Feliz Natal
O ano de 2050 havia trazido novidades para os humanos. A possibilidade de compartilhar pensamentos apenas com um olhar ainda era luxo de poucos, mas agora algo mais acessível chegara ao mercado: compartilhar as próprias emoções com um toque.
Apesar das inovações o Natal ainda continuava sendo uma data comemorativa. As ruas da cidade de Kellstone ficavam abarrotadas de pessoas felizes com gorros de papai Noel. Mas aquele ano era especial... Completava uma década do lançamento da "tecnologia imaterial". As pessoas ainda se perguntavam como, dez anos atrás, no ano de 2040, conseguiram viver sem todos aqueles produtos.
E, desde que foram lançados pela fabricante "QStone" um novo mundo havia surgido. Novas formas de comunicação, novas identidades, novas culturas. Culturas baseadas apenas na tecnologia, com tradições baseadas nela unicamente. O mundo fervilhava, mas para ter acesso a tantas inovações era necessário ter dinheiro. E quem detinha a maior parte do dinheiro eram os Caçadores.
Eles possuíam todas as inovações mais recentes porque eram seus criadores ou trabalhavam para quem as criara. A maioria trabalhava na QStone, mas todos tinham uma mesma função: encontrar humanos dispostos a testarem seus produtos. As lendas urbanas sobre eles cresciam a cada ano, boatos, fofocas, histórias, ninguém sabia ao certo. Todos queriam casar-se com um, o caminho mais fácil para uma vida confortável.
Mas a realidade era que os Caçadores gostavam de brincar com os humanos e testá-los, iludi-los e depois descartá-los, usá-los apenas para seus experimentos. Embora não existissem provas disso, já que a mídia insistia em endeusa-los, as histórias eram passadas adiante de boca em boca, algumas aterrorizantes demais ou românticas demais.
Nada inspirava mais medo e ao mesmo tempo fascínio do que os Caçadores. Eles eram identificados pela letra 'Q' fundida na pele, na lateral do pescoço.
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Oliver dançava na pista de dança com seu amigo Kale. A batida da música embalava seu corpo no ritmo certo, os ouvidos pulsavam com o volume do som, mas ele não ligava, estava se divertindo muito.
Era Natal e finalmente estava comemorando do jeito que sempre quis: com os amigos, se divertindo de verdade. Tocou em Kale e compartilhou suas emoções com ele. O amigo recebeu-as com uma risada. Oliver sentia-se animado demais, sentiu o sentimento de euforia como se fosse dele e respondeu-o novamente com um toque. Compreensão, o amigo também sentia-se assim!
As luzes da boate piscavam insanamente, coloridas, fazendo as pessoas brilharem. Vários corpos se mexiam de acordo com a música e as roupas cintilantes tornavam aquele ambiente ainda mais incrível para se estar. Oliver tocou Kale de novo no braço, agora ofegante. Cansado, com sede. Ele assentiu com a cabeça e indicou o bar para Oliver.
Olhou-o nos olhos e a mensagem foi enviada "tome alguma coisa lá, te espero aqui assim que se sentir melhor". Oliver sorriu e foi abrindo espaço pela multidão até o bar.
-Uma água. -sentiu a boca seca por estar usando palavras.
A tecnologia só funcionava com pessoas com quem você tinha um laço, uma intimidade. O barman olhou-o com estranheza por pedir algo não-alcóolico naquele lugar, virou-se, pegou uma garrafinha e coloco-a na frente do garoto. Oliver não ligou para aquele olhar, precisava se hidratar.
Tomou em goles rápidos enquanto analisava o lugar a sua volta. Não enxergava Kale na pista, provavelmente porque estava muito longe.
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Na porta da boate, Viktor adentrou o antro de humanos malucos. Ele realmente odiava o Natal e como a data fazia as pessoas mudarem de personalidade. Suspirou. Todos estavam com roupas coloridas, exceto ele, todo de preto.
Passou por toda a multidão, olhando com nojo para algumas pessoas. Quando ele passava todos olhavam. E cochichavam. Será que era um deles? O pescoço estava coberto por um cachecol, não havia como comprovar.
Todos assumiam que os Caçadores se vestiam bem e exalavam um odor diferente, um cheiro sedutor que fazia todos ficarem confusos.
Se eles soubessem que ele era um Caçador não o deixariam em paz até ele casar com alguém dali! Mas acalmou-se assim que as pessoas o esqueceram e voltaram a dançar. Podia ouvir os cochichos "é Natal, vamos nos divertir sem pensar nessas coisas hoje".
Chegou ao bar e sentou-se num canto. Pediu uma bebida alcóolica qualquer. Observava todos os cantos do local, precisava de alguém novo. Quando olhou para o lado encontrou um par de olhos azuis o observando. Cabelos loiros, pele sem marca alguma, nenhuma deficiência física. Assim que o garoto percebeu que havia sido descoberto desviou os olhos. E Viktor sorriu. Havia encontrado o que queria.
Reparou no suéter vermelho com bordados natalinos e na calça cáqui... Tudo lhe dava um ar ingênuo. As roupas importavam para a companhia, lógico que sim, precisavam de pessoas jovens e bem vestidas para espalhar as novas invenções por aí.
Os cabelos dele eram loiros quase platinados, e a pele branca também, mas um pouco avermelhada. Estava de férias em outro lugar e voltou para Kellstone? Viktor analisou-o um pouco mais e se aproximou. O garoto pedia uma bebida.
-Boa noite
Ele virou-se com os olhos arregalados, ficou sem palavras. "Claro..." Viktor pensou. Eles sabem o que eu sou. Mas tinha de tentar, ali estava sua chance.
-O-oi -ele conseguiu finalmente murmurar
-Qual seu nome? -Viktor perguntou sorrindo
-Oliver
Pôde perceber os olhos azuis do garoto vagando pelo seu corpo timidamente, depois indo perder-se na multidão, à procura de alguém. Não achou. A bebida foi entregue. Eles ficaram se encarando.
-Feliz Natal Oliver -falou sorrindo
Aquilo seria difícil. O garoto estava travado. Talvez nunca houvesse visto um Caçador pessoalmente. Suspirou mentalmente. E se o tocasse? Precisavam sair daquele lugar. Mas ele parecia procurar alguém na pista de dança.
-Obrigado. -fez-se um silêncio constrangedor, abafado pela música claramente, até que ele continuasse a frase- Ah, pra você também.
Viktor respirou fundo e levantou-se do banco. Iria tocá-lo. Aproximou-se de Oliver, observou-o se encolher. Todos queriam conhecer um Caçador, qual era o problema dele? Começou a se irritar e enfim tocou em seu braço.
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Aquele homem de cabelos escuros com certeza era um Caçador. Mas seu corpo ficou tenso quando ele o tocou de supetão no braço. Sentiu como se seu cérebro tivesse se apagado.
Oliver piscou e de repente estava deitado em uma cama. Olhou ao redor. Paredes de vidro. Em frente a cama, na parede havia uma tela enorme, pensou que fosse fixada, mas a tela fazia parte da parede.
Sentou-se na cama devagar, assustado. Olhou para seu corpo: usava roupas brancas. Havia algo em seu pulso. Uma letra Q. Mas não era uma tatuagem. Era como se tivessem pego um pingente em forma de letra e o tivessem fundido a sua pele, como se aquilo fosse possível.
Não doía, mas não sabia onde estava nem como fora parar ali. Havia piscado, apenas piscado e estava em um lugar diferente, usando roupas diferentes.
Arregalou os olhos quando a letra em seu braço se encheu de uma coloração vermelha, como se seu sangue estivesse ali. Oliver suava e desesperava-se. Então ouviu uma batida na porta.
-Vinte e Seis? Você está bem?
"Vinte e Seis? ", pensou. Aquele era seu nome agora? A pessoa entrou no quarto. O homem da noite anterior. Olhou-o com pavor. O que ele era, o que estava acontecendo?
-Quem é você? -Espantou-se com o som da própria voz, rouca
O homem aproximou-se. Tinha uma expressão indiferente no rosto, olhava-o com frieza.
-Viktor.
-Por que estou aqui? -Indagou confuso.
-Você está na sede da QStone, a empresa que sustenta essa cidade. -respondeu com escárnio
Oliver se encolheu ao ouvir a voz agora alta do homem. Antes que pudesse perguntar mais alguma coisa foi interrompido.
-Você está aqui por uma razão Oliver. Não posso te contar tudo agora, mas acredite quando digo que tudo que fazemos é buscar um futuro próspero para Kellstone. Nós vamos fazer alguns testes em você.
-T-testes? -ele começara a tremer.
Viktor sorriu. Aquele garoto parecia fraco demais. Mas o havia escolhido, agora teria de se contentar com ele e deveria bastar.
-Testes de aptidão, físicos, sociais, entre outros. Você vai conhecer alguns colegas também, você não é o único aqui. O primeiro teste é físico, deixei algumas roupas na cômoda para você. Se vista em dez minutos e saia do quarto, estarei na porta te esperando.
Antes de Viktor sair, Oliver notou a mesma letra Q que havia em seu pulso no pescoço do outro. Sentiu as lágrimas encherem seus olhos, mas não podia fraquejar agora. Precisava se recompor rapidamente e aprender a lidar com a realidade daquele momento.
Abriu a gaveta da cômoda e encontrou as roupas: um traje azul com vários botões. Vestiu-se rapidamente e sentiu-se um alienígena naquelas vestes. Ainda não entendia nada, e algo lhe dizia que Viktor não iria explicar.
Saiu do quarto. Viktor o olhou e sorriu, analisando-o de cima a baixo.
-Muito bom. Te escolhi porque era bonitinho também, sabia? -Oliver corou e ficou irritado, olhou-o com raiva
O corredor onde estavam era completamente branco e iluminado, cheio de espelhos. Levava até uma porta de vidro de onde vinham sons de pessoas conversando.
Seguiu o outro até passarem por aquela porta. E imediatamente cinco pessoas voltaram seus olhos para ele.
-Trouxe mais um colega. Vinte e Seis -Viktor lhe deu um tapinha nas costas, incentivando-o a andar
-Escolheu bem hein? -uma menina falou sorrindo maliciosamente
-Não posso dizer o mesmo de você Ivana. -o Caçador respondeu- Vocês podem subir nas esteiras e começar o teste. Apertem o botão na coxa direita da perna de vocês antes de iniciarem, todo o relatório será feito pelo computador.
O loiro observava os outros participantes. Todos jovens e bonitos. Olhava espantado para eles. Não pareciam estar incomodados por estarem ali. Foi caminhando resignado em direção a uma esteira quando sentiu uma mão em seu ombro.
-Qual seu nome?
Olhou para cima. O garoto era mais alto que ele, mas devia ter a mesma idade. Tinha cabelos castanhos encaracolados e lindos olhos verdes que o encaravam com um ar sério, contradizendo o resto da expressão facial, brincalhona.
-Oliver -respondeu assustado
-Prazer, sou Benjamin. Só Ben.
Apenas o encarava ainda atônito naquele lugar. Então caiu em si e franziu o cenho, começando a desesperar-se.
-Onde estamos? Em um segundo eu estava comemorando o Natal e no outro eu estou aqui, eu não entendo
Benjamin riu da afobação do garoto. Deu um tapinha em seu ombro e respirou fundo.
-Sorria e finja que estamos apenas socializando. Eles te sequestraram, assim como todos nós. Apenas com um toque te trouxeram para cá, é uma outra nova tecnologia de hipnose. A maioria das pessoas acredita que foi trazida por um bom motivo, para melhorar a cidade, mas a verdade é que somos escravos dos Caçadores. Eles fizeram uma lavagem cerebral tão grande na população que quase todos que vem para cá ficam felizes por estar aqui.
Oliver o olhava com uma expressão apavorada. "Escravos dos Caçadores?" Olhou rapidamente em volta. As outras 4 pessoas conversavam entre si, algumas se preparavam para subir nas esteiras. Viktor os olhava impaciente na porta. Tinha uma prancheta na mão, anotava algo.
-Sorria. Agora. -ele obedeceu, deu um sorriso débil para o outro- Todos os outros acreditam no sistema. Caso você dê indícios de que não concorda com as regras eles te descartam. Hoje é Natal, teremos uma reunião para celebrar e iremos te explicar tudo.
-Eu não entendo nada. Não entendo porque eu. Não quero morrer. -os olhos azuis de Oliver permaneciam arregalados de pavor, buscando uma saída
Ben tocou-lhe a face e abraçou-o.
-Existem mais pessoas como nós, hoje às onze eu te busco, não fale sobre isso com ninguém. Lembre-se de sorrir.
Deixou Oliver atordoado. Viu Viktor os olhando com desconfiança e rapidamente subiu em uma esteira. Apertou o botão do traje, sentiu a roupa formigar sobre sua pele. Era muito bom em ajustar-se a novas realidades, mas enquanto as pernas se moviam seu cérebro não parava de pensar e pensar e pensar sem parar.
Estava ficando paranoico. Havia um relógio na parede a sua frente. Marcava 20:00. Ainda era véspera de Natal? Então havia passado apenas 1 hora desde a noite anterior? Desde que fora pedir uma bebida no bar da casa noturna? Seu rosto estampava uma expressão descrente. Sentiu vontade de chorar novamente, mas segurou as lágrimas como se sua vida dependesse daquilo.
Sentiu uma presença ao seu lado. Viu os cabelos negros do Caçador, seus olhos castanho-escuro o encaravam com malícia.
-Seu rendimento está na média Vinte e Seis.
-Por que eu sou Vinte e Seis?
-Você é o vigésimo sexto indivíduo a realizar nossos testes.
Então não faz muito tempo que eles começaram com isso, pensou Oliver. A esteira parou assim como o formigamento do traje. Tinha sede, sentia-se cansado.
-Pode voltar ao seu quarto.
-Que dia é hoje? -precisava saber se não estava sonhando
-Vinte e quatro de dezembro. Não comemoramos o Natal aqui, desculpe. -riu
O loiro caminhou para a saída ainda atordoado. Os outros não haviam terminado seus exercícios, mas pareciam felizes, conversavam e riam enquanto caminhavam na esteira. Benjamin também ria, conversava. Tudo aparência. Antes de sair olhou para Oliver seriamente e sua voz inundou sua mente: "Hoje às onze eu te busco"
Saiu mais assustado ainda. Como ele havia feito aquilo? Apenas pouquíssimas pessoas possuíam aquela tecnologia. Entrou em seu quarto e encontrou 3 garrafas d'água em cima da cômoda. Bebeu uma em 5 minutos e atirou-se na cama.
A TV mostrava as horas: 22:00. Passara 2 horas na esteira. Precisava descansar. Como Kale estaria naquele momento? Procurando por ele? Sentiu as lágrimas esquentando o rosto, finalmente. E então adormeceu, o cansaço dominando seu corpo.
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Acordou com Benjamin o olhando. Levantou-se da cama assustado enquanto o outro ria.
-Você sabe qual o problema da QStone? Eles são burros o bastante para acreditar que a lavagem cerebral deles faz com que amemos esse lugar. Não há guardas nos dormitórios, apenas nas saídas. Melhor para nós.
-O que está dizendo? Eu preciso de explicações! Por quanto tempo vou ficar aqui? -exasperou-se
-Ninguém sabe. Eu estou aqui há dois anos. -Oliver engoliu em seco
-Alguém já saiu daqui?
-Claro que sim, como você acha que as inovações se espalham por aí? Alguém tem que ir lá e mostrar para os outros o quanto essa nova tecnologia nos faz melhores em tudo. O que é mentira.
-Mas eu nunca pensei que fosse assim. Eu achei que...
-Que eles eram apenas uma empresa de tecnologia como a Fexter*? Eles controlam Kellstone, todas as pessoas são controladas por eles. -Benjamin suspirou
-Como ninguém sabe disso?
-Porque nós somos o meio pelo qual eles controlam tudo Oliver.
-Como você sabe tanto sobre isso tudo? -cruzou os braços na defensiva. O moreno riu e aproximou-se
-Por que conheço um grupo de ex-Caçadores aqui dentro. E já avançamos muito para libertar a cidade.
Não sabia se acreditava naquilo. E se fosse um teste? Observou o rosto de Ben minuciosamente, que continuava com uma expressão desafiadora, e ao mesmo tempo curiosa.
-Hoje é Natal e teremos uma confraternização. Aposto que você está com fome.
-Eu vou. Mas ainda não confio em você. -falou baixinho
-Não se preocupe, não vou desapontar. -ele riu- Teremos que sair do dormitório, mas essa hora quase todos já foram dormir. Vamos indo.
-Quase todos?! -Oliver perguntou enquanto era puxado para a saída do quarto
Ben fez sinal para ele ficar quieto e o puxou pela mão pelo corredor. Quando chegaram a porta que dava para a mesma sala das esteiras abaixaram-se. Caminharam abaixados por trás das máquinas, mesmo que não houvesse ninguém por perto.
Oliver apertava a mão do outro com medo. Não sabia o que estava fazendo, nem se ia morrer ou não. Apenas estava assustado demais para fazer qualquer coisa sozinho.
Entraram em outro corredor iluminado. Agora caminhavam normalmente, mas com pressa. Ao final havia uma escada. Desceram por ela rapidamente. O suor escorria no rosto dos dois, mesmo que em todo o local houvesse ar condicionado.
Entraram em um corredor escuro agora. Benjamin retirou uma chave do bolso e tateou no escuro, agora nem puxava o outro pela mão, já que este se agarrava ao seu braço com força. Encontrou uma maçaneta e enfiou a chave ali. Mais escuridão na outra sala.
-Falta muito? -o loiro sussurrou
-Não.
Tatearam mais no escuro. Agora Oliver agarrava o braço de Ben. Outra maçaneta. Mas dessa vez um barulho de correntes. O maior bateu na porta.
-Vinte, dezesseis e treze. -Benjamin falou alto dando 10 batidas na porta
Ouviu-se barulho de chaves, correntes, mais chaves. Enfim a porta abriu-se. Música natalina invadiu os ouvidos do garoto. "O que é isso?" perguntou-se piscando várias vezes. Luzes piscavam, neve falsa voava. Na porta um garoto com cabelos ruivos sorria, vestia um moletom e calças jeans rasgadas, devia ter dezoito anos ou mais.
-Hohoho, vejo que trouxe um amiguinho Ben. Um bem bonitinho.
-Cala boca Patrick -notou Bejamin ficar tenso ao seu lado
-E pelo visto vocês já estão bem íntimos -arqueou as sobrancelhas e apontou com o queixo para o braço do maior, no qual Oliver ainda se agarrava, com o coração batendo acelerado
-Desculpe -o loiro murmurou soltando Ben
-Podemos entrar ou não? -perguntou irritado
-Só depois de pagar o pedágio -Patrick respondeu com um sorriso malvado no rosto
-Pedágio? Ora vamos Patrick deix...-antes que pudesse terminar a frase o garoto já colocara as mãos em seu pescoço e o puxara para um beijo intenso. Tudo enquanto olhava de soslaio para Oliver
Não sabia onde se meter. Ficou constrangido e com muito esforço Ben conseguiu se livrar do outro garoto. Estava todo vermelho, olhou para o loiro e pediu desculpas.
Então finalmente entraram naquele lugar estranho. Decoração de Natal, música alta, luzinhas pisca-pisca e mais três pessoas. Uma mulher e dois homens. Todos deviam ter 30, 40 anos. Assim que entraram encararam Oliver de cima a baixo, mas não disseram nada, não até Benjamin começar a falar.
-Este é o Oliver. -colocou a mão no ombro dele- Ele é novo, chegou hoje.
-Que belo presente de Natal hein? -Patrick murmurou com escárnio atirando-se em um sofá no meio da sala
-Bem-vindo Oliver. Espero que Ben já tenha lhe explicado sobre nós. Prazer, sou Edythe. -a mulher se aproximou e apertou a mão de Oliver. Tinha o cabelo preto preso num rabo de cavalo, uma expressão bondosa no rosto
-Na verdade eu esperava mais explicações... -murmurou. Ainda não entendia nada.
-Eu entendo querido. Sente-se. Patrick por favor. -falou para o outro, dando um tapa em suas pernas, que ocupavam todo o sofá
Sentou-se ali. Benjamin o olhava curioso, sentou-se no chão em sua frente. Não haviam muitos móveis naquela sala. Apenas decorações. Mas sentiu um cheiro bom de comida que fez sua barriga roncar.
-Temos um propósito aqui Oliver, tentar levar a verdade para a população. -os outros dois homens permaneciam quietos- Eu já fui uma Caçadora, assim como Ennis e Keith aqui. Mas acontece que nós também acreditávamos na QStone, que o que fazíamos era por um bem maior.
"Acontece que descobrimos a verdade e não pudemos continuar sem fazer nada. As novas tecnologias que todos querem não passam de armas de controle da população. Quando você compra a tecnologia você vende sua mente para eles. Eles passam a te possuir, te controlar.
A tecnologia das emoções ao toque por exemplo, para adquiri-la é necessária uma ingestão de um líquido, suas digitais são coletadas. Mas nesse líquido, que transforma suas emoções em algo compartilhável, também há outra tecnologia embutida, a do controle de emoções."
-Mas como isso é possível? Se tomamos o líquido para podermos compartilhar nossas emoções?
Ouviu risadinhas na sala. Ben continuava sério. Parecia querer desesperadamente que Oliver entendesse tudo, não achava engraçado porque um dia também fora como ele.
-A raiva foi erradicada da nossa sociedade Oliver. -ela continuou- Não existem mais emoções negativas, ao menos na população de Kellstone. Entre os Caçadores há. Eles controlam as emoções, impedem brigas, ódio...
-Mas isso não é algo bom? -murmurou e ouviu a gargalhada de Patrick
-Você é idiota? -ele se intrometia na conversa agora- Claro que não! É o mesmo que dar sedativo para toda a população, diariamente. Criaram uma sociedade de pessoas inertes, incapazes de ver a verdade. Quando se amortece a raiva não há ação, quando não existe ódio não existe luta. -Oliver o encarava de boca aberta
Pode ver os dois homens, Ennis e Keith sorrirem entre si, aprovando o discurso de Patrick.
-Você não é mais Caçadora?
-Nós somos. -ela apontou para os dois homens- Mas nos aprofundamos nas fórmulas tecnológicas, e conseguimos quebrar a parte que controla as emoções. Pensam que trabalhamos para eles, mas trabalhamos para nós e pela população. Mas vou lhe explicar mais detalhadamente.
"Você veio para cá porque é bonito e jovem. Um Inovador precisa ser tudo isso e ainda passar nos testes que você começou a fazer hoje. Esses testes podem durar anos. Ben está aqui há dois anos, Patrick também. Depois que eles te consideram apto a ser um Inovador eles te levam para Kellstone com novas tecnologias, para você mostrar aos outros e os fazerem querer aquilo tudo.
O que nós aqui fazemos é quebrar essas novas tecnologias antes que elas cheguem a Kellstone. Ou seja, quando os Inovadores vão para a cidade pensando que estão levando uma tecnologia da QStone eles na verdade estão levando uma fórmula quebrada por nós. E assim, pouco a pouco nós conseguiremos quebrar todas as fórmulas e todas tecnologias terão defeitos que eles não querem e que levarão ao declínio na QStone "
Toda a sala estava em silêncio. Não fosse pela música de Natal que tocava. Oliver ainda tentava assimilar tudo aquilo. Era muita coisa. Sua mente dava voltas, não sabia por onde começar as perguntas.
-Como vocês se conheceram? -apontou com o queixo para Ben
-Nós precisamos de cúmplices. Para levar a tecnologia até Kellstone precisamos de Inovadores ao nosso lado. Analisei Ben e Patrick, percebi que eles eram frutos das nossas quebras de fórmulas. Eles demonstravam raiva, mesmo que em baixo nível e apresentei para eles todo nosso plano. Sempre há o risco de sermos delatados, mas como trabalhamos para a QStone não há muitas investigações e ninguém nunca nos denunciou.
-Sei que é muito para assimilar -Benjamin pegou a mão de Oliver e apertou num gesto reconfortante- Mas hoje estamos aqui para comemorar o Natal não é mesmo Edythe? -a mulher sorriu com compaixão
Patrick levantou-se do sofá e sentou-se no chão ao lado de Ben, encostando-se nele de maneira possessiva, agarrando-se ao seu braço. Pôde ouvir o suspiro de Ben, que olhava-o pedindo desculpas, por Patrick? Não saberia dizer.
Edythe levantou-se.
-Muito bem meninos, a janta está pronta. Vamos comemorar o Natal.
-Como se não morássemos nesse lugar horroroso.
-Patrick pare de reclamar ao menos hoje!
-Tudo bem.
Oliver arqueou as sobrancelhas. Ele ia ceder assim tão fácil? Recebeu um olhar enviesado do ruivo e resolveu olhar para as próprias mãos.
-Venham garotos, a mesa está posta.
Todos levantaram-se e seguiram a voz de Edythe ao outro cômodo. Era uma cozinha pequena. Havia uma mesa e em cima um prato com um frango que acabara de sair do forno. O cheiro era incrível.
Sentaram-se cada um em uma cadeira. Os dois homens ainda permaneciam em silêncio. Começaram a servirem seus pratos. Oliver não comia há horas e quando começou não conseguiu parar. Patrick o olhava com raiva, o que o deixava ainda mais constrangido.
-Está bom?
-Ótimo! Maravilhoso, melhor do que a comida que nos servem lá -Ben respondeu em meio a garfadas
-Ennis, Keith, vocês não falaram nada! Oliver deve estar achando que são mudos. -Edythe riu
-Não somos. Apenas introvertidos. -Ennis, que tinha uma barba grande cor de cobre sorriu enquanto enfiava os dentes em uma coxa do frango
-Já passamos tantas vezes pelo processo de explicar tudo isso aos recém-chegados que perdeu a graça, preferimos ficar calados. -Keith respondeu enquanto ajeitava o guardanapo no colo. Ele era grande e ocupava quase toda a lateral da mesa
O resto da refeição foi feita em silêncio. Ben observara Oliver durante toda a janta. Patrick acariciava os cabelos do maior enquanto comiam, como perfeitos namorados.
-Meninos agora vocês lavem a louça. -ela limpou a boca no guardanapo e levantou-se
-Claro Edythe, você merece um descanso. -Ennis falou
Ela se retirou. Oliver pensara que ela iria para a sala, mas ela saiu da sala e passou pela porta por onde havia entrado.
-Para onde ela vai? -indagou curioso
-Para os aposentos de Caçadora dela. As fórmulas não se quebram sozinhas garoto. -Keith murmurou sorrindo gentilmente
-Podem ir conversar na sala, nós cuidamos da louça. -Ennis disse
Os três foram para a sala. O ruivo atirou-se no sofá de novo. Oliver tocou alguns dos bonequinhos de neve pendurados nas paredes. Como era possível que aquelas pessoas fossem felizes, sorrissem, sabendo de tudo aquilo?
-O que mais vamos fazer nessa divertidíssima noite de Natal? -Patrick perguntou ironicamente
-Você não comprou meu presente? -Benjamin riu tentando quebrar o gelo
-Eu sou o seu presente! -atirou um beijo no ar para o moreno
-Como você se comunicou comigo só pelo olhar hoje? Na sala das esteiras? -Oliver se manifestou, interrompendo a brincadeira dos dois ao lembrar-se daquele episódio
-Edythe nos deu essa tecnologia, mas não abusamos dela, não gostamos de usá-la. Não gostamos de usar nenhuma tecnologia. Preferimos as palavras, o toque genuíno.
-Ele é um poeta -o outro deu um chute de leve na perna de Ben
Aquela relação dos dois era estranha. Eles gostavam um do outro ou não? Oliver não saberia dizer, os olhava com uma careta no rosto. Tentou colocar os pensamentos em ordem mas começava a ter dor de cabeça com tantas novidades em tão pouco tempo. E pensar que horas atrás estava dançando com Kale.
-Onde fica o banheiro? -perguntou olhando para todos os cantos da sala
-Eu te levo, tem um corredor aqui.
Viu Patrick revirar os olhos. Benjamin o guiou por um corredor escuro ao lado da uma mesa de canto. Oliver não enxergava nada, a mão de Ben estava em sua cintura e ele o empurrava com delicadeza.
-Patrick é seu namorado? -perguntou tentando amenizar aquele momento
-Não... Nós só ficamos às vezes. É muito solitário aqui.
-Ah, entendo.
-É aqui -ele abriu uma porta e a claridade finalmente iluminou o local
-Obrigado. Ainda acho estranho usar minha voz e não um toque pra me comunicar. -riu nervoso- Ainda estou tentando entender tudo isso...
-Sei como é, não se preocupe. -falou com solidariedade
Ficaram se olhando por vários segundos, até que Oliver entrou no banheiro e fechou a porta. Havia um espelho ali. Olhou-se nele. Estava cansado, havia olheiras em volta dos olhos, a pele estava pálida. Mas recém havia comido, logo melhoraria, disse para si mesmo.
Eu tenho que me adaptar rápido, pensou enquanto lavava o rosto. Sabia que de agora em diante precisava ser forte e enfrentar aquele novo mundo. Não havia possibilidades de saída, ao menos não por enquanto, não que ele soubesse. Fez uma lista mental de perguntas a fazer para Ben.
Então percebeu que havia uma janela no banheiro. Pequena, mas ainda sim uma janela. Em cima do vaso sanitário, bem no alto da parede. Não pensou duas vezes antes de subir no vaso e abri-la. Estava um pouco enferrujada mas abriu quando empregou um pouco mais de força.
Espiou por entre as grades. Um pátio, vários carros estacionados, um prédio. Mas o que lhe chamou a atenção mesmo foi uma van que era preenchida por várias pessoas. Elas usavam as mesmas roupas brancas que ele usara horas atrás. Eram colocadas dentro da van contra sua vontade. Oliver desceu de onde estava e abriu a porta rapidamente, sentindo o coração acelerado e uma vontade de gritar imensa. Benjamin ainda estava ali, agora lhe encarava com curiosidade.
-Quem são aquelas pessoas? Nas vans? -perguntou com os olhos arregalados
-São os descartados. Se eu não soubesse fingir minhas emoções eu seria um deles. Ninguém sabe para onde vão, mas é provável que sejam mortos. -Ben respondeu com franqueza
-Mortos? Mas isso é crime, é ridículo!
-É com essa indignação que as mudanças acontecem Oliver. -sorriu gentilmente
-O que eles fizeram para serem...Descartados? -falou aquela palavra com nojo
-Mostraram demais. Ficaram com raiva, ódio. Não foram totalmente submissos.
-As tecnologias que foram dadas para eles já haviam passado por Edythe?
-Sim. Nós não podemos controlar quem eles pegam para fazer os testes, muitos possuem as fórmulas quebradas, por isso sentem emoções negativas. -Ben respondeu
-Por que vocês não os avisam para fingirem?
-Não dá tempo. Fazemos os mesmos testes há anos, mas é raro encontrar alguém como nós logo de cara. Eu percebi que você era pela sua cara. Você estava atordoado e assustado, emanava essas duas emoções logo que entrou na sala das esteiras
-Nunca havia me sentido assim antes... -o loiro murmurou sentindo seu peito apertado com novas sensações
Sentiu os dedos de Ben em seu rosto. A porta do banheiro havia se fechado, estavam num breu completo novamente. Seu toque era delicado, suave e gentil, acariciou sua bochecha, traçou a linha da mandíbula com suas digitais. Pegou sua mão e sentiu o 'Q' ali fundido no pulso do menor.
-Essa letra significa que você é propriedade deles agora.
O loiro sentiu a voz dele perto do rosto. Estava quente. Oliver sentia as bochechas quentes. As mãos do outro acariciavam seus pulsos e seu rosto. Sentiu um beijo na face.
-E-eu... -a voz estava embargada. As lágrimas derramaram-se rapidamente
-Mas ela significa isso agora. No futuro não irá significar nada mais.
Benjamin o abraçou e beijou novamente sua bochecha. As lágrimas quentes molhavam sua camiseta agora, mas ele não ligava. Sentia pena por aquele garoto e tudo o que ele ainda iria passar ali, talvez anos, ninguém sabia. Mas também sentia uma conexão com ele, um vínculo afetivo.
-Não chore por favor, lembre-se que precisa disfarçar muito bem aqui.
Oliver enterrou o rosto no peito de Ben e abafou um grito ali. A camiseta do maior estava molhada e quente pelas lágrimas. O loiro mordia os lábios de raiva. Que emoção era aquela? Era forte, fora suprimida por muito tempo e agora só sentia vontade de gritar. Gritar e bater em algo, alguém.
Sentia calor no peito, a face quente e as mãos apertadas em punhos contra o peito de Ben. Aquilo tudo era novo.
-Está tudo bem. Todos passamos por isso. Você pode me bater se quiser.
Oliver afastou-se e olhou-o com um misto de raiva e indignação.
-Bater em você? Não, eu quero bater neles, em quem criou tudo isso!
-Mas você não pode. É o desejo de todos nós. -Ben agora segurava ambas mãos do loiro, beijou-as delicadamente- Você não está sozinho, nunca será descartado porque nós te ensinaremos a fingir.
-Eu não quero fingir. -recomeçou a chorar- Eu não entendo porque fizeram isso com a gente. É injusto. Agora que sei como eu realmente sou não quero fingir ser outra pessoa Ben. -suspirou resignado enquanto mais lágrimas desciam pelas bochechas
-Não adianta chorar nem reclamar. -o moreno adquiriu uma postura séria agora- Essa é a realidade, nós precisamos lutar do nosso jeito.
-Eu fico me perguntando quando irei sair daqui? Até horas atrás minha única preocupação era comprar presentes de Natal. Estou aqui há cinco horas e já não aguento mais. -ele estava desesperado, agarrando-se a camiseta do outro como se fosse um pedaço de sua existência- Não sei como fingir, eu simplesmente não fui ensinado a isso Ben! Eu não quero, não quero... -começara a repetir coisas desconexas
-Eu vou te levar de volta. Você precisa descansar.
Oliver não protestou, respirou fundo e calou-se, chorava em silêncio. Quando saíram da escuridão encontraram Patrick os encarando com arrogância. Benjamin passou reto e saiu da sala. Da cozinha ouvia-se os barulhos dos pratos e da água escorrendo. Passaram pelos corredores iluminados de novo, pela sala das esteiras até chegarem ao quarto de Oliver. E este ainda parecia estar em transe, não se lembrava de ter passado pelos corredores nem de ter caminhado tudo aquilo.
Entraram no quarto finalmente. O moreno fechou a porta com suavidade e entrou no quarto com Oliver.
-Ben, me desculpe. -murmurou sentindo-se mais calmo agora que sentara-se na cama
-Não tem problema. Eu entendo, de verdade. -sorria carinhosamente
-Não queria parecer louco nem paranoico. -riu baixinho passando os dedos nos olhos, limpando as lágrimas
-Acredite, todos somos paranoicos aqui. -ele riu acariciando os cabelos do loiro
Oliver observou os traços de Ben. As sobrancelhas emolduravam dois orbes verdes que ficavam ainda mais destacados pelo cabelo encaracolado. O queixo era quadrado, a boca carnuda, mas todos traços muito masculinos e ao mesmo tempo delicados. Sentiu o rosto quente e desviou o olhar.
-Nos encontraremos amanhã? -perguntou receoso
-Talvez. Os testes são com pessoas aleatórias, mas às vezes temos chance de fazer os mesmos.
-Foi assim que conheceu Patrick? -perguntou fingindo desinteresse. Não conseguia olhá-lo nos olhos, fingia prestar atenção no chão do apossento
-Sim, mas ele já conhecia tudo, ele que me explicou a mesma coisa que te dissemos hoje.
-Eu estou tentando imaginar ele explicando qualquer coisa a alguém.
Ambos riram. As risadas ecoaram pelo quarto e terminaram vários segundos depois por causa do eco.
-Vou para o meu quarto agora. Feliz Natal Oliver, sei que deve ter sido o Natal mais louco da sua vida. -levantou-se da cama
-Um abraço de Natal talvez? Por favor? -Oliver pediu sorrindo com a pouca alegria que lhe restara. Agora encarava o moreno diretamente, com um pouco de vergonha ainda
Benjamin riu e inclinou-se na cama. Abraçou o menor com carinho, adorando o perfume de seus cabelos e o contato de seu corpo. Não queriam que aquele momento terminasse, mesmo que o dia tivesse sido cheio era Natal e passar aquela data sozinho era algo triste.
Oliver sentia o cheiro do outro, um perfume fraco e cítrico. Quando fez menção de terminar o abraço sentiu sua boca ser coberta pelos lábios de Ben. Assim, sem olhares, apenas ações.
Ficou atordoado por alguns segundos, mas logo correspondeu ao beijo. Seus dedos adentraram os cabelos do moreno e puxaram alguns fios. Precisava saber que aquilo era real e não um sonho. Apertou seu pescoço, a pele estava quente, viva, pulsava. Aquilo era desejo puro, sem tecnologias, sem mensagens por toque.
As bocas agora se chocavam com desejo e harmonia. As línguas também se entrelaçavam e compartilhavam o gosto um do outro. Tudo também era novo para Oliver. Ter uma relação com alguém sem usar tecnologias, sem superficialidade, apenas toque sem outro significado, apenas pele, desejo.
Deitaram na cama ainda se beijando. Benjamin parou de beijá-lo para observar seu rosto. E novamente tocou-o delicadamente na face novamente, fazendo desenhos ali com seus dedos.
-Ben...
-Oliver, você é lindo.
Oliver empurrou-o para o colchão e beijou-o gentilmente, querendo guardar na memória cada detalhe, cada toque daquele momento tão diferente em toda sua vida.
Encararam-se e sentiram tudo que estava estampado em seus olhos. Admiração, carinho, vontade. Mas não precisaram compartilhar, conseguiam ler os olhos um do outro. E assim passaram a noite, explorando as novas e tão reprimidas sensações.
______
Acordou com a voz de Viktor nos ouvidos.
-Vejo que a noite foi boa. -Caçador murmurou
Sentiu novamente a raiva tomar conta de si. Estava nu, os lençóis cobriam seu corpo parcialmente, o tronco estava desnudo.
-Roupas na cômoda, vista-se, 10 minutos.
Levantou-se e abriu a gaveta da cômoda. As roupas estavam ali. Ben havia saído no meio da noite, mas não havia percebido nada, apenas sentia ainda alguns toques da noite passada que o deixaram mais lento do que o normal.
Tentou concentrar-se no que devia fazer. O sistema da gaveta era o mesmo que havia em sua casa: de acordo com o humor as roupas apareciam na gaveta. Só que em casa elas apareciam por cima das que já tinha, não apareciam do nada. Naquele lugar elas simplesmente estavam ali para ele colocar.
Desta vez era uma calça jeans preta e uma camiseta branca. Vestiu as roupas com lentidão, sentindo o corpo reclamar por não estar dormindo. Precisava dormir mais. Noite passada não dormira nada.
Saiu para o corredor e só de ver o rosto de Viktor sentiu raiva. Mas controlou-a. Controlou a expressão.
-Se sentindo um pouco estranho hoje Vinte e Seis?
-Não, tudo igual. -engoliu em seco
-Mesmo? Pois eu achei sua conduta ontem peculiar. -falava enquanto seguiam através da sala das esteiras
-Eu estava tentando entender apenas -mordeu a língua. Não sabia se era aceitável, se poderiam descartá-lo por falar aquilo
-Entender? Não há o que entender. Vocês todos servem à cidade, serão Inovadores, terão prestígio no futuro.
Oliver não respondeu e recebeu um olhar curioso do outro. Finalmente entraram em outra sala.
-Você sabe qual o teste de hoje?
-Não... -murmurou apreensivo olhando para todos os cantos do local
-Convencer uma criança a usar nossas tecnologias.
Oliver parou no caminho. Não podia fazer aquilo. Não depois do que soubera na noite anterior. As mãos começaram a suar. O que Ben faria em seu lugar? Fingir. Sentia o suor escorrer pela nuca agora. Não podia.
-O quê? -perguntou como se não houvesse entendido
-Entre na sala e os convença. Agora.
O loiro respirou fundo. Não podia começar a hiperventilar agora. O coração batia acelerado enquanto Viktor o empurrava para uma sala. Lá dentro havia uma mulher e uma menina de 4 anos sentadas atrás de uma mesa. A mulher sorridente, a menina emburrada.
-Olá! Nos disseram que se viéssemos aqui receberíamos informações sobre as novas tecnologias! Mal podemos esperar! -ela irradiava alegria
Oliver olhou para todos os cantos de olhos arregalados. Não havia câmeras. Ao menos não as havia encontrado. Sentou-se na cadeira vazia em frente a elas.
Mostrava uma expressão perdida no rosto, parecia um louco naquele momento. Precisava escapar. Sair daquele lugar, fugir. Entrava em pânico agora.
"Escravizar", "mentira", "controle emocional". Sua mente não parava quieta. Tentava controlar os pensamentos e o suor que lhe escorria pelas faces. Não conseguia.
-Moço? -a mulher o olhava ansiosa
-Não façam isso -conseguiu murmurar baixinho, o mais baixo que pôde- Não usem essas tecnologias porq...
Não pôde terminar. Dois homens entraram e lhe agarraram pelos braços. Oliver começara a chorar e a espernear. Sentia os braços serem apertados firmemente, os pulsos serem puxados para as costas. Gritou e chorou por todo o caminho. O corpo inteiro tremia de raiva. Finalmente a libertara.
Novamente piscou, mas nessa piscada tudo escureceu.
______
-Oliver?
Abriu os olhos. Edythe o encarava com compaixão. Olhou ao redor. Janelas que davam para uma rua movimentada, cheia de outdoors. Barulho de carros, buzinas.
-Onde estou?
-Fora de Kellstone. -ela sorriu
-O que aconteceu? Eu me lembro de ter sido levado, eu não consegui Edythe, não consegui fingir -suspirou com pesar e desistência
-Você foi descartado.
-O quê?! -sentou-se com rapidez na cama
-É isso o que acontece com os descartados.
Oliver franziu o cenho. Não entendia. Estava inteiro, estava vivo.
-Não entendo -olhou para o próprio pulso, o 'Q' não estava mais ali
-Você foi descartado do experimento Oliver. -ela falou com calma
-Experimento? -ele agora sentia um pânico crescente dentro de si. Algo não estava certo ali. Olhou para todos os lados, tudo era diferente, nunca havia estado naquele lugar antes.
-Kellstone é o experimento.
Ainda não entendia. Balançou a cabeça para clarear as ideias.
-Como assim experimento? -a encarava com o cenho franzido
-Experimento do futuro. As pessoas de Kellstone são reais, mas estão lá para nos ajudar, para testar um novo tipo de sociedade, baseada nas tecnologias.
-Então tudo aquilo foi mentira?! -levantou-se de supetão. Sentia mais raiva ainda. A respiração acelerou, o coração batia com força e rapidez, as narinas se dilatavam furiosamente
-Não, tudo foi verdade. Apenas dentro de um experimento.
-Experimento pra quê?! Para iludir pessoas, pra nos fazer enlouquecer? E porque você fez aquele papel de boa moça lá? Eu não entendo nada!
-Acalme-se por favor. Parte desse experimento é descobrir como as subversões se criam, se é possível que nasçam por falhas ou defeitos.
-As tecnologias são reais? Qual parte daquilo foi mentira? -cortou a mulher com rispidez
-"As tecnologias existem, mas a maior parte delas quem criou foi a mente de vocês. Nós criamos a sociedade de Kellstone, nós moldamos as mentes de vocês apenas com palavras e memórias induzidas. É como o efeito placebo. Repetimos tantas vezes que vocês eram capazes daquilo que vocês acreditaram e se tornou possível. É mágico, está sendo mágico.
Tudo começou quando conseguimos voluntários suficientes para criar a cidade. Então a construímos e criamos um modelo de sociedade, com hierarquia, com Caçadores no topo, Inovadores e pessoas Utilizadoras logo abaixo. Queríamos testar as tecnologias antes de introduzi-las no mundo, quais os riscos e efeitos colaterais que elas proporcionam."
Então Oliver lembrou-se de Ben e as lágrimas encheram seus olhos.
-E Ben? -perguntou num murmuro, com medo da resposta
-Em Kellstone, provavelmente te procurando.
-Nada do que ele está fazendo tem propósito! Por que você não o avisa? -gritou
-Ele tem que descobrir por si só. Eles me descobriram ao acaso, eu faço parte do experimento, mas eu sou a peça observadora e que pode mudar o jogo. É tudo um jogo, mas um jogo que pode mudar a história da humanidade. -ela estava calma, lhe explicava com frieza. E pensar que noite passada havia jantado com ela.
-Então por que somos descartados? -enfiou a cabeça nas mãos não aguentando olhar para aquela mulher
-O "efeito placebo" não funcionou em vocês, não são vocês que queremos. Nós queremos os que conseguiram criar uma realidade nova apenas pela indução que fizemos, precisamos de uma sociedade inerte.
-E por que não deixa Bem e Patrick irem embora então? Eles não são úteis para vocês! -gritou
-Nós os estudamos para saber o que deu errado na indução de memórias deles. Benjamin consegue se comunicar pelo olhar, é isso que não entendemos. Então porque ele sente raiva? E Patrick está lá para fazer companhia a Ben, ele é o mais revolucionário -ela riu
-Pra que iludi-los daquele jeito?
-Tudo faz parte do plano Oliver.
-Plano de quem?! -ainda gritava.
A respiração estava acelerada, os olhos arregalados de raiva. Só conseguia se comunicar daquele jeito, gritando, berrando, não acreditava mais em nada. Seu maior desejo seria esquecer que havia vivido tudo aquilo. E voltar para a ignorância? Era mais feliz quando era ignorante.
-Plano do mundo Oliver! Kellstone é financiada por vários países.
-Países?
O que eram países?
-Você aprenderá tudo isso aos poucos. Aqui do lado de cá terá o mesmo conforto que tinha em Kellstone. Terá aulas de readaptação e sociedade, conhecerá os que já foram descartados e terá prestígio. Todo descartado fica famoso aqui. -ela piscou
Oliver só sentia nojo. Sentou-se na cama novamente pensando que iria desmaiar. Sentia dor no estômago, nos ossos, na ele, não sabia dizer. E uma vontade incontrolável de vomitar. E chorava.
Aninhou-se na cama, os joelhos encostavam na cabeça, as lágrimas escorriam em abundância.
-Vou lhe deixar por agora, sei que é muito para assimilar, com o tempo mais dúvidas virão, mas estarei pronta para respondê-las.
Ouviu o barulho da porta fechar-se. Gritou. Como nunca havia gritado antes, até a voz ficar rouca. Até ficar sem voz. Abafou alguns gritos com um travesseiro. Não conseguia parar de soluçar. O rosto tornara-se um vale. Sentia dor nas costas de tanto chorar.
Ouviu a música. A mesma que tocara na sala em que havia estado com Ben. Levantou a cabeça apavorado. Olhou para a parede. Uma tela havia sido ligada e nela passavam vídeos de um lugar familiar. Oliver piscou e aproximou-se do televisor incrédulo.
Viu Benjamin chorando e Patrick o consolando, cantando a música. Sentiu-se vazio. E então as palavras "KELLSTONE REALITY" e logo abaixo: Feliz Natal! apareceram e desapareceram, sendo substituídas por uma propaganda natalina qualquer.
* inventei um nome para uma empresa tecnológica
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