus.
Mary sentiu o suor frio escorrer por sua nuca. Ela tentou manter a calma, mas a presença do pai trazia de volta todos os seus piores medos. Seus olhos rapidamente procuraram uma saída, mas o altar e os corredores escuros pareciam se fechar ao redor dela.
—— O que você está fazendo aqui? —— Sua voz saiu mais tensa do que ela gostaria.
—— Eu achei que nunca mais veria você. —— Rideon ignorava completamente sua pergunta, mergulhado em sua própria realidade distorcida. —— Achei que estaria com o grande salvador que nos fizemos... —— Ele pausou, os olhos se enchendo de uma loucura que Mary reconhecia bem. —— Mas você o deixou morrer.
O medo pulsava forte, e ela sabia que, com seu pai, não havia raciocínio ou misericórdia. Mas antes que ela pudesse se mover, Rideon explodiu em um grito furioso, a voz reverberando pelas paredes da igreja.
—— Você o deixou morrer! Sua assassina!
O grito cortou o ar como uma lâmina, deixando Mary paralisada por um breve momento. Ela sentiu a acusação em cada sílaba, como se ele a estivesse esfolando viva com palavras.
Rideon a agarrou com força, sua voz grave e perturbada sussurrando em seu ouvido, enquanto ele a puxava para o chão do altar.
—— Está tudo bem, Mary... nós podemos fazer outro. —— A frieza na voz dele era um reflexo do olhar vazio que exibia. Seus dedos se moviam freneticamente, tentando arrancar a roupa de Mary à força.
Ela se debatia, seu corpo tremendo em resistência, mas seus lábios permaneciam selados. Gritar por socorro? Não. Isso era algo que Mary nunca aprendeu. Sua vida havia lhe ensinado que sobreviver era sua única defesa, não esperar ajuda.
Suas mãos, firmes e ágeis, tentavam afastá-lo, empurrando-o com toda a força que ainda lhe restava. Mas Rideon, maior e mais forte, não recuava, sua voz distorcida continuando a sussurrar palavras obscuras:
—— Antes daquele dia virá a apostasia e, então, será revelado o homem do pecado, o filho da perdição. —— Ele citava as escrituras como se estivesse em um sermão, enquanto suas mãos a prendiam.
O horror que atravessava Mary não era apenas pelo ato brutal que ele tentava cometer, mas também pelo peso das palavras que ele proferia. Ele estava falando sobre o Anticristo, sobre um destino do qual ela jamais poderia escapar. A profecia perversa que ele acreditava estar cumprindo com sua violência.
Mary, com o coração disparado, viu a faca ensanguentada ao lado do cordeiro morto. Em um ato rápido e desesperado, suas mãos, antes trêmulas, agarraram o cabo frio da lâmina. O tempo parecia desacelerar enquanto ela se aproximava de Rideon, ainda recuperando o equilíbrio após o empurrão.
Num movimento seco e decidido, Mary enfiou a faca diretamente na garganta dele. O sangue jorrou imediatamente, quente e viscoso, manchando seu rosto e roupas. Rideon tentou falar, mas tudo o que saía de sua boca era um gorgolejar sufocado pelo sangue. Mary o empurrou com força em direção ao altar, seu corpo caindo sobre as velas acesas, derrubando-as no chão.
As chamas se espalharam rapidamente, consumindo o tecido branco que cobria o altar.
Ela ficou parada por um momento, o rosto coberto de sangue, observando as chamas começarem a devorar tudo ao redor. As velas queimando, o cheiro de carne queimada se misturando com o incenso sagrado do altar, criando uma atmosfera quase irônica diante do cenário macabro. Seu pai, estava morto.
O monstro que a perseguiu por toda a vida agora estava caído diante dela.
Mary, coberta de sangue e com o olhar vazio, saiu pelas portas do convento em chamas. As labaredas intensas consumiam rapidamente a antiga construção, lançando ao céu nuvens de fumaça espessa e brilhando como uma sentença de destruição inevitável. Gritos ecoavam ao redor, moradores desesperados chamando por socorro, correndo na tentativa de apagar o fogo. A dor e o caos reinavam, mas Mary, no meio de tudo, permanecia inerte, observando o incêndio como se aquilo fosse a manifestação física do que sentia por dentro.
Um carro freou bruscamente na estrada. Lois desceu às pressas, com o rosto cheio de horror, acompanhada de dois policiais. Seus olhos se fixaram imediatamente em Mary, parada no meio da rua, ensanguentada e coberta pelas sombras do fogo. Lois tentou dizer algo, mas parecia incapaz de encontrar as palavras certas.
Do outro lado da estrada, Charlie também estava lá, imóvel, seus olhos intensos observando a cena à distância.
Ele olhava para Mary de uma maneira que misturava fascínio e terror. Entre a fumaça e o brilho alaranjado do fogo, Charlie parecia mais um espectador do que alguém capaz de agir. Ele não disse nada, mas o olhar entre eles carregava um peso impossível de ignorar.
Mary, ainda sem reação, encarava o caos à sua volta.
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