38 - Três mundos
Elisa tinha resolvido erguer o garoto e segurá-lo pela cintura depois de ver que ele estava mesmo ficando verde. Nós pousamos numa região mais aberta, a luz do sol entrava largamente pela cobertura verde. Mesmo sendo ao ar livre, ninguém mais queria ficar enclausurado, mesmo que fosse pela vegetação densa da selva. Quanto mais céu aberto pudéssemos ver acima de nossas cabeças melhor.
— Já pode me soltar, Ramon. — Elisa falou olhando o rapaz.
O garoto continuava com os braços enlaçados no pescoço dela, se aninhando contra o seu corpo.
— Tem certeza? — ele respondeu com uma careta.
— Os seus pés já estão no chão. — ela apontou.
— É eu sei, mas... e se tiver algum animal selvagem por aqui, e precisarmos fazer uma saída de emergência?
Elisa olhou para ele de cara feia.
— Eu posso garantir que se não tirar essas suas mãos de mim vai mesmo aparecer um animal selvagem por aqui. Sai! — e abriu o sorriso mais hipócrita que eu já tive o prazer de ver!
Ele foi inteligente e se soltou dela, mas não se afastou muito. Ela ia pisando duro e limpando a roupa enquanto ele ia seguindo-a com o olhar.
Paramos e nos sentamos um pouco, apreciando o sossego e o relaxamento do ambiente tranquilo. O chilrear dos passarinhos enchia a brisa fresca e leve. O ar puro da mata me fazia lembrar de casa. Se eu fechasse os olhos, podia me sentir lá. Uma saudade estranha me atingiu. Sentia falta de estar em um lugar assim e nem sabia disso.
— Primeiro desafio cumprido. Atravessamos o templo e entramos na selva de Shambala. O que vem agora, mesmo? — Natan questionou.
— Agora seguimos para o norte, até encontrarmos a entrada para o poço das almas. — Selva declarou. — Subindo o caminho do rio, na direção contrária à correnteza até chegarmos à cachoeira. Passando pelas árvores que choram, vamos encontrá-la logo em seguida.
— Não gosto desses nomes. — o caçador declarou.
— Ufa! Ainda bem! — Ramon suspirou e declarou com um sorriso enorme. — Estou bem mais aliviado agora! Achei que fosse só eu.
Poço das almas. Que raio de lugar será esse? Espero realmente que o nome não esteja sendo literal!
Nós seguimos viagem pelo ar. Avistamos o leito do rio com facilidade e subimos na direção indicada. Adiantamos caminho pelo céu até vislumbrarmos a cascata de água que descia pela parede rochosa. Paramos na margem e observamos o nosso entorno.
— Aí está a cachoeira. Agora faltam as árvores que choram. — Elisa declarou. — Não estou vendo nenhuma.
— Como são exatamente essas árvores? — Natan perguntou.
— Eu não sei. — Selva respondeu. — A única coisa que eu sei é o nome delas.
— Ótimo! — Elisa desdenhou. — Isso ajuda muito.
Selva deu uma olhada torta e mal encarada para a loira que sequer prestou atenção. As duas nunca foram grandes amigas, mas preciso admitir que sempre foi Elisa a mais encrenqueira. Ela gostava de cutucar.
— Tudo bem. — falei. — Árvores que choram. — comecei a dar voz aos meus pensamentos. — O que são? — a floresta parecia completamente normal. — Troncos com feições? Olhos vertendo lágrimas? O que são árvores que choram?
Ao nosso redor o que se destacava era a beleza da água que escorria pela face rochosa da parede natural que a sustentava formando a queda d'água. O som de água corrente era relaxante e tranquilizador. Às margens do rio a floresta crescia saudável e reverdeceste.
— Talvez exista mais de uma cachoeira. — Ramon acrescentou. — Ou talvez estejamos no rio errado.
Não gostei das opções do aprendiz. Não gosto nada da ideia de ficar vagueando a procura de coisas que eu nem sei o que estou procurando. Lá de cima não vimos nenhum outro curso de água, então só podia ser aquele rio ali mesmo.
— Mas nós seguimos na direção certa. E foi esse o rio que encontramos rumando ao norte. — Selva declarou. — Acho que estamos no caminho certo. Eu realmente espero que estejamos no caminho certo!
— Vamos começar a vasculhar a área então. — Natan declarou. — Ver se encontramos alguma coisa diferente.
— Vamos nos dividir? — Elisa propôs. — Cobrimos o terreno mais rápido. Um grupo para cada margem, talvez?
Eles começaram a discutir a logística da divisão dos grupos. Um brilho chamou a minha atenção. Do outro lado da margem, a floresta era igualzinha à nossa. A luz do sol que entrava pela folhagem das copas viçosas, refletiu no tronco de uma árvore.
— Não vai ser preciso. — falei. — Estamos na margem errada.
Eles pararam de falar e prestaram atenção ao novo foco de observação.
— Como você sabe? — Selva perguntou.
— O chão. É diferente do nosso. Do outro lado está mais molhado porque lá...
— As árvores choram. — Elisa completou. — É verdade. O chão é meio lamacento lá.
Nós cruzamos o leito e pousamos na noutra margem. O barro úmido e viscoso carimbava no chão as nossas pegadas. Sobre os troncos rugosos das árvores havia uma leve camada de água, deixando a superfície refletir a luz do sol.
Seguimos adentrando a área, cada vez mais longe da cachoeira. Algumas gotas pingavam sobre nós da folhagem acima, realmente parecendo que elas choravam. Um pingo caiu na minha têmpora e deslizou pelo meu rosto. O gosto me surpreendeu. Era salgado. Uma lágrima sincera. Eu olhei em volta. Uma floresta com vegetação sem nada de diferente ou extraordinário, com a única exceção de que ela chorava de verdade.
Questionei-me se aquele choro era físico ou emocional. Uma manifestação apenas física como a própria seiva que lhes corria por dentro, ou produzido por sentimentos que não era esperado de se encontrar em um vegetal? Talvez se eu tivesse tempo para parar e perguntar, aquelas árvores me contassem uma história que também me fizesse chorar. Foi com esses pensamentos me distraindo que eu não notei a estátua perdida no meio daquele lugar de lágrimas.
— Será que tem alguma coisa a ver com o que estamos procurando? — Elisa perguntou com o grupo parando para analisar a obra.
— É a trilogia inca. — Selva declarou.
A estátua, esculpida em pedra polida, com arabescos desenhados a ouro, era um pouco maior do que eu. Na base, uma serpente enrolada sobre o próprio corpo, com o pescoço subindo ereto e a face olhando para nós. Sobre sua cabeça, um puma rugindo de forma ameaçadora. E por último, ocupando o todo da escultura minuciosamente bem entalhada, um condor pousado com suas duas asas abertas.
— Esses são os guardiões dos três níveis espirituais segundo a crença inca. Correto, mestra? — Ramon perguntou.
— Correto. — a filha da lua confirmou. — Os incas usavam três animais sagrados para representar a divisão dos três mundos, ou Pachas, como eles costumavam chamar. Hana Pacha — ela se aproximou do condor —, representa o mundo de cima, o mundo dos deuses, ou o próprio futuro. Kay Pacha — ela apontou o puma —, representa o mundo dos homens, a força da terra, o mundo atual, o presente. E por fim, Uku Pacha, — a serpente —, representa o mundo subterrâneo, o mundo dos mortos, o passado. Segundo a lenda, quando alguém morria, seu espírito descia até Uku Pacha, se a pessoa tivesse sido boa em vida, o puma desceria até lá para buscá-lo e entregá-lo ao condor, que ascenderia o espírito resgatado até Hana Pacha.
— Uma vez que estamos procurando a entrada para o poço das almas... — olhei a face da serpente na base da estátua.
— Exatamente. — Selva declarou. — Estamos falando de Amaru, a serpente gigante que simboliza a inteligência humana e o infinito.
— Serpente gigante? — Natan olhou com uma cara feia. — Gostei mais do condor. Achei mais simpático.
— Não se preocupe. — a ruiva consolou. — Não é real. É apenas um simbolismo, uma figura de linguagem.
— Então espero que poço das almas siga o mesmo raciocínio. — ele declarou.
— E o que nós temos que fazer agora? Como essa escultura nos leva à entrada que procuramos? — perguntei.
— Bom, talvez tenha alguma alavanca por aqui. — ela analisava a escultura com cuidado.
Nós nos juntamos a ela. Natan chamou o grupo de trás da pedra.
— Tem alguma coisa escrita aqui. — ele falou.
Discretamente descendo pela coluna vertebral do réptil, havia incrustações em letras miúdas e estranhas. Selva foi a última a dar a volta. Todo mundo se espremia no mesmo lugar para conseguir olhar. Quando a filha da lua se reuniu aos demais, o chão se abriu e nos tragou para o submundo.
Olá amados!
Eu achei essa lenda dos Incas super curiosa e divertida, então dei o meu toque a ela. Espero que gostem.
Não esqueçam da minha estrelinha e vamos ao próximo capítulo!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro