Tarcisio quer existir
Se lembram do Tarcísio? Sim, aquele nosso amigo que nasceu gente, mas queria viver como bicho. Não deu. Pobre animal em corpo humano, foi vencido — ou libertado — pela sua condição.
Era assim que nosso protagonista se sentia, mais animal que gente, uma vez que não conseguia controlar seus impulsos na busca desenfreada por satisfação. Era atraído pelo perigo assim como um Imã pelo metal.
Lá estava ele novamente, em um novo trabalho, cheio de planos, certo de que dessa vez seria diferente. Vivendo com uma jovem disposta a acompanhá-lo em sua busca por um caminho diferente, até surgirem os desafios de sempre.
— Tarcísio, você gostaria de me acompanhar hoje ao restaurante no horário do almoço? Queria conversar sobre algumas dúvidas referente ao trabalho aqui na empresa. Convidou nova a colega, recém contratada, para trabalhar no mesmo setor em que ele atuava.
— Claro, será um prazer ajudar. Concordou Tarcísio.
No trajeto do restaurante as mudanças em seu comportamento já eram visíveis. Encarnou o macho alfa: peito erguido, olhar seguro, o tom de voz mais grave.
— Caramba, mais essa agora?
Pensou Tarcísio, sentindo se aproximar-se do perigo eminente de cair em tentação. Entraram no restaurante simples que ficava ao lado da firma. Serviram-se e ele anuncio a colega que naquela sexta feira se permitiria tomar uma cerveja no horário de almoço. Não faria mal algum aquele pequeno pecado. Além do mais, ninguém precisaria saber. Serviu um copo a camarada, que se mostrou receosa, mas aceitou. Brindaram.
Um gole de cerveja, uma garfada no macarrão, uma troca de olhar. Outro gole na cerveja, outro olhar, dessa vez mais demorado. Mais um gole e a troca de olhar começava a revelar desejo de algo a mais. Novas garfadas, agora seguidas de gargalhadas. Mais uma cerveja porque ele estava pagando e ninguém tinha nada a ver com isso.
A colega interveio:
— Tarcísio, já estamos atrasados para voltar ao trabalho. Comecei agora na empresa, não posso dar nenhum fora. Então a versão "Tarcísio poderoso" entrou em cena.
— Relaxa, o que eu falo naquela firma é lei. Fica tranquila que nada vai acontecer a você.
Está comigo, está com Deus.
E então o grande herói começou a contar uma série de histórias que reforçavam para a moça o quanto ele tinha poder dentro da empresa. Ela ouvia com entusiasmo. Sentia-se confortável ao lado de alguém que oferecia essa segurança. E era exatamente a sensação que ele esperava despertar enquanto contava suas lorotas.
Algumas cervejas e muitos olhares sedutores depois...
— Meu Deus! já são quase três da tarde, Tarcísio! Todos já devem estar nos procurando no trabalho, precisamos voltar. Ela inquiriu.
— Ah! mas agora nem vale a pena voltar, estamos atrasados mesmo e daqui a pouquinho é hora de ir embora. Vamos dar uma volta, logo mais retornamos pra buscar sua mochila e a minha na firma.
— Ai Tarcísio, eu não sei... Ela continuaria na tentativa de criar uma desculpa, mas foi interrompida:
— Garçom, fecha pra gente, por favor. Ela leva as mãos ao rosto, tentando esconder uma risada desconcertada, e pensa em voz alta: —Ai meu Deus, o que estou fazendo? Ele sorri de volta e o garçom chega com a conta. Tarcísio leva a mão até o bolso e com uma expressão de incredulidade, fala:
— Caramba! Mano do céu, esqueci minha carteira na empresa. Está na minha mochila. Nem lembrei de trazer quando saímos.
— Calma Tarcísio, ela intercedeu. Não se preocupe, estou com minha carteira aqui na bolsa. Aceita cartão de crédito? Ela pergunta ao garçom. Recebendo uma afirmativa, a colega paga a conta do restaurante.
Chamaram um veículo de aplicativo e seguiram para o lugar que ele deseja apresentar a ela.
— Você vai gostar de conhecer minha casa, ele afirmou enquanto se sentava ao seu lado no banco do carona, segurando a mão da garota e acariciando.
Ela cobriu o rosto com a mão livre, sorriu e balançou a cabeça negativamente, como se dissesse, "Meu Deus! o que estou fazendo?".
Chegaram ao destino. Como ela já sabia que ele estava sem a carteira, pagou a corrida ao motorista. Desceram do veículo e entraram por uma ruazinha estreita onde muitas crianças brincavam. Caminharam por uns cento e cinquenta metros e chegaram a uma casa grande com várias portas. Cada entrada era uma casa. Embaixo de um tapete em uma dessas entradas estava a chave da casa de Tarcísio. Ele abriu a porta, e sob o olhar dos vizinhos conhecedores de sua fama de mulherengo, entrou com a colega fechando a porta atrás deles. Quando a chave girou na fechadura o homem não contou conversa, agarrou a colega e a beijou com voracidade. Roupas voaram pela casa, gemidos, sussurros e um episódio de sexo quente consolidou-se. Exaustos e ainda sob o efeito da bebida, o casal adormeceu. Para serem acordados poucas horas depois pela esposa ultrajada e furiosa.
Lembram da plateia na entrada da ruazinha? Pois é, deduraram Tarcísio pra sua mulher, e ele se deu mal.
A impostora, deslocada e envergonhada, se vestia rapidamente enquanto o sedutor tentava se explicar e conter a esposa enfurecida.
Vestida mas descalça – não conseguia encontrar as sandálias – a colega saiu correndo por aquela ruela estranha, atordoada, sem saber pra onde ir, mas precisando desesperadamente sair para qualquer lugar longe dali.
Aquele episódio tinha sido a gota d'agua. A esposa estava cansada de ser traída, e dessa vez em sua cama! Não dava mais, arrumou as malas e saiu de casa. O aventureiro estava sozinho novamente.
Passou o final de semana em sua cadeira com a habitual companhia do copo de cerveja. Tentou contato com a esposa por várias vezes sem sucesso. Não sabia onde ela estava, não a encontrou onde procurou. Da parceira de trabalho não tinha nem o telefone. Lhe restava apenas encher a cara e esperar chegar a segunda feira, quando retornaria ao trabalho e talvez a esposa aparecesse em casa. Mas a solidão e o peso da culpa deixaram os ponteiros do relógio lentos, a hora custava a passar.
Os pensamentos explodiam em sua cabeça, tanto quanto milho de pipoca no óleo quente. Não conseguia evitar. Pensava em sua vida, em seus objetivos recém traçados. fazia planos, mas era aparecer uma fêmea de sua espécie no caminho e o lado racional tomava a forma de um corpo feminino. Não conseguia resistir.
Um longo período de existência vivendo para satisfazer seus instintos tinham cobrado a conta. Agora sentia-se cansado, queria poder suavizar um pouco mais a vida, diminuir o ritmo, seguir o compasso da maioria que já passou dos cinquenta anos. Mas o que fazer com aquela energia infinita que o impelia a ação? Queria parar, mas não conseguia. Uma agitação, uma angustia, o desejo de paz em conflito com a inquietação que estava em sua essência, que dominava sua vontade.
Desejava viver outras experiencias diferentes daquele filme repetido que havia sido sua história. Gostaria de dar um novo rumo a vida que ainda tinha pela frente. Talvez se manter em um emprego por pelo menos um ano, sem cansar tão rapidamente da rotina; dividir a jornada com uma companheira, sem a busca desenfreada pela conquista de uma outra; outras tantas pessoas conseguiam, porque era impossível para ele? Não sabia, mas sentia como se fosse.
Seu grande desafio sempre foi o demônio aventureiro que existia dentro dele. O objetivo de dançar conforme a música, invariavelmente, era vencido pelo desejo de transgredir, de experimentar o perigo, o emocionante, o proibido, o intenso, o avassalador, que via de regra, causava destruição.
Quanto começou o novo trabalho, estava determinado a passar de fase naquele jogo. Tinha inteligência, sabia que tinha. Sobrava charme, simpatia e jogo de cintura. Era benquisto por onde passava. Pelo menos no começo, porque quando precisava seguir regras e rotinas, a confusão estava feita.
Na segunda feira quando chegou ao trabalho, tinha um discurso de justificativa da sua ausência, perfeitamente ensaiado. Não houve tempo o suficiente, a colega tinha passado na sala do RH e assinado sua demissão. Tarcísio foi convidado a fazer o mesmo logo em seguida.
Tentou se aproximar da moça agora desempregada, mas estando muito assustada com os últimos acontecimentos e com medo que seu marido descobrisse a infidelidade, preferiu não manter contato. Permaneceu sendo uma aventura. Com consequências, claro. Mas apenas uma aventura.
No trajeto de volta pra casa, no banco do ônibus, tinha a sensação de que sua vida era a própria sessão da tarde, sempre com episódios repetidos. Quantas vezes tinha acontecido antes, ser dispensado do trabalho por conta de alguma contravenção? Nem conseguia lembrar.
Sentia-se deprimido, como normalmente acontecia após colher os frutos amargos de um péssimo plantio. Queria poder trocar as sementes antes da próxima semeadura. A sensação de conquista e a sensação de fracasso andavam de mãos dadas em sua vida. Não conseguia desvencilhar uma da outra. Cada vez que vivia a euforia de uma nova conquista, fosse financeira, sexual ou apenas ludibriar alguém com uma mentira bem elaborada, invariavelmente chegava a conta para pagar.
Há alguns anos ele vinha repetindo pra si mesmo:
— Estou cansado disso. Estou cansado da forma como as coisas acontecem em minha vida. Meu Deus do céu, não sei porque as coisas acontecem comigo sempre do mesmo jeito.
Chegando em casa, seu fiel companheiro estava a espera. O copo de cerveja nunca falhava, seguramente estaria ali. Passaram aquela semana juntos, inseparáveis. Ele cozinhou, comeu, bebeu, viu TV, dormiu, acordou, bebeu de novo. Mas não saiu de casa, estava farto das mentiras que inventava para as pessoas sobre estar novamente desempregado. Preferia não dar explicação, não encarar a realidade de que o aluguel iria vencer, a comida iria acabar e sua bebida também. Esta ultima acendeu um sinal de alerta. Suportaria ficar sem comer por um tempo, mas sem o anestésico que o salvava da dor de existir? Ah não, sem isso não podia ficar!
Ao final de alguns dias, sentia-se fraco, desanimado e com pensamentos suicidas. Sabia que isso não era bom. Sua natureza opositora não lhe permitiria sucumbir aquela fraqueza. Sabia que precisava fazer algo. E fez.
No final de sua desoladora semana, reagiu. Levantou-se do sofá, tomou um banho, escovou os dentes, vestiu uma roupa limpa e foi ao médico. Pediu ajuda. Precisava de ajuda até que aquela fase ruim passasse. Algumas perguntas, algumas respostas, uma medicação receitada e a recomendação de que iniciasse alguma atividade física.
Seguiu para casa com a mesma abatimento de antes. Se um conhecido o encontrasse pelo caminho reagiria com estranheza aquele comportamento atípico em Tarcísio. Mas para sua alegria não encontrou.
Novamente estava naquele ambiente que o lembrava de sua realidade. A casa suja, nenhum sinal de vida da esposa — ou certamente ex eposa, a tv, a cerveja. Mas agora também tinha em mãos a medicação indicada pelo especialista. Ele recebeu essa nova integrante naquele mundinho como quem olha para um pingo de chuva. É só mais um pingo. É só mais uma coisa sem importância naquele filme reprise de sua vida. Tomou o remédio. Mas também seguiu bebendo o líquido maravilhoso que o conduzia a realização de seus sonhos, o lugar onde era tudo aquilo que desejava ser, onde tudo era possível.
Mais alguns dias de bebida e isolamento e o telefone toca para lembrá-lo do aluguel atrasado. O maldito risco de ficar sem um teto, que o perseguia desde que conseguia se lembrar, chegava novamente para lhe dizer que ele não podia mais ficar deitado no sofá, vendo tv e bebendo. Não tinha como fugir da vida adulta. E não tendo mais alternativa, levantou-se e tratou de se mexer.
Limpou a casa, organizou a bagunça, deliciou-se com um belo banho, alimentou-se e saiu para procurar um novo ganha-pão. Mas dessa vez, motivado pela falta de dinheiro aliada ao conselho medico de exercitar-se, foi a pé. Fez o trajeto de volta utilizando o mesmo meio de transporte. Chegou em casa exausto. Ainda não tinha conseguido trabalho, mas curiosamente sentia-se tão relaxado como se tivesse tomado uma ducha quente em um dia frio. Isso era bom, sua inquietação estava contida naquele momento. Como era agradável sentir-se livre daquele excesso de energia, ainda que de vez em quando.
Na manhã seguinte acordou bem cedo e disposto. Aproveitou para fazer mais uma caminhada como aquela do dia anterior, responsável por acalmar sua inquietação. No outro dia foi novamente. E continuou por vários dias seguidos.
Notou que seus pensamentos estavam mais calmos, retomou o contato com familiares e amigos mais próximos. Continuou com a medicação e agora não apenas caminhava, como também corria. Correr tinha mais a ver com sua natureza desafiadora.
Tempos depois havia conseguido um novo emprego. Tinha uma lábia irresistível, não ficava muito tempo desempregado. O desafio era manter-se no emprego. A dificuldade para seguir rotina por um longo período de tempo; a rebeldia que o fazia bater de frente com figuras de autoridade, aliados ao desejo de viver novas emoções, o transformavam em uma bomba prestes a explodir diante dos primeiros conflitos.
Não tinha sido diferente daquela vez. Mais um mês de aluguel pago, corridas diárias, a rotina de bebida enfraquecida, algumas conquistas sexuais, repetidos confrontos com o superior direto e mais uma demissão. Era inevitável. O sangue subia e ele não conseguia controlar as palavras.
Novamente o filme repetido da sessão da tarde. Mas dessa vez houve uma variação. Sua fúria e revolta não foi descontada na bebida, mas na corrida. Tinha entendido que correr exorcisava seus demônios mais rapidamente.
Começou a participar de corridas profissionais. Com organização, trajeto, roupas específicas, torcida no percurso e medalhas. Caramba, era incrível como o reconhecimento por superar seus limites e ir além das próprias expectativas podia ser tão gratificante! Mas tinha algo que o motivava ainda mais. Os aplausos! Ah, os aplausos eram divinos! As pessoas gritando palavras de incentivo pelo trajeto, os olhares de aprovação, e as palmas ao final da corrida, eram quase um orgasmo para aquele homem obcecado por troféus.
A prática esportiva tornou-se tão presente em sua vida quanto o ar em seus pulmões. Corria sempre, quase todos os dias e sentia falta quando por algum motivo não podia seguir essa rotina.
A bebida foi relegada a um segundo plano. As conquistas femininas... bem, essas não deixaram de se fazer presentes, mas agora já não contava tantas vantagens mentirosas para impressionar as mulheres. Não precisava dizer que era advogado, juiz, médico ou qualquer outra posição social que impressionasse as garotas. Em vez disso exibia suas medalhas, sua força de vontade, a superação das próprias barreiras. Algo em seu interior havia mudado. Sentia-se como se tivesse deixado de ser uma farsa, como se fosse real, finalmente. E a cadeira, aquela onde invariavelmente sentava-se para limitar-se a sua insignificância... bem, essa estava ficando empoeirada, pois quem descobriu essência não se conforma mais com aparência.
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