22 - Motivos e razões
Alma me contou como tudo tinha acontecido naquela noite fatídica. Se eu a tivesse trazido para casa antes, se ela não tivesse ido à planta sagrada, nada disso teria acontecido. Se eu sequer a tivesse levado para aquele mundo, ela estaria bem, segura, saudável.
— Tinha uma raposa em uma das árvores. Ela falou comigo, foi aí que eu vi o sangue e percebi que não estava segurando uma folha, mas a asa que eu tinha arrancado de uma fada.
— Espere. — pedi. A minha cabeça estava rodando. Nada daquilo fazia sentido. — Como foi que você arrancou a asa de uma fada? Isso não faz sentido. Não dá para arrancar a asa de um bichinho desses por acidente, só intencionalmente. Ela teria voado, gritado, tentado se libertar. Por que ela teria ficado lá parada? E como você teria acertado justamente a asa dela no meio de milhares de folhas? Acaso?! Não acredito nisso. São muitas coisas que não se encaixam. — quase como se... se... tivesse sido proposital. Arranjado.
— Eu não sei. — Alma acabou de comer a torrada com geleia. — Mas ferir um animal sagrado sem ser atacado é proibido.
No meu mundo, as fadas são as protetoras da magia. Elas são intocáveis. Um mundo sem fadas perde a sua fantasia. Arrancar a asa de uma delas, equivaleria, aqui na Terra, a desmembrar uma criança viva. Alma fizera algo hediondo para os naturais, mas... de forma acidental. Tinha alguma coisa errada.
—Eu teria de pagar as consequências pelo que fiz à criaturinha. — a jovem prosseguiu. —As fadas são inofensivas, jamais teriam tentado me fazer mal. Nada que eu pudesse dizer seria aceito como verdade. Eu não poderia explicar como tudo aconteceu porque eu nem sequer entendi direito como foi. A relação que os naturais mantêm com os seres vivos é muito intensa e protetora. E é exatamente por isso que aquele lugar permanece com uma natureza tão pura e mágica. Eu seria acusada de atentar contra a vida de um natural de propósito e por maldade. Eu seria considerada uma ameaça. Eles são bem duros por lá em relação a isso. Eu seria punida. A forca seria a minha sentença.
— Mas... mas... — eu não conseguia formular um pensamento coerente.
— Depois disso eu vi o meu novo futuro. — a moça sorriu triste para mim. — Você tentaria me defender, não aceitaria de forma alguma. Ficaria contra o cumprimento da justiça e mataria um homem em decorrência disso. Traição. Um crime tão grave quanto o meu. Você também seria considerado uma ameaça. — ela baixou os olhos para as próprias mãos. — Seria condenado à morte. Forca. Então... — Alma suspirou profundamente e levantou os olhos. — Cada um de nós dois receberia o seu castigo correspondente. E nós dois acabaríamos mortos.
Estou dormindo. Estou preso dentro de um pesadelo do qual não consigo acordar. Isso não está acontecendo.
— E como sabe que as coisas aconteceriam assim? — perguntei. — As visões do destino não são tão detalhadas assim. São apenas trechos pequenos. Você assistiu a um filme inteiro. — isso também não fazia sentido. Mais um item se juntando, à já bem grande, lista.
— Não vai comer nada? — Alma apontou o meu prato intocado.
A xícara de café forte e o bolo com cobertura de chocolate, assim como a massa folhada recheada com creme de baunilha e nozes simplesmente não pareciam saborosos ou atraentes. Eu não tinha vontade de comer.
— Não estou com fome. — respondi.
Ela suspirou e continuou:
— Não foi uma visão da árvore. Eu não puxei mais nenhuma folha. Foi a raposa quem me mostrou. — passou o dedo na cobertura de chocolate do bolo dentro do meu prato.
— A raposa?! Raposas não concedem visões.
— Ela já estava na forma humana quando me mostrou. — roubou mais um pouquinho do chocolate com a ponta do indicador.
— Mas do que é que você está falando? Nada disso faz sentido algum, Alma.
— Mas foi ela. Certeza absoluta! A mesma raposa branca que falou comigo...
— Branca?! — levei um soco na boca do estômago. — Você disse branca?
— Sim. Ela pulou do galho de onde estava sentada me observando para o chão se transformando em humano. Um rapaz jovem trazendo sobre os ombros um manto feito do pelo branco da forma animal anterior. Ele me mostrou as...
— O aprendiz?! Por quê?! — eu estava em choque.
Levantei, começando a andar de um lado para o outro no quarto do hotel. As engrenagens do cérebro trabalhando rápido para juntar peças de um quebra-cabeça que não se encaixavam. O aprendiz. O aprendiz estava lá. Por quê? A fada estava lá. Por quê? Como tinha acontecido aquele acidente tão estranho? E o que isso tudo tinha a ver com Alma estar sem sua magia agora? Por que o aprendiz estava usando o manto da raposa branca? Por que mostrou as visões para ela?
— Gael? — a voz doce me despertou. — Você está bem? Não quer se sentar outra vez? — sugeriu.
Voltei para a minha cadeira. Os pés do objeto rasparam no chão com um som áspero. Um ódio profundo me sufocou.
— Tinha mais alguém lá, com o aprendiz? — o som saiu mais sombrio do que eu pretendia.
Alma olhava para os meus punhos serrados em cima da mesa. As veias saltadas na pele do braço da força com que os tencionava. Eu precisava me acalmar, estava assustando ela. Relaxei as mãos e me controlei. O som profundo do suspiro que saiu do meu peito trouxe os olhos dela para os meus.
— Devia ao menos provar o bolo. Está muito bom. — falou.
— Não estou com fome. — repeti.
— Eu sei, mas ia me deixar muito feliz ver você colocar alguma coisa pra dentro.
— Mas realmente não estou... — ela me olhava com preocupação. Estava tentando cuidar de mim. — Tudo bem. — peguei o garfo e coloquei um pedaço do bolo na boca. Não tinha gosto de nada, mas Alma ficou feliz e sorriu, então valia a pena. — Então, tinha mais alguém lá, com o aprendiz? — repeti a pergunta entre garfadas de comida.
— Não, só tinha uma raposa. A raposa é um aprendiz? — perguntou curiosa.
— É. E tem certeza que não tinha mais nenhuma outra pessoa lá? Sem manto? — uma garota ruiva, talvez?
— Eu não vi mais ninguém. Foi ele que fez tudo. Foi ele que me mostrou as consequências e me ofereceu uma saída alternativa.
O aprendiz. Estava agindo sozinho, mas usava o manto dela. Eu não poderia saber quais eram os verdadeiros conhecimentos da filha da lua, muito menos de seu aprendiz. Talvez a sabedoria milenar das estrelas lhes permitisse realmente ver o futuro. Não era difícil de acreditar no que a visão mostrava. Eu realmente não teria permitido que ninguém tocasse na guardiã. Traição se paga com a forca. E como eu poderia explicar a ferida da fada se nem eu mesmo entendia? Alma também seria punida, mas essa sentença só se cumpriria por cima do meu cadáver, com certeza. Isso estava mesmo acontecendo? Aquela história era real?
— Então o aprendiz te mostrou o seu novo futuro, e depois? — tentei entender o que estava acontecendo. A comida sem gosto descendo goela abaixo.
— Eu não queria ver, mas ele me obrigou. Disse que eu deveria prestar muita atenção, porque teria uma escolha difícil a fazer depois. — Alma voltou a analisar os dedos da própria mão. — Naquela hora eu entendi o que você disse para mim uma vez: tudo pelo seu bem, mesmo que você não entenda os motivos. Eu teria feito qualquer coisa que ele me dissesse pra fazer naquela hora.
Algumas peças começaram a se encaixar.
— Eu morreria de qualquer jeito, Gael. — Alma continuou. — Poderia ao menos impedir que você fosse punido por uma ação minha. Eu não podia deixar você receber o mesmo castigo que eu. O jovem com o manto me disse que só os naturais são julgados, se eu fosse humana, não enfrentaria aquelas consequências.
O quebra-cabeça estava se montando.
— Só tinha um jeito de eu me transformar em humana: abdicar voluntariamente da minha magia. Eu teria de deixar o mundo natural e nunca mais poderia voltar. Só as criaturas mágicas agora conseguem cruzar a fronteira. É por isso que eu nunca mais quis voltar lá. Eu não posso mais entrar. Por isso não quis ir com você conhecer o Natan. Eu teria adorado ver alguns lugares que você descreveu pra mim. — a minha linda menina sorriu triste. — E como consequência a voltar a ser humana, eu não seria mais condenada, viveria a minha vida aqui na Terra normalmente. Você não precisaria mais me defender, não se tornaria um traidor e assim não seria condenado à forca. O meu estranho lindo ficaria a salvo e bem. — o sorriso mais glorioso do mundo falou. — Eu poderia salvar você se eu quisesse.
Eu entendi. E não acreditei.
— Só que tudo isso teria um preço. Os meus pais não são dependentes da magia porque ela esteve de forma embrionária no corpo deles, assim, ela foi transferida para mim quando nasci. O meu caso é diferente. O meu corpo viveu a magia plena e desenvolvida. Essa magia alimenta a minha matéria, ela se ligou às minhas células. Se eu tivesse um filho ele não herdaria, como aconteceu comigo, a fantasia contida em mim. Eu e ela somos um. A minha magia morreria comigo. O meu descendente teria a sua própria magia, todo ser mágico origina outro ser mágico. Como a vida que gera vida, a minha fantasia geraria outra fantasia, mas a do meu corpo seria só minha. A única forma de me separar dela é abdicando de forma voluntária, só que sem um corpo a magia morre, e sem a magia... o meu corpo morre.
Exatamente. Esse era o objetivo. Alma precisava morrer.
— Então foi fácil escolher. Não precisei pensar muito. E não me arrependo nem por um segundo. Teria feito exatamente a mesma escolha hoje. Eu dei a minha marca para ele. Assim como um usuário de droga entra em abstinência depois que para de usar a substância viciante, o meu corpo ainda teria os resquícios da magia depois que perdi a minha fantasia, mas logo começaria a falhar com a ausência. Eu teria algum tempo saudável e aí começaria a sentir os sintomas que só piorariam até... — ela respirou fundo. — E é isso. Agora você sabe tudo.
De um jeito ou de outro o final seria esse. Uma situação criada para um objetivo claro e específico. Pendurada na corda de uma forca ou definhando aos poucos sem magia. Alma só precisou escolher se faria isso sozinha ou se me levaria junto.
A raposa, astuta e ardilosa, traçou o seu plano traiçoeiro. O aprendiz tinha armado um laço mortal e irreversível para ela. E ela caiu.
Prontinho. E aí, o que acharam? Ficaram com mais perguntas do que respostas? A treta braba tá chegando!
Saudades da Elisa? No próximo capítulo vamos espiar um pouquinho a loira.
Se gostou deixa uma estrelinha. Bjos!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro