Capítulo 1 - All Hallows Eve
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I keep on banging on those walls
Getting up when pushed to the floor
I keep on shouting
Can't keep this worthless hope alive
Everyday is a new way to die
I keep on fighting
Eu continuo batendo nessas paredes
Levantando-me quando empurrado para o chão
Eu continuo gritando
Não posso manter viva essa esperança sem valor
Todo dia é uma nova maneira de morrer
Eu continuo lutando
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31 de Outubro de 2018
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O braço em riste doía com o peso da arma e os músculos dos ombros estavam tensos. Pé ante pé, ele se aproximou. Até a respiração era controlada para não chamar a atenção do habitante do apartamento para o qual se dirigia.
Pelo que o haviam informado, estava esperando um pandemônio, gritos e destruição; não aquele silêncio mórbido.
Não fazia ideia do que poderia encontrar lá dentro.
Alcançou a porta e foi seguido pelo colega. Seus dedos se fecharam na maçaneta. Não esperava que ela estivesse aberta, mas estava. Girou-a com cuidado e praguejou baixinho ao ouvir o som de suas botas triturando fragmentos de vidro.
Por alguns segundos, nada aconteceu. Nenhum indício de que alguém viria atrás deles. Mesmo sua cabeça, que doía de forma estranha há dias, resolveu dar uma trégua ante a expectativa.
Um arrepio o percorreu ao perceber que nada indicava que tinha alguém vivo ali dentro, e ele resolveu agir antes que fosse muito tarde — se é que já não era.
Acendeu a luz, que revelou o ambiente: móveis quebrados, alguns itens tão destruídos que ele nem fazia ideia do que poderiam ser espalhados pela sala, paredes sujas de sangue.
— Andrei — chamou Harold Jenkins, baixinho. Tinha se afastado para inspecionar o restante da casa e devia ter encontrado algo estranho. — Ele está aqui.
Ignorou a sensação ruim que voltou a tomá-lo e seguiu o colega em silêncio. Os dedos continuavam rigidamente fechados ao redor do revólver, prontos para qualquer emergência.
Porém o que encontrou ali dentro fez suas sobrancelhas se unirem em sinal de descrença.
— Ele está vivo?
— Mais pra lá do que pra cá, mas está.
Andrei lançou um olhar ao redor antes de entrar no quarto. Não havia um móvel no lugar, um item de decoração inteiro. Nem mesmo as fotografias na parede haviam escapado, como se um furacão tivesse passado por ali.
No chão, deitado, meio largado sobre um colchão velho caído a um canto, jazia quem — segundo os vizinhos — era o responsável por colocar a casa de pernas para o ar.
Agachou-se ao lado do rapaz para analisá-lo. Cortes profundos nas mãos, um hematoma na lateral da cabeça, pedaços de vidro quebrado cravados nos pés descalços, sangue seco na roupa e o olhar vidrado focado em um ponto qualquer da parede branca.
Precisou observar com cuidado para ver que o peito ainda subia e descia, indício de uma respiração leve e irregular.
— Chame uma ambulância — ordenou com a voz grave.
Robert Bentley era o único suspeito do homicídio da namorada, Hilary Ford, há pouco mais de vinte e quatro horas. Segundo os poucos depoimentos que tinham até então, da família e alguns amigos da moça, as brigas eram frequentes; mas o que realmente acontecera na fatídica noite ainda permanecia um mistério.
Enquanto ouvia o outro policial chamar o socorro médico, percebeu que as respostas ainda demorariam a chegar. Antes de mais nada, precisavam salvar sua vida; e era impossível dizer quanto tempo aquilo iria levar.
Ou se conseguiriam.
— Doces ou travessuras? — berraram as crianças sorrindo em uníssono, para alegria do casal que abriu a porta.
Involuntariamente, Felicia sorriu também ao ver as reações dos Cleidermann logo mais à frente.
O quinteto composto por dois meninos e três meninas se destacava do restante dos pequenos grupos por ser, de longe, o mais animado, colorido e com fantasias diferentes. Os dois irmãos gêmeos mais velhos, Claude e Claudia, eram um zumbi e uma fada. Trevor, o do meio, viera de pirata. Louise se vestia como uma pequena astronauta e, por último, vinha sua Gatinha.
A ideia viera de Andrei — é claro — e Katterina aceitara de pronto, forçando a mãe a gastar o tempo livre rodando lojas de fantasia na cidade até encontrar uma de gatinha preta que coubesse exatamente sua pequena.
No começo, dera bastante trabalho, mas ao vê-la no macacão felpudo com rabinho arrastando no chão, máscara com bigodes de nylon e tiara com orelhinhas de gato, era impossível não achá-la a criatura mais fofa do mundo.
De dentro da casa, surgiu um pequeno vampirinho com sangue falso pintado no rosto, logo seguido pelo pai. O grupo de fantasiados ganhou mais um membro e ela, uma companhia.
— De que está vestida? — perguntou, sorrindo, Clive Cleidermann. Abaixou-se de leve para os habituais dois beijinhos no rosto da vizinha.
— De detetive à paisana — ela retrucou, aceitando uma pequena barra de chocolates que o outro lhe ofereceu.
— Não tem graça nenhuma. Eu, pelo menos, estou fantasiado de pai vigilante.
Ela riu, voltando a prestar atenção nas crianças, que se dirigiam à casa vizinha.
— E o Dennis?
— Trancado lá em cima com algumas pilhas de trabalho acumulado. Chateado porque queria estar aqui, mas...
— Mas está tudo indo bem e vocês se adaptando, é o que importa.
Os dois haviam acabado de adotar Jacob e ainda se habituavam à nova vida de casados e pais.
Clive deu de ombros, soltando um sorriso.
— Tem razão. — Ele terminou o restante do chocolate com uma única mordida, perguntando ainda de boca levemente cheia. - E o trabalho?
— Aproveitei a noite de folga pra passear com a Kat hoje. — Então gracejou: — Você não vai acreditar se eu disser que o restante dos pais fica bem mais tranquilo com uma participante das forças policiais da cidade vigiando seus pimpolhos.
— Quanto a isso, não há dúvidas.
O grupo terminou de colher os doces e se aglomerou perto dos dois adultos antes de atravessarem a rua.
— Mamãe, arruma meu cabelo — pediu Kat, se posicionando logo em frente a ela.
Uma pequena vaidosinha, aquela.
Felicia retirou a tiara e penteou os fios loiros da filha com os dedos, voltando a colocar as orelhinhas no lugar certo.
Não foi sem alguma surpresa que percebera que a garota crescera um pouco mais.
Kat voltou a tagarelar com Louise, perguntando quais doces a amiga pegara e trocando alguns com ela, enquanto a mãe não podia evitar pensar que há alguns anos ela era a menina vigiada pela mãe enquanto pedia doces por aí e, dali a algum tempo, seria sua Kat com os olhos atentos a outro pequeno no mesmo evento.
— O tempo voa, não? — sorriu Clive ao seu lado. — Lembro quando eles eram bebês ainda. Não demora muito, vão estar maiores do que nós.
Não havia como negar.
— E mais espertos, também.
O sexteto saiu correndo para a próxima parada tão logo o sinal ficou verde.
Clive permaneceu em silêncio até que alcançassem o outro lado da rua. Felicia reparou logo que ele parecia querer perguntar algo, porém se esquivava das palavras. Ela quis dizer que ele poderia ir em frente, mas talvez fosse esquisito demais explicar seu sexto sentido.
Sempre tivera a intuição aflorada, até demais, contudo o verdadeiro motivo permanecera um mistério até o último verão.
Ou seria inverno?
Poucos meses atrás, a temperatura caíra a níveis abaixo de zero quando os termômetros deviam estar marcando mais de trinta graus e o processo de encontrar as respostas não trouxera apenas a solução para o mistério: retirara o véu de seus olhos, permitira que ela enxergasse a verdade sobre si mesma, mudara sua vida para sempre.
E não apenas a dela. Andrei compartilhava com ela parte daquela herança sobrenatural, mas diferente dela, não aceitara bem o fato.
"Uma coisa é trabalhar com isso, garota, outra bem diferente é fazer parte", ele devolvera quando ela informara que estava aprofundando seus estudos sobre magia.
Felicia era descendente de bruxas e ganhara da avó a sensibilidade extra. A verdade sempre estivera ali, mas precisara enfrentar um caso difícil e o risco da morte para descobri-la.
Ao invés de entrar no assunto que realmente gostaria, Clive seguiu pelas próximas três casas conversando amenidades. Clima, trabalho, vizinhança... Até cair no assunto "filhos", então ele não conseguiu refrear mais sua curiosidade.
— Não pensa em ter mais um?
Ela desviou os olhos para ele.
— Nunca pensei nisso — confessou. Disposta a não deixá-lo perceber o quanto a pergunta a perturbara, sem motivo, resolveu gracejar: — Uma gatinha só já me dá trabalho suficiente. E vocês?
— Mais dois. — Ele foi categórico, abrindo um sorriso. — O Dennis quer um menino e uma menina, de preferência irmãos e menores que o Jake. Pra mim, tanto faz.
Um novo cruzamento, crianças reunidas mais uma vez e, então, fluindo em alta velocidade para o novo posto de coleta.
Lentamente, afastavam-se mais de casa. As construções iam se tornando baixas, os prédios dando espaço para mais e mais residências com jardins decorados. Normalmente, ela adoraria ver as luzes e cores da festividade, mas depois do que vira naquele que se tornara seu caso mais emblemático, a visão dos ícones da festividade seria capaz de lhe dar pesadelos.
Os feitos do infame Assassino da Roda do Ano deixaram marcas profundas em sua memória. A qualquer esquina, esperava encontrar um cadáver disposto no meio das abóboras com luzes, estátuas de fantasminhas, velas e espantalhos.
Inspirou fundo para espantar os pensamentos soturnos e resolveu voltar à conversa alegre que estavam tendo pouco antes.
— Escolheram os nomes?
— Não ainda — Clive respondeu, pegando outro chocolate do bolso do jeans e a oferecendo um idêntico. Era, afinal, tão viciado naquilo quanto ela própria. — Mas teremos tempo. — Ele degustou o doce por algum tempo, antes de voltar a soltar outra bomba em seu colo: — E o Alexander?
— O que tem ele? — Felicia mordeu o chocolate, sem entender exatamente aonde o amigo queria chegar.
— Nenhuma chance de volta? Nada? Zero?
Ela sorriu.
— Estamos contentes em ser apenas bons amigos.
Havia sido casada por anos com Alexander Soreborg, um engenheiro sueco que imigrara para os Estados Unidos para segui-la. E ali estava mais uma coisa que aquele caso estranho lhe trouxera: um divórcio, ainda que amigável.
— Sinto cheiro de amor novo no ar... — ele provocou.
Não estava de todo errado.
— Ele está saindo com uma colega da construtora tem uns dias. Acho que estão indo bem.
— E você?
Antes que ela pudesse responder que estava confortável com a solteirice, muito obrigada, Kat apareceu e agarrou sua mão.
Estavam diante de uma casa estranha e meio escura. Exceto por luzes alaranjadas e amarelas circundando a porta, nada dava mostras de que estivesse habitada.
Felicia se abaixou para olhar a filha nos olhos. A menina estava levemente trêmula.
— O que foi, meu amor?
— Não gostei daqui — ela sussurrou. Recebeu um beijo da mãe e um carinho nos cabelos de Clive.
Felicia suspirou. Sabia bem como ela se sentia. Havia lugares — e até pessoas — que a deixavam com o coração pesado, como se uma aura negativa a cercasse.
Era exatamente o que emanava daquela casa. Estivera tão distraída com o diálogo que não percebera a princípio — e recriminou-se por isso: devia estar sempre atenta não apenas ao mundo físico —, mas lá estava o clima opressivo e deprimente. Não lhe era uma percepção estranha e, olhando melhor, reparou que já conhecia aquele endereço.
Alheios a isso, as outras crianças continuavam insistindo em ser atendidas pelos moradores e foi só quando a porta se abriu que ela confirmou sua memória entorpecida pela conversa e excesso de estímulos visuais.
Na soleira, apareceu uma jovem de uns dezoito anos, com os cabelos tingidos de um tom de ruivo alaranjado já desbotado e com raízes escuras nascendo. Vestia uma fantasia estranha que a fazia parecer uma versão feminina do Chuck, o boneco assassino. O sorriso no rosto não era muito natural, mas também não parecia completamente forçado. Conversou com as crianças, distribuiu os doces e palpitou sobre todas as fantasias.
— E ali, temos uma bela gatinha. — Levantou um dos polegares para Kat. — Arrasou.
A menina permaneceu em silêncio, apertando seus dedos com mais força.
— Obrigada — Felicia agradeceu no lugar dela.
— Tímida?
— Um pouco — mentiu, esticando o braço para pegar os doces que Louise viera trazer para a amiga.
Na janela, apareceu uma silhueta atrás da cortina. Um rapaz tão magro quando a moça, mas de cabelos profundamente negros e olhos azuis pálidos. Felicia também o reconheceu.
— Crianças... — sorriu a garota. Então, parou e prestou atenção nela: — Já não nos conhecemos?
Felicia respondeu prontamente:
— Sou a detetive que esteve aqui ontem para investigar o que aconteceu com sua irmã.
A resposta fez a outra empalidecer, espantando para longe qualquer resquício de alegria —- natural ou fingida — que a jovem pudesse ter. A lembrança a atingiu em cheio.
— Ah, claro. Pobre Hilary... — ela baixou os olhos. — Ela adorava Halloweens.
O silêncio que se seguiu foi, talvez, um dos mais constrangedores de que Felicia já fizera parte.
— Sinto muito... Anne, não é? — perguntou, para ter certeza. A outra confirmou. — Bom, Anne, sinto muito — repetiu. — E estamos fazendo o nosso melhor para resolver o caso, prometo.
— Agradeço, detetive. É muito importante para nós, sabe? Ele tem que pagar por isso — ela pontuou, com uma nota indisfarçável de raiva na voz.
— Tem a minha palavra.
A moça assentiu mais uma vez.
— Agora, se não se incomodam, preciso voltar pra dentro. — E como se soubesse que a conversa estava sendo ouvida por seis pares de orelhas infantis, esforçou-se para colocar mais um sorriso no rosto e erguer um balde roxo decorado com asas de morcego recortadas em papel preto: — Pegar mais doces, sabe como é?
Então a porta voltou a se fechar, o rapaz — namorado de Anne, Anthony — fechou a cortina e os pequenos tornaram a sua caminhada.
Kat continuava segurando sua mão quando alcançaram a próxima esquina.
— Quer voltar para casa? — perguntou à menina.
Mas Katterina mal terminou de ouvir a mãe e correu para junto dos amigos, que já se aglomeravam na próxima soleira.
Clive riu ao seu lado:
— Acho que isso é um "não".
— Tem certeza? — Barbara perguntou com os olhos colados aos papéis em cima de sua mesa.
— Absoluta, chefe — Andrei respondeu. — Os médicos disseram que ele teve um colapso emocional dos grandes e não podemos interrogá-lo até que esteja estável. Há riscos para a saúde dele e integridade das equipes, a nossa e a que está cuidando dele no hospital.
A capitã Donoghue juntou as mãos e apoiou nelas o queixo, sacudindo os cachos dourados.
Cada vez que se lembrava que estava diante de uma vampira com alguns séculos de idade, Andrei tremia na base, mas logo relaxava ao se lembrar que ela era do grupo dos "calmos, controlados e pacíficos".
Não teria quebrado tantas barreiras e se estabelecido na profissão como uma das mais respeitadas do ramo se não o fosse, afinal.
— Deixou o Jenkins por lá, certo?
— Com o Norman. Ninguém entra ou sai do quarto além do pessoal do hospital.
Barbara assentiu, satisfeita.
— Menos mal. Amanhã telefone para lá de novo. Vamos acompanhar de perto.
— Pode deixar. Mais alguma coisa?
— Não, pode ir. — Então ela pareceu perceber algo. Franziu o cenho: — Há quanto tempo não tira folgas, Walsh?
— Há uns meses, chefinha — ele respondeu, com um sorriso de canto.
— E por acaso perdeu as chaves de casa? — Ela ergueu uma sobrancelha, sardônica.
Não era segredo que ele arrumava inúmeras desculpas para ficar o máximo de tempo possível no trabalho, em turnos longos que emendava uns nos outros.
— Vai ficar tudo bem — mentiu, não sabendo se para si ou para ela.
Barbara permaneceu com os olhos presos nele por alguns segundos, o que o fez começar a se questionar se estava implantando alguma sugestão mental.
— Depois desse caso, não quero que pise aqui por um mês, está ouvindo? Vá se cuidar.
Daria trabalho demais explicar os motivos para se afogar cada vez mais no trabalho nos últimos tempos. Mais arriscado ainda seria falar para ela — que fora uma bruxa quando ainda respirava — que pretendia ficar o mais longe possível de qualquer coisa que envolvesse o lado de lá.
O que havia por trás do véu da realidade sempre vinha atormentá-lo quando passava muito tempo com a mente ociosa, acompanhado por vultos e pesadelos. Era um risco que não queria correr.
Em vez de argumentar, disfarçou o desconforto e engoliu o descontentamento. Esforçou-se para colocar um sorriso no rosto e torceu para ser convincente o bastante.
— Pode deixar.
Os ruídos das comemorações mal conseguiam alcançá-la.
Encarapitada na varanda do décimo andar, onde ficava seu apartamento, Felicia observava a cidade lá embaixo. Havia prédios ainda maiores em algumas ruas próximas, mas a vista dali era ampla o suficiente para lhe dar uma noção de como a cidade funcionava.
O centro de Cobden parecia nunca dormir. Em alguns bairros, porém, era como se a cidade estivesse presa em uma letargia onírica, como quando se demora muito a acordar.
Acordar... Felicia não sabia nem que horas iria dormir.
O encontro de mais cedo havia mexido com ela, trazido recordações de quando havia encontrado toda a família logo após o fato, e — de quebra — perturbado Katterina. Crianças eram sensíveis também, ela já sabia, e a menor mudança energética poderia deixá-las mal.
Mas o que acontecera com Kat naqueles minutos fora inesperado. Até então, ela nunca dera mostras de sensibilidade de qualquer tipo. Teria sido fruto apenas da atmosfera diferente da casa — parcialmente escura e quase passando despercebida no meio das outras, mais bonitas e vistosas? Ou apenas o lado místico da festividade entrando em ação?
Uma coisa era ter poderes sabendo lidar com eles. Outra, bem diferente, devia ser enxergar o mundo daquele modo quando se era tão nova. Não se lembrava de nenhuma experiência mística quando criança. Sequer tivera amigos imaginários, como muitos que conhecia. Quando começara a perceber o mundo de outra maneira, já estava quase no fim da adolescência e fora tão sutil que ela levara anos até perceber que era diferente.
Então viera a viagem para a Europa, Alexander, o casamento, o trabalho, Katterina... E nunca mais passara tanto tempo livre o suficiente para pensar em si mesma com mais cuidado.
Voltou para dentro ao sentir o vento frio soprando com mais força — o inverno verdadeiro estava começando a dar sinais de que viria com força — e fechou a porta, trancando-se na sala de estar.
Aproximou-se da escrivaninha e retirou uma caixa e um isqueiro de dentro da primeira gaveta. Acendeu o incenso e deixou a fumaça envolvê-la junto com o aroma delicioso de lavanda.
Kat amara aquele cheiro desde a primeira vez. Pensando nisso, e em livrar a pequena de qualquer sentimento confuso e estranho que ainda pudesse pairar sobre ela, começou a espalhar o incenso pela casa para mantê-las protegidas de qualquer negatividade.
Meio no automático, pensou em como um cuidado semelhante poderia fazer a diferença na residência dos Ford. Era meio óbvio que não havia apenas o luto operando para fazer deles a família mais triste da vizinhança, e ela percebera há muito tempo algo mais pesado e opressivo pesando sobre os ombros deles.
Os conflitos entre o pai, Henry, e a filha mais nova, Anne, eram conhecidos. Ela chegara a fugir de casa um ano e meio antes. Felicia estivera na equipe de buscas junto com Andrei, mas a oficial Velasco fora quem a encontrara em um beco, com frio e faminta umas doze horas após a comunicação oficial de desaparecimento. A lembrança ficara adormecida até a hora em que fora até eles para comunicar o crime.
Henry parecia devotado à Hilary, que até parecia uma réplica dele — tal como Kat lembrava tanto Alexander a ponto de ter o mesmo sorriso e jeito de olhar para a câmera ao tirar fotos que ele tinha quando criança. Já Rose, a mãe, parecia pequena e espremida entre todos os interesses e desejos da família, tentando atender a todos ao mesmo tempo e mantê-los felizes à custa de sua própria satisfação pessoal.
Hilary, à época do ocorrido com Anne, era uma jovem universitária cheia de planos com uma trajetória que teria sido de sucesso, se não tivesse terminado de forma trágica na noite anterior. Porém, no único encontro que tivera com ela viva, Felicia chegara a duvidar de que ela sentia algum afeto pela irmã caçula. A forma fria como ela falava da adolescente, como se Anne fosse mais um peso, fez Felicia se arrepiar ao relembrar.
A detetive deixou o cheiro de lavanda penetrar em todos os cantos possíveis da sala e da cozinha antes de passar ao corredor.
Foi quando o semblante de Anne passou em seu rosto de novo.
Não podia negar que sentia pena da moça. Parecia sempre à sombra de Hilary, tal como a casa permanecia sempre oculta diante da opulência das outras ao redor. Como se estivesse condenada a sempre ter menos que a primogênita. Como se sua existência fosse um erro.
Antes que pudesse controlar, uma lágrima sorrateira escorreu por seu rosto.
Era injusto tantos irmãos e irmãs se darem mal daquela forma. Enquanto ela e sua irmã mais velha, Susannah, eram unha e carne — separadas no momento apenas pelas obrigações da vida adulta —, Hilary e Anne pareciam em mundos distintos, quase opostos, como se separadas por um abismo.
Um abismo criado pelos próprios pais, ao que tudo indicava, o que era ainda pior.
Ainda assim, em um dos ataques emocionais mais perturbadores que Felicia já presenciara, Anne se descontrolara na delegacia ao falar da irmã assassinada e entre as palavras que mais repetia em meio aos soluços, dizia sentir sua falta apesar de tudo e pedia desculpas por nunca ter sido uma pessoa digna de atenção, caso contrário a irmã poderia gostar dela.
A raiva da garota era destinada a Robert Bentley — o namorado problemático de Hilary, segundo os depoimentos ouvidos. As brigas entre os dois eram conhecidas da polícia, mas ela nunca prestara uma queixa oficial. Nunca terminara em violência física, mas os gritos e xingamentos eram constantes.
"Eu o quero na cadeia", Anne fungara ao falar do rapaz. "Ele fez isso com ela, todo mundo sabe disso. Ele precisa pagar".
Um aperto no peito fez Felicia parar no meio do corredor.
Não era uma sensação física, somente. Parecia que toda aquela aura carregada estava grudada em seus ossos, seguindo-a como uma sombra.
Um vento frio vindo de lugar nenhum agitou seus cabelos e seus pelos se eriçaram. O coração acelerou e os sentidos aguçados gritaram que algo estava errado. Muito errado.
Sem acreditar no que seus olhos viam, voltou a atenção para o início do corredor e o ambiente ao redor se tornou cinzento e escuro. Logo ela entendeu o motivo: um espectro sombrio apareceu na entrada do corredor.
Não ia negar que costumava ver sombras, mas sempre com o canto de olho, fazendo-a desconsiderá-los como ilusão de ótica — uma vez que ver espíritos não parecia estar entre suas habilidades. Dar de cara com um a fez estremecer.
A sombra atravessou sua pele, provocando um calafrio, e só então ela percebeu que segurava a respiração. Tentou se mover, mas seus pés não saíam do chão.
Aquilo avançou pelo corredor, fazendo o pavor se grudar em seu corpo. Uma linha de suor frio brotou em sua testa e a garganta queimou quando quis gritar para a coisa ir embora.
De nada adiantou.
Felicia assistiu com os olhos arregalados a porta cor-de-rosa do quarto de Katterina ser engolfada pela escuridão. Poucos segundos depois, que ela passou tentando se mover sem sucesso, um som estridente quebrou o silêncio, o único que ela faria qualquer coisa para nunca voltar a ouvir, e o desespero finalmente a pôs em movimento.
Era um grito angustiante.
De Katterina.
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Oi, gente, o que estão achando da história? Não esquece de deixar seu comentário e/ou estrelinha, por favor. Assim posso saber como estou indo na minha escrita. Muito obrigada pela leitura. :*
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