46 - Poeira e sangue
A confusão já tinha começado. A minha mão direita puxou o cabo da arma e a minha esquerda agarrou uma nuca. A lâmina entrou fundo no ventre. Cortei as amarras que trançavam a minha gaiola e fiquei livre. Os meus pés acima do solo, subindo. Elisa acabara de receber uma adaga das mãos, agora já livres, de Natan. O rebuliço era grande lá em baixo. A alegria do festejo se foi. A comida estava escapando das jaulas.
— Que sorte a sua eu ter descido primeiro, não é garoto? — falei abrindo a rede de Ramon. Ele me devolveu um sorriso amarelo com mistura de alívio e adrenalina. — Solte os outros. Todos. — disse abandonando-o no chão com um punhal.
Encontrei os olhos de Natan, quando voltei a tirar os pés do chão.
— Precisamos recuperar a nossa chave. — falei.
— O líder. — ele respondeu.
Nós dois assentimos ao mesmo tempo. Não precisamos de palavras para saber o que o outro sugeria como próximo passo.
Passei voando e procurando. Algumas pessoas corriam e gritavam desbaratadas, mas a maioria empunhava lanças afiadas em nossa direção com gritos de guerra. Pelo visto eles não estão dispostos a nos reverenciar como criaturas divinas e aladas.
Um dardo passou zunindo pelo meu ouvido esquerdo. Elisa acaba de derrubar um grupo de quatro integrantes. Duas lanças roubadas são lançadas na minha direção e eu seguro uma em cada mão.
— Onde você está? Todo enfeitado para a festa e agora se escondendo? Vamos lá. Apareça.
O homem com coroa de ossada humana não estava visível em lugar algum. Terei de procurar nas cabanas.
Desci no meio da bagunça e uma lança quase me entalou na parede. O passante desavisado não teve a mesma sorte. Um golpe voraz do qual me esquivei por um triz arrancou uma arma da minha mão. Tombei a minha lança restante como um bastão e o usei contra os dois que me atacavam pela direita. Acertei o primeiro na cabeça que se desequilibrou sobre o seu companheiro.
Um cantado de metal zuniu sobre minha cabeça e eu me encolhi. Essa espada é minha! A arma é brandida outra vez contra mim e eu uso a lança como escudo. A madeira se dividiu em duas e caiu, a metade que sobrou na minha mão não tem a ponta cortante. O cabo da lança atingiu o meu oponente no nariz, forçando a cabeça para trás e um grito de dor para fora. Um chute na boca do estômago completou o serviço e ele largou a espada, caindo segurando o nariz quebrado e ensanguentado entre as mãos. Recuperei a minha arma do chão com um sorriso.
— Senti saudade, amor!
Virei-me num rompante atingindo a lateral do canibal que me atacava por trás. O sangue espirrou. O metal cortou para a direita e os outros se afastaram. De olhos arregalados, já não pareciam mais com tanta vontade de lutar.
— Encontrei! — Natan saiu de dentro de uma das cabanas feitas de barro e telhado de palha, arrastando o líder do bando consigo.
O que aconteceu com os bravos e heroicos líderes de antigamente que fizeram história? Não deixaram nenhum descendente? Pelos vistos não. Por que agora os comandantes sempre preferem se esconder e mandar o povo lutar? Se quer ter a glória de ostentar uma coroa, deveria ter a coragem de empunhar uma arma! Ao menos assim teria a dignidade de usar o chapéu pomposo com honra.
O canibal mais perto de mim ofegou e ficou furioso cuspindo insultos e ameaças muito longe da minha língua. Parece que ele reconsiderou sobre a briga. É uma pena. Ele investiu contra mim com uma faca. Uma faca contra uma espada?! Não é muito justo. O canto do metal rangendo contra metal fez a faca dele se soltar com um rodopio para longe de nós. Vi o cano do dardo venenoso um segundo antes de lhe tocar os lábios. A mão segurando o objeto caiu aos meus pés. Um berro agudo de dor e desespero o fez se esquecer de mim. Ainda bem.
Soltei a arma com o tranquilizante dos dedos que a envolvia e a coloquei no bolso enquanto o homem caía de joelhos segurando o membro ferido. Olhei os outros três que sobraram. Eles decidiram se afastar e me deixar em paz. Um deles olhou para trás enquanto corria e soprou um dardo em minha direção. Eu me abaixei e peguei uma lança esquecida no chão. A ponta da arma lhe atingiu a panturrilha, atravessando até o outro lado e ele caiu gritando no chão.
Voltei-me para onde o meu grupo estava. Natan estava com o líder sob custódia. Elisa tinha arrebanhado os rebeldes para um aglomerado ao lado. Um espasmo de dor e terror me percorreu a espinha com a visão dessa imagem. Uma lembrança do ano passado.
— Elisa. — chamei. — Deixe-me cuidar disso.
— Por quê? — ela fez uma careta quando eu já estava parando ao lado dela.
— Porque sim. Vai lá buscar algumas daquelas redes para mim. Vamos colocá-los lá dentro.
— E por que você mesmo...
— Elisa! Por favor. Agora não é hora. — olhei dentro daqueles lindos olhos escuros que quase me abandonaram no passado em uma situação parecida.
— Tá bom. — ela foi ainda fazendo cara feia.
Peguei o dardo envenenado de dentro do meu bolso e mostrei àquelas pessoas assustadas, acuadas e enraivecidas que me encaravam. Mandei que jogassem os deles no chão, mostrando claramente através de sinais o que eu queria. Eles entenderam, mas só caíram dois do grupo de doze. Pelas minhas contas — odeio matemática! —ainda faltavam dez. Segurei o canibal que estava mais perto de mim pelos colares do pescoço e dei-lhe uma cabeçada. A pancada tem um efeito muito pior se você estiver despreparado. Ele ficou zonzo e caiu gemendo com a mão na testa.
— Não estou com muita paciência hoje. Então... — falei.
Eles podem não entender a língua das palavras, mas a linguagem da violência é universal. Todos nós sabemos interpretar. Os que estavam faltando rolaram finalmente para o chão. Assim está bem melhor. Elisa voltou arrastando as redes atrás dela e nós os amarramos sentados no chão, com as mãos coladas ao corpo. Pronto. Agora sim poderíamos dar atenção ao que precisávamos.
O lugar estava um caos. Olhei em volta. Tinha corpos mortos e feridos espalhados pelo chão seco de terra. Sangue e poeira. As cabanas estavam todas com as portas e janelas fechadas. As pessoas se escondendo lá dentro, com medo de nós. O chefe não perdeu a postura elegante e arrogante. Onde estava essa postura na hora de defender o seu povo? Acovardada dentro de um quadrado de barro e palha.
A adaga curva que ele usara no ritual de sacrifício estava em posse das mãos de Natan.
— Ele não fala nada. Não sei como fazê-lo entender. — o caçador falou.
Eu olhei o homem todo pintado. Os olhos dele não expressavam falta de entendimento.
— O colar. — falei mostrando com gestos o objeto que eu trazia ao pescoço quando fui capturado.
Tudo tinha sido tirado de nós, inclusive a última chave restante que nos levaria de volta para casa. De que adiantaria conseguir o remédio de Alma se não pudesse levá-lo até ela? Se não recuperássemos o cristal de energia não havia motivo para seguir adiante. Ficaríamos trancados ali para sempre.
Tentei de novo. Desenhei o mesmo colar no meu peito várias vezes. O homem baixo com o rosto pintado de branco e tatuagens coloridas desenhadas sobre a pele exposta dos braços e pernas, acompanhou os movimentos que eu fazia e depois olhou fundo nos meus olhos. Vi o sorriso começando a nascer no rosto dele ao mesmo tempo em que a fúria queimava como veneno nas minhas veias.
Ele cuspiu na minha cara.
O homem riu abertamente em gargalhadas depois disso. Limpei a saliva do meu rosto com calma e tranquilidade. O canibal engasgava de tanto rir. A sombra fria me engoliu e arrastou atrás de si, com dedos longos e afiados, um esboço de sorriso que se estampou no meu rosto. Você gosta de jogos. Eu também.
— Vamos brincar um pouquinho. — falei.
As minhas mãos agarraram os seus pulsos e os nossos pés se descolaram do chão. Voar podia ser uma experiência maravilhosa, libertadora e magnífica, mas também podia proporcionar alguns pesadelos se o piloto fosse desajeitado ou inexperiente.
Subindo com velocidade e ignorância, em um movimento basicamente vertical, as coisas rapidamente começaram a entrar em escala diminuta abaixo de nossos pés. O vento acoitava e rugia enquanto subíamos. O homem seguro apenas pelos pulsos olhava para baixo e gritava. Qual o problema? Não está mais achando graça?
— Agora vamos começar a nos divertir. — abri as mãos e ele caiu de uma altura considerável.
Retiro o que eu disse antes. Na subida ele não estava gritando, agora ele estava gritando. Se debatendo e esperneando em queda livre o homem estava apavorado. Eu mergulhei na liberdade do ar e o peguei por um dos tornozelos. De ponta-cabeça, ele voltou a subir comigo. Os gritos diminuíram. Para cima em direção ao céu. Agora outra vez para baixo, no fluxo da gravidade.
Eu me diverti bastante! Repetimos várias vezes esse exercício até o canibal estar implorando e resmungando, tremendo sem parar. Mas que pena que o meu novo amigo não estava gostando da minha companhia!
— Não é por sua culpa que vou perdê-la.
Infelizmente para ele, o homem só me seria útil se me dissesse o que eu queria saber, então... Eu o segurei pelo pescoço até os seus olhos estarem à altura dos meus, e ele soube, sem que eu dissesse uma palavra, que dessa vez eu não o pegaria. Não seria por culpa dele que a minha carissimi morreria sem a cura naquele hospital.
Os meus dedos aliviavam a pressão e o meu braço ficou livre do peso.
Ele caiu.
Como uma pedra pesada.
Uiiiii, Gael tá bravo. Adoroooo! kkkkkkkk
Mas mesmo assim tem um coração de ouro, todo preocupado com a nossa Elisa que foi ferida anteriormente e fez todo mundo passar aperto. Lindo, cuidando da irmãzinha <3
Se gostou deixa uma estrelinha pra mim. Bjos!
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