Parte IV
STEPHENS ERA DO TIPO QUE NÃO LEVAVA DESAFORO PARA casa. Quando era agredido, revidava; e não se importava com as consequências, sejam elas quais forem. Seus contatos encobriam absolutamente tudo: desde as trapaças para eliminar um adversário, até os subornos feitos para que a vitória fosse sua.
Contudo, uma pedra bastante incômoda atravessou o seu caminho e abalou seus planos perfeitamente traçados.
Stephens não contava com o fato de que o novato fosse honesto o suficiente para achar seu suborno ofensivo. E quando ouviu Harket dizer que não se venderia por nenhuma quantia de dinheiro, por mais alta que fosse, seu sangue ferveu tamanha sua raiva. E Harket ainda teve a audácia de falar que só desistiria do Grand Prix se estivesse morto.
Obviamente, o novato não sabia com quem estava se metendo, e, talvez, se soubesse, teria se mantido calado. Contudo, como não era da sua natureza desistir, Morten, talvez inconscientemente, tenha aceitado o desafio mostrando-se um adversário difícil de ser derrotado.
O anseio de um dia realizar seu sonho era o combustível que o mantinha ativo, a força de que precisava para não desistir. E por mais que Stephens tenha tentado eliminá-lo por diversas vezes, todas, em absoluto, falharam. A cada acidente ocorrido durante os treinos ou as corridas, a cada soco proferido, a cada briga perdida e cada ameaça ouvida, sua força de vontade crescia.
Todavia, agora que não sentia mais aquele denso e sufocante vazio dentro de si, Morten via as coisas por uma perspectiva completamente diferente. E essa nova perspectiva o agradava em demasia.
A bela mulher que era sua companhia a mais ou menos uma semana fazia com que seu coração batesse em um ritmo totalmente diferente; fazia com que seu sangue fervesse em suas veias, colocando seu autocontrole em prova; e fazia com que um desejo ardente de ser alguém melhor para ela e por ela, tomasse conta de todo o seu ser. Esse desejo tirava-lhe o sono e, enquanto a observava dormir, a vontade de pertencer a um mundo cheio de cores e sabores, crescia.
Harket queria ser real e não um simples e insignificante rabisco.
Claire acenou para ele da arquibancada e, mesmo a uma certa distância, Morten viu que ela sorria.
Ela sempre sorria para ele quando seus olhares se cruzavam. Achava difícil não sorrir. Assim como achava difícil não achá-lo irresistível com aquela jaqueta de couro.
Claire reparou que os últimos dias passaram tão rápido quanto um carro, ou uma moto, de corrida. Ao lado de Morten ela se sentia especial, única... completa. Nunca, em toda a sua vida, chegou a cogitar que poderia se sentir assim ao lado de alguém, com alguém. Definitivamente, Harket apareceu para lhe provar que tudo era possível.
E, por Deus!, como ela desejava estar ao lado dele a cada instante, ajudando-o e apoiando-o. Desejava, com todo o seu coração, pertencer ao mundo totalmente desprovido de cor ao qual ele pertencia, mesmo que isso significasse abrir mão de suas cores e de seu mundo.
Harket se ajeitou em cima de sua moto e acelerou, saindo do campo de visão de Claire. O ronco do motor reverberando por todo o autódromo e preenchendo cada recanto vazio dele.
Enquanto fazia seu último treino antes do tão esperado GP, Morten sequer imaginava que era observado atentamente. Dois adversários espreitavam das sombras.
Por mais que Nolan admirasse a ousadia de Harket e sua habilidade em cima de uma moto, ele sentia inveja do sucesso conquistado pelo jovem piloto.
E, percebendo o quão fácil era manipular o companheiro de equipe, Stephens alimentou essa inveja, conseguindo, assim, um cúmplice para ajudar em sua vingança. Harket o humilhara diversas vezes ao longo da temporada, e, além de ter frustrado seus planos, roubara-lhe o lugar de queridinho da mídia.
Harket iria pagar caro. E, se dependesse de Stephens, o preço a ser pago seria sua vida.
A armadilha foi armada em uma das curvas da pista perto da linha de chegada.
Um estouro soou e Claire sobressaltou-se. E como em câmera lenta, ela viu Harket perder o controle da moto. Ele tentou segurar a direção com mais força e, por mais que seu reflexo fosse bom, perdeu totalmente o controle. A moto derrapou e tombou e quando por fim parou, estava com ela em cima de sua perna direita.
Claire desceu a escadaria da arquibancada, pulou o alambrado e correu até o local do acidente.
Harket havia se arrastado, saindo debaixo da moto. Sua calça estava rasgada e Claire pôde ver que ele estava machucado.
— Morten! — chamou ela, tentando conter o desespero que ameaçava tomar conta de si, se ajoelhando ao lado dele.
Ele gemeu e com dificuldade, sentou-se na grama.
— Você está bem? — indagou ela, preocupada, tocando seu rosto assim que ele se livrou do capacete.
— Estou — respondeu ele, tomando a mão dela e beijando sua palma.
Toda vez que ele a beijava era a mesma coisa: Claire sentia-se derreter como um sorvete exposto ao sol.
— Tem certeza? — perguntou ela, após a breve tontura ter passado. — Não é melhor irmos ao hospital? Sua perna...
— Tenho e não se preocupe. Este não é o primeiro acidente que sofro — gemeu ele, ao tentar se levantar.
Morten mancou até a sua moto e, com dificuldade, a levantou, analisando-a com o cenho franzido.
— O que é isso? — inquiriu Claire atrás dele, sua voz assumindo aquele tom de curiosidade que se tornou tão familiar para ele. É incrível como algumas pessoas tornam-se tão familiares para nós em pouco tempo. Temos a impressão de que a conhecemos a vida toda.
— O quê? — respondeu Morten, virando-se para encará-la.
— Parece um tipo de cruz. Me lembra um asterisco — falou ela.
Ele mancou levemente até ela, suas feridas ardiam e sua pele repuxava, mas pelo menos não batera a cabeça.
— Deixe-me ver — pediu ele, estendendo a mão. Claire lhe entregou o objeto cor de grafite e pontudo, um pouco maior que uma uva. Realmente lembrava um asterisco e, embora nunca tivesse visto antes, sabia perfeitamente o que era.
— Olha, tem mais — exclamou ela.
Ele olhou para Claire que se aproximava com a mão cheia de pequenos asteriscos pontudos.
— O que são?
— Armadilhas — respondeu ele, com o cenho franzido, chegando a conclusão de que aqueles pequenos objetos eram os responsáveis pelo seu estranho acidente —, usadas para estourar pneus de carros, motos e caminhões em rodovias. Geralmente são usadas por assaltantes.
— Mas... não estamos em uma rodovia — falou Claire, uma nota de confusão em sua voz. — Não entendo.
— Eu entendo — disse ele, pensativo.
— Hã, Morten... — chamou Claire, sua voz um pouco mais alta que um sussurro.
Não foi o tom de confusão na voz de Claire ou seu sussurro que fizeram com que Harket sentisse um arrepio gélido percorrer sua espinha. Fora o temor contido em sua voz, mas evidente em seus olhos.
Ao se virar, Morten viu que Stephens e Nolan se aproximavam. Estavam armados, cada um segurando uma chave de grifo. Morten duvidara da promessa de vingança de Stephens. Devia ter escutado seu velho pai e nunca ter subestimado o adversário. Ou suas marionetes.
Na tentativa de proteger Claire, Harket se posicionou na frente dela, formando um escudo. Então, com seu típico tom provocador, disse:
— Ora, ora, ora, mas que agradável surpresa! A que devo a honra? Juro que se soubesse que passariam aqui para me ver, teria preparado uma recepção para recebê-los.
— Não venha com brincadeiras para o meu lado, Harket. Sabe perfeitamente por que estamos aqui — falou Stephens, a voz contida, mas o olhar cintilando de ódio.
— Sei? — provocou Morten, fazendo cara de pensativo. Ele sabia que estava brincando com fogo, todavia, precisava manter a atenção deles toda para si, assim, quando chegasse o momento e desse o sinal, Claire conseguiria fugir. — Acho que não. Poderia fazer a gentileza de refrescar minha memória?!
— Não brinque comigo, Harket — sibilou Stephens.
— Quem está brincando aqui, meu caro amigo? — indagou Harket, em tom de deboche. — Eu só lhe fiz uma pergunta.
— E vai ter sua resposta — anunciou Nolan, batendo a chave de grifo na outra mão, ameaçadoramente.
Morten olhou de Stephens para Nolan várias vezes, então, seu sorriso debochado se desfez.
— O que quer, Stephens? — perguntou ele, sério, atento a cada movimento deles.
— Tenho uma proposta para lhe fazer.
— Faça.
— Quero que desista do Grand Prix.
— Nunca — respondeu Morten, cruzando os braços sobre o peito.
— Bem, então o obrigaremos a desistir — falou Nolan, com um sorriso diabólico no rosto.
— Posso saber como farão isso? — indagou Harket, as batidas de seu coração cada vez mais rápidas.
— Matando-a — respondeu Stephens. O ódio em seus olhos tornava-se cada vez mais evidente, e mais palpável. — Mas acho que Nolan não se oporia a uma diversão antes.
Um arrepio começou na base da espinha de Claire e percorreu todo o seu corpo, deixando um rastro gélido de pânico. A imagem de Nolan em cima de si, com Morten vendo-a se debater, incapaz de ajudá-la, tomou conta de seus pensamentos. Seu coração começou a bater de forma frenética e o medo bateu-lhe a porta, ameaçando tomar posse de si.
— Maldição! — praguejou Morten, baixo o bastante para que ninguém o ouvisse. Ele não queria desistir do seu sonho. Durante toda a sua vida, fora a ânsia de conquistar os louros da vitória do Grand Prix que o motivara a seguir em frente. Nunca humilhara ou passara por cima de ninguém, nem rompera com seus princípios. Mas nunca cogitara a ideia de desistir.
Assim como nunca pensara que algum dia amaria alguém mais do que sua própria vida. O amor que sentia por Claire era tão profundo e intenso que, em seu breve instante de meditação, chegara à conclusão de que poderia viver sem ter ao menos competido pelo Grand Prix, e até poderia cogitar a ideia de aposentar-se das pistas, mas não poderia viver sem Claire. Uma vida sem Claire seria completamente vazia. E o mataria lentamente. Muito lentamente.
Preferiria desistir a viver em um mundo em que Claire não pertença mais.
Confundindo os segundos de meditação de Harket com relutância em aceitar a proposta, Nolan decidiu que já era hora de persuadi-lo. Ele investiu contra Morten, mas foi bloqueado, levando um soco na boca do estômago. O golpe roubou o ar de seus pulmões por alguns instantes, dando a Morten a oportunidade de salvar Claire.
Stephens agarrara Claire, porém, teve dificuldade em mantê-la presa entre seus braços, visto que ela se debatia demais.
— Fique quieta, sua vadia — resmungou ele, entre dentes.
― Isso é para você aprender que ninguém ofende a minha garota ― sibilou Morten, desferindo dois socos em Stephens.
Claire caiu no chão no instante em que Stephens bloqueava o terceiro golpe de Harket e o atingia com a chave de grifo. Morten vacilou e quase foi atingido por trás por Nolan, quando o grito de Claire o despertou de seu atordoamento. Mesmo cambaleando, ele conseguiu se desviar do golpe de Nolan que, por pura sorte do destino, acertara Stephens.
Aproveitando a oportunidade que o destino lhe dera, Harket segurou Claire pelo pulso e correu. Apesar de sentir dores na perna e ver o mundo ao seu redor sutilmente fora de foco, ele conseguiu conduzi-la rapidamente à área dos boxes que correspondia a sua equipe.
Após alguns instantes — que para Claire pareceram durar uma eternidade — revirando um dos armários, Morten conseguiu encontrar um pé de cabra no meio das ferramentas. Ele atravessou o box e começou a golpear uma das paredes vazias uma, duas, cinco vezes, até que um buraco tivesse se formado.
― Essa passagem leva a cafeteria ― gemeu ele.
― Não vou sem você ― avisou Claire, com urgência.
― Não é hora para teimosias. Vai.
― Já disse que não vou sem você!
― Maldição! ― Morten cobriu a pouca distância que os separavam, a tomou nos braços e a beijou com sofreguidão.
― Vai logo ― pediu Harket, olhando-a fundo nos olhos.
― Morten... ― disse ela, em um sussurro.
― Vai.
No momento em que ela se afastava, ele a puxou de volta e a envolveu com seus braços. A boca dele tomando a dela para si em um beijo intenso e ardente, fazendo com que seu coração martelasse dentro de seu peito e as borboletas, que sequer sabia que tinha, voassem sem rumo em seu estômago.
― Amo você ― confessou ele, em um sussurro.
Claire piscou surpresa. Seu coração dando um leve solavanco.
No instante em que iria dizer que também o amava, Nolan e Stephens apareceram na entrada dos boxes.
Claire correu para o portal aberto na parede e entrou. A escuridão a envolvendo de tal maneira, que ela achou que não veria a luz do dia novamente. Enquanto avançava, sentiu uma pontada, uma dor aguda dentro de si ao constatar que não voltaria a ver Morten. E que sequer dissera o quanto o amava.
🏁 🏁 🏁
Antes de mais nada, FELIZ ANO NOVO! Que Deus os abençoe neste ano que se inicia!
Segundo, peço desculpas pela demora com a publicação, fiz uma coisa que em meus vinte e cinco anos de vida nunca havia feito: eu viajei neste fim de ano! E como foi gostoso!
Bem, sem mais delongas, aí está a parte 4 de TOM... Espero que estejam gostando dessa pequena loucura rs
Dentro de dez dias, mais ou menos, sai a parte 5, e não, desta vez não me atrasarei com a postagem, afinal, o capítulo já está revisadinho hehe
Até mais!
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