59 - Necrotério
A consciência do meu entorno regressou ao meu corpo, acertando a minha alma na queda. A maca coberta. Não tive coragem de me virar. A salva de tiros que eu ouvia sendo disparada dentro do peito no lugar das batidas do meu coração parecia pecaminosamente alta. Mesmo por baixo do lençol... eu sabia que o corpo transportado sobre a maca era o corpo dela.
Eu me virei no corredor, tremendo e suando. A maca tinha desaparecido para dentro de uma sala e a porta acabava de se fechar. Eu a encontrei afinal. Os meus pés haviam me levado até ela de forma inconsciente. Ela não está respirando. Os meus músculos começaram a se mexer novamente e eu li o nome escrito sobre a porta antes de girar a maçaneta e entrar.
Necrotério.
A porta daquela sala opressora e macabra se abriu. O homem trajado de branco que manejava a maca me olhou assustado e aborrecido.
— Ei, você não pode entrar aqui! É inacreditável. A segurança desse lugar está ficando cada vez pior!
— Sai de perto dela. — saiu baixo e profundo.
— Eu disse que o senhor tem que sair! — ele colocou a mão sobre o ventre da moça.
A fúria em ardor me despertou por completo.
— Saia de perto dela! — um terremoto. O ambiente todo tremeu, o homem se desequilibrou e as luzes do teto piscaram em frenesi num jorro repentino de eletricidade estática.
Eu nunca me senti assim. Eu era apenas um emaranhado de energia em ebulição. Um ódio doentio e escuro turvou a imagem do ambiente que se desbotou, assumindo uma escala sem graça em tons desgastados de cinza. Todas as cores morreram.
Me movi involuntariamente até à borda daquele leito, os dedos alcançando a ponta do tecido. Quando destampei o lençol um rosto muito magro e branco apareceu para mim de olhos fechados com olheiras negras e profundas. O cabelo preto muito opaco e ralo. Manchas horríveis ao longo do pescoço, braços e pernas.
— Eu pedi para você esperar, carissimi. — o meu espírito se uniu ao dela.— E agora o que eu faço?
E AGORA O QUE EU FAÇO? O que eu faço? O que eu faço? O que eu faço? Preciso que ela esteja respirando. Preciso que ela esteja respirando. Preciso que ela esteja respirando para a magia funcionar. Preciso que ela esteja respirando. O que eu vou fazer? O que eu vou fazer? O que eu vou fazer? Preciso que ela esteja respirando.
Peguei a moça fria no colo. A leveza e mobilidade da vida substituídas pela dureza e rigidez da morte. Alma está morta. A minha Alma está morta. Eu consegui o que ela precisava, mas ela não me esperou voltar para casa.
Eu preciso que ela esteja respirando. Eles têm aqueles aparelhos que respiram pelas pessoas aqui! Preciso colocar um deles nela!
Me voltei num rompante para a saída, mas antes de sair porta afora só ouvi as palavras do final da frase que me aterrorizaram:
— ... é para estudo!
Estudo?! Ele disse... estudo?! Eles pretendiam estudar o corpo da Alma?! Como é que os pais dela autorizaram uma coisa assim?
O homem de jaleco pretendia me impedir de sair. A minha marca queimou nas costas, ele se deteve e arfou olhando para algo que crescia atrás de mim. Não é todo dia que se vê em alguém o nascimento de um par de asas. Talvez se elas fossem feitas de penas brancas me deixassem com uma aparência menos hostil. Talvez assim ele me confundisse com um anjo. Mas elas não eram.
O homem começou a gritar e a se afastar de mim, me mandando ficar longe dele. Com todo o prazer! O enfermeiro tropeçou e caiu, batendo a cabeça no chão.
A porta se fechou atrás de mim quando saí. Elisa e Natan corriam em minha direção pelo corredor.
— Você é maluco! O que está... — Elisa travou e congelou no meio da frase olhando com olhos arregalados o que eu trazia comigo nos braços.
— Ela não está respirando. — falei. — Preciso que ela respire.
O choque da loura passou, dando velozmente lugar à razão em virtude da urgência.
— A gente precisa ir. Rápido! — falou. — Não temos muito tempo até eles nos encontrarem.
— Guarde essas asas, Gael. — Natan falou seguindo à minha frente ao lado de Elisa. — Só vai piorar a confusão exibindo-as por aí.
— Eu não ligo! — rebati. Não estava nem um pouco preocupado ou interessado no bem estar emocional daquela gente.
— Liga se o resultado for ela continuar morta! — Natan me olhou de cara feia por cima do ombro. — Você conhece essa gente. Atiram primeiro e perguntam depois.
É verdade. Aquele povo adorava uma caçada às bruxas. E naquele momento específico, esse rótulo me caberia bem. Fiz como Natan me instruía e os meus apêndices voltaram a ser meramente bordados esculpidos sob a pele. Saímos em um corredor com certo grau de desordem. Imediatamente fomos identificados.
Elisa e Natan conseguiram forçar um médico a entrar em um quarto vazio cheio de aparelhagens. Alma foi colocada sobre o leito e a porta do lugar foi trancada. Natan arrastou um móvel e bloqueou a passagem. As pessoas se aglomeravam do lado de fora em caos. O médico refém, assustado com toda aquela situação e tremendo ligeiramente, obedeceu às ordens e foi bastante ágil nos afazeres que lhe tinham sido incumbidos. O homem rapidamente intubou a moça e ligou aquele emaranhado horrível de fiações ao corpo dela.
Enquanto a balburdia crescia lá fora e a ansiedade ali dentro, peguei o alforje com a cura que trazia comigo. Conectei a abertura do recipiente ao tubo que lhe percorria a garganta até os pulmões. Fazendo um movimento de ventilação mecânica, comecei a bombear o elixir para dentro do corpo dela.
A polícia já estava lá fora. Seriamos todos presos. Roubamos um corpo, invadimos um hospital, espalhamos a desordem e o caos. Tinha uma pessoa sequestrada conosco dentro do quarto, um funcionário que estava sendo impedido de salvar vidas para prestar atendimento a um defunto. O médico de meia idade, assim como o restante do hospital inteiro, deveria nos considerar completamente lunáticos.
Por favor, Alma, por favor! A linha contínua do coração dela continuava ininterrupta no monitor do aparelho enquanto eu bombeava o elixir para dentro dela. O aspecto do corpo da jovem guardiã não havia mudado nada. Nada de cor na pele, nada de cabelos viçosos, nada de calor no corpo. Por favor, carissimi, você tem que conseguir. Por favor!
A porta estava sendo arrombada. Natan e Elisa não conseguiriam impedir a entrada das pessoas por muito mais tempo. Vamos lá, Alma, você é mais guerreira do que isso, você consegue! O meu punho continuava bombeando o ar para dentro dela, mas a vida não estava seguindo o mesmo fluxo.
Talvez a mágica daquele sopro não fosse tão longe, talvez não pudesse trazê-la de volta dos mortos, talvez só pudesse curá-la se ela já estivesse ali. Eu não sabia o que fazer. Completamente perdido e destruído, aquela era a minha última cartada, não havia mais nada que pudesse ser feito.
O som agudo e estridente no aparelho indicando a falta de um pulso era profano. A polícia conseguiu forçar a passagem e entrar. O meu corpo foi arrancado do lado dela, o alforje se libertou e caiu no chão, inanimado como a morte. Eu estava adormecido e anestesiado. Não sentia e não ouvia nada. Mantive os olhos no rosto dela o máximo de tempo que consegui, até minha visão ser obstruída por uma farda policial. Não lutei. Não resisti. Não tinha nenhum tipo de força dentro de mim. Não tinha nada dentro de mim. Eu a perdi. Eu a perdi para sempre. Cheguei tarde demais. Alma está morta.
Os meus braços foram torcidos para trás com violência e o metal da algema mordeu o meu pulso. O coração cantou.
Bip.
Estrondoso e explosivo. Foi o som mais alto de todo o universo. O som passou por cima de toda a confusão e me deu um tapa na cara. Não sei como as outras pessoas não ouviram também.
— O coração! — gritei para ninguém em especial e para todo mundo ao mesmo tempo. O outro punho se recusou a ser amordaçado quando o meu corpo se forçava para cima. — O coração dela está batendo!
O peso e o excesso de mãos em cima de mim me atordoavam e, no entanto, eu tinha um foco e uma direção. Consegui me levantar, a polícia ainda me segurava com firmeza, tentando me algemar. O monitor ligado ainda mostrava uma linha reta.
Não. Eu não ouvi coisas. Sem pulsação. Sem sinais vitais.
Por favor! Eu juro que ouvi o coração dela bater segundos atrás! A linha seguia seu fluxo ininterrupto. Reta. Um horizonte sem ondulações. Não, por favor, não. Os meus joelhos fraquejaram outra vez e quando eles bateram no chão...
Bip... bip... bip.
Depois disso veio o silêncio. O tumulto cessando, o caos se organizando. A ausência de movimentos se instalando. As pessoas em choque vendo um defunto respirar.
— O que está acontecendo aqui?! — nunca vi olhos tão arregalados quanto os do médico olhando para o corpo deitado na maca. — Uma equipe! Preciso de uma equipe aqui agora! — ele gritou para a direção da porta.
Aproveitei o momento das pessoas entrando e a desatenção dos policiais e me soltei. Uma algema ainda pendurada em um pulso. O tubo foi removido da garganta dela. Os hematomas se desfazendo, a cor natural voltando com a vida bem diante dos meus olhos. Um gemido baixo e as pestanas negras tremeram suavemente. Ela abriu os olhos.
Num movimento reflexivo me lancei sobre o leito. Senti o calor do corpo dela aquecendo o meu peito. A morena arfou com a força do abraço. Segurei o rosto corado e surpreso entre as mãos e colei a minha boca na dela.
— Você voltou pra mim, carissimi. — a escuridão de uma noite estrelada olhou dentro de mim.
Depois a bagunça se restabeleceu e eu voltei a ser arrancado de perto dela. Dessa vez conseguiram me algemar. Não tem problema. Saí do quarto escoltado pela polícia com uma felicidade extasiante e inebriante, possessiva. O sorriso era tão largo quanto o cheiro que inundava as minhas narinas com intensidade: o cheiro de magia e fantasia, o cheiro delicado e doce daquela flor lavada na chuva. O cheiro da pele dela. Viva. Restaurada. Inteira. Intacta.
Esse foi tenso! Ufa!
Ouço respiros aliviados para o grande final? Então vamos.
Postei e fugi!
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