Não sei por quantos segundos inteiros nos encaramos sem dizer absolutamente nada, mas quando me toquei da situação deplorável que eu estava, chorando feito uma criança, abaixei a cabeça e passei por ele quase que correndo.

Caminhei até em casa sentindo um misto de sentimentos horríveis no peito. Era o sentimento da rejeição, da comparação, da insuficiência. Nesses momentos eu me esquecia completamente de todas as minhas qualidades e enxergava apenas as coisas que me faziam ser medíocre.

Suspirei quando pisei dentro da minha casa. Deixei os cômodos escuros do jeito que estava e apenas subi para o meu quarto. Não estava com fome, com ânimo, com nada. Tudo que fiz foi me jogar na minha cama e tentar dormir para terminar logo com aquele dia.

[...]

ㅡ Sophia! Sophia! ㅡ Ouvi gritos e abri os olhos com dificuldade. Observei meu quarto já iluminado pela luz do dia e cocei os olhos. ㅡ SOPHIA! TA VIVA?? ㅡ Fiz uma careta e abri a janela que ficava logo a cima da minha cama. ㅡ Ah, tá bem pelo menos. ㅡ Íris disse assim que coloquei a cabeça para fora da janela. ㅡ Abre aqui.

Não entendi o motivo de ela estar na minha casa aquela hora. Na verdade, eu nem sabia que horas eram.

Puxei o celular. Eram oito da manhã.

Bufei chateada por ter perdido três horas da minha manhã e desci para abrir a porta para ela.

ㅡ Eu trouxe frutas. ㅡ Ela ergueu duas sacolas de mercado quando abri a porta. ㅡ Geralmente eu traria besteiras, mas como você é uma garota saudável. ㅡ Ela entrou na sala da minha casa e já deixou as sacolas sobre a pequena mesa recostada na parede, dividindo a sala da cozinha. ㅡ Me fala... ㅡ Ela me olhou já com a expressão de raiva. ㅡ O que aquele idiota fez?

ㅡ Do que ta falando? ㅡ Me sentei no sofá. Meus olhos ainda estavam pesados, talvez pelo chororô de ontem.

ㅡ Do Nicolas. Conheço você o suficiente para saber que, se tudo tivesse dado certo, você teria me contato ontem mesmo ou quando acordasse no cantar do galo, mas deu sete da manhã e nem sinal de você! Algo estava errado. ㅡ Quis sorrir com o quanto ela me conhecia. ㅡ Me fala, o que aconteceu?

ㅡ O Nicolas tem uma namorada. ㅡ Ela arregalou os olhos.

ㅡ O QUE?? ㅡ Seu grito soou pela casa inteira. ㅡ E... Por que... Por que aquela anta não disse?? Poderia ao menos ter avisado! Nada a ver dizer que tem um ingresso sobrando e não mencionar que o outro ingresso está ocupado com a namorada. Que... Que idiota! ㅡ Ela resmungou tudo aquilo em menos de cinco segundos.

ㅡ Não foi só isso. ㅡ Coloquei as pernas para cima do sofá e apoiei o rosto na mão. ㅡ Ele... Eu inventei uma desculpa para ir embora antes da metade do show, porque eu não estava mais aguentando ver ele e a garota agarrados o tempo inteiro. Sério, Íris, eles se beijavam a cada dois segundos. ㅡ Suspirei. ㅡ Quando saí de perto, ele veio atrás de mim e me puxou para um canto.

ㅡ Não me diz que ele tentou...

ㅡ Não! Pelo contrário, ele quis me avisar que jamais se interessou por mim e me pediu para não contar para ninguém que gostava dele, como se eu gostar dele fosse uma vergonha imensa que ele não quer passar. ㅡ Encarei a televisão desligada, mas logo foquei nela. ㅡ Eu me senti horrível! Parecia até que eu era uma coisa abominável.

ㅡ Abominável é aquele troço que acha que dança bem. Esquece esse babaca! ㅡ Ela levantou e começou a tirar as frutas das sacolas. ㅡ Você é bonita, super talentosa, super gente boa, muito disciplinada e focada nos seus objetivos. Não conheço ninguém que cuida tanto da própria saúde como você. Aquele idiota tinha era que se achar alguma coisa por você ter sentido algo por ele, porque ele não merece nem metade de você. ㅡ Ela virou as costas para lavar as frutas na pia. ㅡ Então, não quero ficar ouvindo você se sentindo mal por causa de alguém como ele. Mesmo se ele fosse a melhor das pessoas, não quero te ver chorando por homem algum.

Sorri ladino ouvindo o sermão dela.

ㅡ Eu sei, eu fui boba. To me sentindo mal agora, não por causa dele, mas porque chorei por causa do que ele disse. ㅡ Encarei a televisão novamente. ㅡ Eu não quero que a opinião alheia me afete tanto. Poxa, eu fiquei me comparando com a namorada dele! Sem contar que chorei igual uma idiota no meio da rua. Um cara até me viu, tenho certeza que me achou maluca.

ㅡ Cara? Que cara? ㅡ Ela começou a cortar as frutas.

ㅡ Eu não o conheço, mas o vi na cafeteria ontem. Ele não é daqui, é gringo. Quando eu saí chorando do show, dei de cara com ele. Isso depois de eu ter pedido para uma estrela cadente para encontrar alguém que goste de mim de verdade. Olha como eu estava maluca! Eu nem ligo para essas coisas. ㅡ Ela me estendeu um pote com morangos e uvas.

ㅡ Bem, o que importa é que já passou. Bola pra frente. Veja a noite de ontem como um abrir de olhos. Porque, se não tivesse acontecido, você ainda estaria gamada nele. ㅡ Ela assentiu. ㅡ Pelo menos você já viu como ele realmente é e agora pode focar seus pensamentos em coisas que realmente importam. Como a aula de hoje. ㅡ Se animou. ㅡ O Kevin está suspeitando que seja alguém de outra turma, o que eu não acho que faça muito sentido, já que somos a turma avançada. Que tipo de aluno prodígio de uma turma intermediária ou iniciante nos daria aula?

ㅡ Vai ver é de uma modalidade diferente. ㅡ Comi um pouco das frutas e ela arqueou a sobrancelha.

ㅡ Pode ser... Faz bem mais sentido. Se for, espero que não seja ballet. Já sofremos o suficiente. Podia ser contemporâneo ou jazz. ㅡ Eu sabia que ela estava puxando papo para me distrair, mas eu não precisava disso. Já me sentia bem. Ontem eu tive um momento de crise, mas agora me sinto bem para encarar as coisas. Como ela mesmo disse, foi melhor que eu tivesse descoberto logo quem Nicolas realmente era e que ele é comprometido, se não ainda estaria que nem uma idiota pensando nele.

A partir desse momento, vou ignorar tudo que tiver a ver com a minha vida amorosa e focar só nos meus objetivos. Eu ainda tenho muito que crescer como pessoa e como dançarina.

A manhã se passou e Íris foi embora antes de dar a hora de irmos para CA, ela não tinha trazido nada e hoje teríamos ballet, então ela precisou passar em casa.

Eu me arrumei tendo plena certeza de que faria o meu dia ser bom apesar de tudo. Eu merecia ter um dia bom. Mesmo que eu visse Nicolas no estúdio, não deixaria isso me abalar. Ele me acha pouco pra ele? Dane-se ele! Ele que é pouco para qualquer mulher que exista.

Fui para o estúdio como se nada tivesse acontecido. Cumprimentei todo mundo, entrei na sala e já me sentei no chão para me alongar.

Quando eu estava me sentindo pra baixo ou estava com um problema que vinha tirando a minha paz, eu gostava de olhar a vista da cidade pela janela. Pensava em como o mundo era grande, em como eu ainda queria conquistar muitas coisas, e em como esses problemas não chegam nem aos pés da grandeza dos meus sonhos. Isso sempre me motiva a não ligar para essas coisas.

Um falatório começou a soar e notei que os alunos começaram a chegar. Todos pareciam empolgados e curiosos com relação a aula de hoje. Eu já não estava ligando tanto.

Kevin e Nicolas atravessaram a porta juntos e Kevin já sorriu e veio na minha direção. Nicolas pareceu meio sem saber o que fazer, mas seguiu o amigo.

ㅡ E aí, Sophia! ㅡ Se sentou no chão ao meu lado. ㅡ Como foi o show ontem? Eu perguntei pro Nicolas, mas ele só sabe dizer: Legal.

ㅡ Digamos que eu aprendi muito sobre o seu amigo. ㅡ Disse de uma maneira a deixar muitas interpretações, mas ele pareceu confuso.

Íris entrou na sala e logo atrás veio Mônica. Ela deixou a porta aberta e parou na frente da sala. Todos nos colocamos de pé e a observamos.

ㅡ Como prometido, um aluno dará aula hoje. Ele não é daqui do Brasil, ele veio diretamente do estúdio matriz na Califórnia. E... Vocês devem conhecer o pai dele, Lill Sugg. ㅡ Foi nesse momento que o queixo de todo mundo caiu. Lill Sugg era como uma lenda no estúdio da CA. Ele praticamente ajudou a fundar, foi um dos primeiros dançarinos e era o melhor em todas as modalidades que ele fazia. Ele viajava por vários lugares para conhecer culturas e acrescentar novos passos em suas coreografias. Infelizmente, ele faleceu em cima do palco durante uma de suas apresentações. ㅡ Assim como o pai, ele busca por novas culturas e passos. Ele ficará conosco por um tempo e pedi que desse a aula de hoje. Trevor? ㅡ Ela encarou a porta.

O burburinho pela sala começou e todos olharam para a porta com atenção. Íris parou perto de mim e cochichou algo, mas não consegui prestar atenção quando quem vi entrar foi o cara gringo da cafeteria.

•••
Continua...