26. testemunhas do apocalipse.
Mary estava exausta. O peso da insônia a acompanhava há dias, e o trabalho voluntário no orfanato era sua única fuga. O convento parecia sufocante, com as sombras de seus medos se escondendo em cada esquina, e a ideia de encarar Charlie ou ver aquele homem misterioso novamente a atormentava.
Ela permanecia de pé, olhando para as crianças sujas correndo de um lado para o outro, seus rostos iluminados pelo breve alívio proporcionado pelos brinquedos velhos e maltrapilhos. O caos infantil parecia alheio ao mundo sombrio que habitava na mente de Mary. Ela observava em silêncio, perdida em seus próprios pensamentos, até sentir uma dor aguda no pé.
Até uma das crianças pisar em seu pé. Sem pensar, ela se abaixou rapidamente, agarrando o ombro do menino com força, os olhos ardendo de irritação.
—— Você é um animal idiota? —— ela rosnou, sacudindo o garoto com impaciência. —— Não consegue ver onde está correndo? Quer se machucar?
O garoto ficou imóvel, os olhos arregalados e cheios de medo, incapaz de responder. A raiva de Mary borbulhava sob sua pele, pronta para explodir, mas antes que pudesse continuar, um dos diretores do orfanato passou perto.
Instantaneamente, Mary mudou de postura, sua expressão suavizando-se de uma forma quase teatral. Ela soltou o garoto, agora falando em um tom gentil e preocupado.
—— Cuidado ao correr assim, querido —— ela disse, colocando uma mão suave no ombro da criança. —— Você pode se machucar.
O diretor passou, aparentemente satisfeito com sua demonstração de preocupação. Mary voltou a ficar de pé, mas o desconforto e a raiva ainda latejavam sob sua fachada calma.
Mary caminhou até um corredor vazio, os sons abafados das crianças e do movimento no orfanato desaparecendo à medida que ela se afastava. Seu coração batia pesado, não apenas pelo cansaço, mas pelo constante peso que carregava. Ela precisava de um momento sozinha, um alívio imediato para o caos interno que a consumia.
Com um cigarro escondido entre os dedos, ela o acendeu, inalando profundamente a fumaça e sentindo a leve queimação em seus pulmões. O gosto amargo a trouxe uma momentânea sensação de controle, um breve respiro em meio à sua confusão.
Enquanto a fumaça se dissipava ao seu redor, seus olhos foram atraídos por uma sombra no fim do corredor. Ela franziu a testa, tentando distinguir quem ou o que poderia estar ali, mas a penumbra impedia qualquer identificação clara. Seu coração acelerou. Pensando que era o diretor, ela rapidamente apagou o cigarro, esmagando-o no chão e escondendo-o atrás de uma planta próxima.
—— Senhor? —— chamou, sua voz hesitante, com a intenção de se adiantar a uma possível bronca.
Mas não houve resposta.
Foi então que as luzes começaram a se apagar, uma a uma, vindo em sua direção. O silêncio no corredor aumentou, criando uma tensão quase insuportável. As luzes iam apagando-se em uma sequência aterrorizante, cada uma mais perto dela, mergulhando o corredor numa escuridão crescente.
Mary recuou, o pânico tomando conta. Seu coração disparou no peito, e suas mãos tremiam. A última luz, logo acima de sua cabeça, piscou por um momento antes de apagar completamente, deixando-a mergulhada na escuridão.
Desesperada, ela soltou um grito estridente, ecoando pelo corredor, sua voz rompeu o silêncio, cheia de pavor.
Irmãs que estavam por perto, alarmadas pelo som, correram ao encontro dela, preocupadas e ansiosas. Quando chegaram, encontraram Mary parada no meio do corredor escuro, seus olhos arregalados e o peito subindo e descendo em respirações rápidas.
—— O que houve, irmã Mary? —— uma delas perguntou, tentando entender o que causara tanto medo.
—— Ele estava aqui!
—— Ele quem?
Mary, ainda sem fôlego, apenas olhou ao redor, confusa e assustada, como se ainda sentisse a presença daquela sombra observando-a.
(...)
Mary estava na biblioteca do convento, o ambiente silencioso apenas intensificava sua inquietação. Seus olhos percorriam a parede de investigação que Megan havia deixado para trás, um mosaico de manchetes, fotos e anotações. Todos aqueles homicídios horríveis... Prostitutas e moradores de rua sendo brutalmente assassinados. Mary sentia o peso das mortes em cada recorte, em cada fio de barbante conectando uma vítima à outra.
O som de passos suaves a alertou, e então, a voz familiar de Charlie cortou o silêncio.
—— O que está fazendo? —— ele perguntou, sua voz baixa e controlada.
Mary não se virou de imediato. Continuou encarando os rostos nas fotos, as vidas que foram apagadas sem piedade.
—— Essas pessoas que morreram... —— começou Mary, sua voz tensa. —— Eram todas prostitutas ou moradores de rua. Por que fazer isso com pessoas que já estão sofrendo?
Charlie deu um passo à frente, sua presença ameaçadora enchendo o espaço.
—— Ele tirou o sofrimento delas —— respondeu, com uma calma perturbadora.
Mary finalmente se virou para ele, seus olhos cheios de indignação. Ela não conseguia acreditar no que acabara de ouvir.
—— Como você pode dizer isso? —— ela disparou. —— Pessoas foram mutiladas e deixadas como lixo, como se não fossem nada.
A tensão no ar era palpável, as palavras dela ricocheteando na sala silenciosa. Charlie, em vez de responder, ignorou o peso do que ela dizia. Ele avançou lentamente, seus olhos fixos nos dela, até colocar as mãos sobre seus ombros, apertando com uma força que não combinava com o tom calmo que ele usara.
Mary se afastou abruptamente, sacudindo os ombros para se livrar do toque dele. Havia algo de errado, algo escuro crescendo entre eles, e ela sentia isso profundamente.
Charlie a observava com uma intensidade perturbadora.
—— Você confia em mim, Mary?
Ela sentiu o peso da pergunta no ar. A desconfiança estava sempre presente entre eles, e ela sabia disso. Olhando nos olhos dele, Mary respondeu com frieza.
—— Você nunca confiou em mim.
Aquela afirmação ficou no ar, carregada de uma verdade que Charlie não podia negar. Mas, ao invés de se defender, ele inclinou a cabeça levemente para o lado, um sorriso sombrio se formando em seus lábios.
—— Eu faria tudo por você... —— ele disse, com uma voz quase hipnótica. —— Qualquer coisa.
Havia algo na maneira como ele falou, algo sinistro, que fez um calafrio percorrer a espinha de Mary. O "qualquer coisa" soava menos como uma promessa de amor e mais como uma ameaça velada, uma obsessão que estava além do controle de ambos.
Ela não respondeu de imediato, mas seus olhos se estreitaram levemente, captando o subtexto daquela declaração.
Era como se ela estivesse diante de uma escolha—ou de uma cilada.
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