Capítulo 4- Casa
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"O Senhor conhece bem as perseguições que tenho sofrido. Contou e recolheu num jarro todas as minhas lágrimas e anotou cada lágrima no seu livro."
-Salmos 56:8.
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Quando Ohana acordou, se sentiu aliviada por ter dormido tão rápido na noite anterior. A chuva tinha ido embora e o teto ainda estava sobre sua cabeça, isso era muito bom.
Ela tinha acordado antes de todo mundo, então se levantou, escovou os dentes, arrumou a cama silenciosamente e procurou seu caderno velho de anotações. Ela costumava criar novas partituras o tempo todo, normalmente os sons simplesmente surgiam em sua mente e ela anotava freneticamente para não perder nada.
Ohana também já havia criado uma composição no violino para cada pessoa que conhecia, mesmo as que eram maldosas com ela. Como ela nunca falava, essa era sua forma de dizer tudo que sentia, a cada pessoa que já havia passado por sua vida.
Havia uma melodia para Flora, para sua mãe, para seu pai, até para a Carcereira! Quer dizer... Até para a Marta.
A inspiração dessa vez, era o doutor Evan. Ela escreveu uma melodia tranquila como o vento que soprou quando ele abriu a janela naquele dia, no hospital. Ela não esqueceu de incluir uma estrofe que expressasse a piada horrível que ele havia contado.
Enquanto pensava na conclusão da partitura, ela se viu batendo o dedo indicador na bochecha duas vezes, como o médico fazia. Isso a fez rir, essa mania era contagiosa.
Quando ela terminou, se recostou em sua cama e analisou a cabeceira de madeira. Tinha muita coisa rabiscada ali, mas não foi ela quem escreveu. As meninas sempre faziam questão de estragar as coisas dela e dizer coisas desagradáveis.
A menina tinha passado por muita coisa, ainda mais depois que cresceu. Fizeram todo tipo de pegadinha, ninguém gostava dela ali além de Flora e...
Bom, Ohana não podia dizer que nunca fez outra amizade além de Flora naquele orfanato. Ela já havia conhecido uma ruivinha chamada Amaya, mas raramente a via, já que eram de alas diferentes. A menina era muito elétrica, gostava muito de falar e era bondosa. Amaya foi adotada por uma família de pastores e Ohana se lembra que o novo irmão da menina tinha um nome engraçado... Ínem, Enem, Enam!
Mas... Ela já teve uma amiga de verdade, uma realmente diferente e extraordinária. A menina não gostava de pensar sobre isso, mas ás vezes era inevitável.
(3 anos atrás: 5 de junho- Aniversário de Ohana)
Ohana estava completando 13 anos. Era para ser um dia especial, pelo menos uma vez. Porém, isso estava realmente longe de acontecer.
Na noite anterior ela tentou imaginar uma vida diferente, aonde ela chegaria na cozinha de casa e encontraria um bolo de chocolate, feito por sua mãe. Ela ficaria muito feliz, nem precisaria ganhar um presente. Depois de dar um abraço nela, correria para fora, a fim de passear em lindos campos de flores laranjadinhas.
A imaginação de Ohana era muito boa, mas no fim, era apenas isso... Imaginação.
-Temos uma aniversariante entre nós... – Algumas meninas disseram. Naquela época, eram meninas diferentes, que hoje já tinham sido adotadas, exceto por Carla, que continuava pegando no pé da menina até o fim.
-É verdade!- Um garoto disse- Por isso preparamos um presente incrível...
Eles estavam todos em volta dela. Haviam meninas da sua idade, e meninas mais novas. Tinha vários meninos também, que sempre ajudavam nas pegadinhas, não só com a Ohana, mas com várias outras crianças.
-Não vai ter graça se você ver, tem que ser surpresa!- Carla disse. Ela fez sinal para segurarem Ohana, que tentou relutar, mas ninguém iria ajudar, ela não ia gritar.
Colocaram uma venda em seus olhos, amarraram suas mãos com cadarços e começaram a girá-la rapidamente, até ela ficar completamente tonta, lutando contra sua própria gravidade.
Eles deram espaço e Ohana começou a bater em várias coisas que estavam por perto, sem contar os empurrões que ela levou, cada batida era uma dor muito ruim. Ela só conseguia ouvir as risadas de todo mundo. Ela chorou, na frente de todo mundo, pela dor e pela tristeza.
-Que sem graça, ela nem fala nada... – Um menino começou a rir.
-Essa é a melhor parte!- Outra garota respondeu rindo- Além de esquisita, tem medo de chuva, acredita? Ela chora toda vez que chove!
Ela estava tão tonta, que sabia que logo iria vomitar e isso não seria legal. Porém, foi surpreendida ao ser ouvir todo mundo á sua volta, gritando e correndo. Alguém estava molhando eles.
-Essa menina é maluca?!- Carla gritou, mas logo sua voz ficou distante, pois todos saíram correndo para não se molhar. Ohana estranhou o fato de ser a única a estar completamente seca.
Ela se sentou no chão, pois ainda estava tonta e conseguiu soltar o cadarço das mãos. Ela retirou a venda e viu uma menina loira, segurando uma mangueira.
-Eles falaram chuva, achei que quisessem uma chuvinha- A menina começou a rir. Sua risada era contagiante, isso fez Ohana rir também, esquecendo um pouco da humilhação que havia passado.
Aquela menina se chamava Adhara (Mais um nome diferente para a lista). A questão é que o nome fazia jus á pessoa, pois Adhara é o nome da segunda estrela mais brilhante da constelação de Canis Major. Combina com a dona, pois ela brilhava como uma estrela.
Ela era um ano mais nova que Ohana, mas ela possuía uma doença genética chamada Síndrome de Down.
Isso não fazia a menina Mali gostar menos dela, na verdade, a personalidade de sua nova amiga mostrava o quanto as pessoas podem ser únicas e excepcionais. O orfanato tinha outras crianças como ela e também com autismo... Muitas eram abandonadas, não recebiam uma chance de receber o amor e retribuir em dobro. Com o tempo as duas se tornaram inseparáveis, pois Adhara parecia ouvir Ohana, sem que palavras fossem realmente ditas.
-É seu aniversário?- Ela perguntou sorrindo.
Ohana apenas confirmou com a cabeça.
-Qual é o seu nome?- a jovem perguntou.
Ohana não respondeu, porém a menina não se ofendeu.
-Você é tímida, entendi- Ela disse sorrindo- Meu nome é Adhara e eu amo aniversários! Podemos fazer a nossa própria festa, o que acha?
Ohana certamente concordou. Mais tarde, Flora levou as duas para a biblioteca depois das aulas. Elas não tinham um bolo, mas tinham um cupcake de chocolate com uma pequena vela em cima. Ohana teve as honras de poder comer ele sozinha e ouvir a música "Parabéns para você", cheia de alegria.
Seus pensamentos na noite anterior sobre um dia perfeito, estavam longe de serem reais. Porém, a realidade não era tão ruim, pois sua mente nunca seria capaz de criar algo tão complexo e especial quanto sua amiga Adhara.
(...)
Lembrar de sua amiga era algo muito pesado para suportar. Elas eram muito unidas, até o dia em que Adhara ficou doente.
Pessoas com síndrome de down são mais propensas a ter problemas cardíacos. A menina em breve precisaria de um transplante, pois o problema dela se agravou, chegando a um nível crítico.
Ohana só lembra de ver os médicos levando sua amiga ás pressas, depois disso nunca mais a viu.
Ela não sabia o que tinha acontecido, se Adhara tinha morrido, ou se estava viva. Ela não conseguia perguntar para a diretora e a mesma certamente não iria lhe dar satisfações.
Era estranho perder mais uma pessoa tão importante, sua companhia para o almoço, plateia durante seus concertos de violino imaginários e sua estrela.
Sempre que seu aniversário chegava, ela lembrava de Adhara. Isso aconteceria em breve, pois seu aniversário de 17 anos estava bem perto. A música da menina estrela era de longe, a mais bonita. Cada estrofe impedia que ela se perdesse em seu passado... Ohana imaginava como seria se sua amiga ouvisse a música, ela provavelmente iria gostar muito.
(...)
O dia passou rápido, mas a diretora não estava brincando quando disse que Ohana seria punida. Ela ajudou a limpar o refeitório, os banheiros, as lousas da sala de aula e estava proibida de chegar perto de qualquer árvore.
Ela nem se importou. Tudo isso distraiu sua mente e naquele dia, mesmo com as piadinhas sobre o acidente, ela tentou pensar que a cada coisa que ela arrumava, era uma área de sua vida entrando nos trilhos.
Havia uma coisa que não parava de martelar em sua mente: Será que Deus tinha escutado o pedido simples dela? Talvez ela não tivesse feito da maneira certa, afinal, estava em sentada em uma árvore velha quando pediu.
Talvez ela devesse escrever uma carta, mas para onde enviaria? Ou talvez devesse ter fechado os olhos e feito uma expressão mais emocionante, quem sabe? Ou então ela era falha demais para falar com um Deus perfeito.
Naquele dia, ela aproveitou bem o tempo na biblioteca também, tocando todas as suas músicas favoritas. Flora observava a menina e pensava em como seu futuro seria brilhante, e estava sempre orando por respostas.
-O que é isso aqui?!- Marta entra na biblioteca- Era para você estar limpando e não fazendo deste lugar seu concerto pessoal!
Elas não esperavam aquilo, sempre foram discretas e quase ninguém ia na biblioteca fora do horário das aulas.
Marta chamou a diretora, que deu o maior sermão da professora Flora e ameaçou até demiti-la.
-Como uma professora pode favorecer uma das alunas, sendo boazinha e ensinando coisas triviais? Era para ela fazer o trabalho e não para você ficar passando a mão na cabeça dela, como uma criança mimada! - A diretora disse, fazendo escândalo. Ela pegou o violino e mandou Marta se livrar dele, aquilo doeu, profundamente.
Ohana voltou para o "Buraco negro"¹ e dessa vez, não teve medo do escuro, teve medo de que Flora fosse prejudicada por sua causa. Ela estava proibida de entrar em contato com a professora e de ir á biblioteca. Ela chorou, chorou e então... parou de chorar.
Por que por mais triste que uma pessoa esteja, lágrimas não duram para sempre. Ás vezes é preciso chorar um pouco, colocar tudo para fora e descobrir que no final, sempre haverá um momento em que você vai suspirar e se acalmar. Lágrimas são uma dádiva, uma oportunidade de não manter todo peso dentro de si... Não é à toa que Deus valoriza e guarda cada uma delas.
(...)
Ohana tinha voltado á estaca zero, estava no mesmo lugar do início da história. A única diferença é que no começo, a menina Mali não tinha feito um pedido á Deus.
Ela não sabia, mas as orações sinceras, são as mais importantes, independente do lugar. Deus gosta de mostrar que escuta até seus pensamentos e desejos mais simples. Ele é mestre em um transformar coisas aparentemente insignificantes, em coisas extraordinárias.
Depois de passar 3 horas ali dentro, ela ouviu alguém abrindo a porta. Marta estava lhe olhando com desagrado, mas parecia preocupada. O vigilante que ficava de olho nos corredores sussurrou em seu ouvido, mas Ohana conseguiu ouvir: "Tem certeza de que ela não vai falar nada?". Marta confirmou com a cabeça.
Eles estavam com medo de que Ohana contasse para alguém sobre como os funcionários tratavam as crianças, com castigos severos e os prendendo em salas escuras por horas.
-Anda, levanta logo daí. Estão te chamando- Marta diz com rispidez.
Eles levaram Ohana para a sala da diretora, lá ela encontrou Evan sentado, ao lado de uma moça morena que usava um terninho elegante.
Ele sorriu ao se virar e encontrá-la. Violet notou os olhos vermelhos da menina, sabia que ela tinha chorado... Ela não quis tomar conclusões precipitadas, mas tinha um mau pressentimento sobre aquele lugar.
-Ohana... – A diretora falou sorrindo, pela primeira vez na vida. Já viu um tubarão sorrindo? Lembrou de Procurando Nemo, né? Então.
- Se lembra do doutor Evan?- ela continua
Ohana balançou a cabeça positivamente, confusa e um pouco curiosa. Ela ficou feliz ao olhar para o lado e ver Flora sorrindo, isso a deixou aliviada e intrigada com a felicidade e sua amiga.
-Bom, senhorita Mali- A diretora diz se levantando- O doutor acabou de assinar os papéis da sua adoção. Foi repentino, mas após avaliações do conselho e considerações da senhorita Violet, assistente social... Sua adoção está quase aprovada e você terá um tempo para recolher suas coisas e acompanhá-los para seu novo lar. Aliás doutor Evan, a sua esposa Sara não pôde vir?
-Ela não pode vir, mas ela vai vir quando formos oficializar tudo- Evan respondeu. O orfanato dava um período de adaptação para a família, e assistentes sociais iriam verificar como as coisas estavam caminhando. Nesse caso, Evan teria que orar muito para Deus convencer o coração da esposa e também protegê-lo da bronca que iria levar.
Ohana não conseguia esboçar reação. Era para ela estar feliz? Por que ele queria adotá-la? Ele só a viu por dois dias e a esposa dele só tinha visto a menina uma vez, e nem estava presente ali com eles na diretoria.
-Vamos Ohana, eu te ajudo a pegar suas coisas... –Flora diz, ignorando o olhar reprovador de sua chefe.
Ohana sai andando, mas com a cabeça inclinada para encarar Evan. Ele achou que ela ficaria feliz, mas a expressão da menina era enigmática.
-Vai ficar tudo bem... – Violet sussurrou para ele- É muita informação para ela assimilar...
No caminho para seu quarto, Ohana começou a pensar em mil coisas. Deus tinha ouvido ela mesmo? Ou tudo isso era uma cilada? Querendo ou não, ela sabia que não seria por muito tempo. Ela já tinha vivido em lares adotivos, mas sempre acabava voltando para o mesmo lugar.
Flora pareceu ler seus pensamentos e a repreendeu:
-Ora essa, Ohana. Você tem que ficar feliz!- Ela balançou os ombros da menina- Você vai ter um lar de verdade, vai ter um futuro lindo e eu prometo visitar você quando eu puder. Eu conversei com Evan no hospital e também conversamos hoje, ele parece ser um homem bom! Ele e a esposa são cristãos, amorosos e compreensivos. Tenha um pouco de paciência consigo mesma e com eles...
Ohana não conseguiu conter as lágrimas, ela estava com medo, não sabia como as coisas seriam dali em diante. Ela olhou para Flora, e se sentiu triste por ter causado problemas... A professora também percebeu seu incômodo com isso.
-Não se preocupe comigo- Ela diz sorrindo- Eu vou ficar bem, e como eu disse, vou te visitar. Quanto ao meu violino, não foi culpa sua... Sentirei muita saudade de te ver tocar, mas sei que em breve te ouvirei nas estações de rádio ou em grandes concertos!
Ela ajudou Ohana a pegar suas coisas. As meninas estavam olhando curiosas, claramente insatisfeitas pelo fato da menina sair antes delas. Por isso, não disseram nada, apenas olhavam com desdém.
A menina achou engraçado que todas as suas coisas coubessem em uma pequena caixa, leve o suficiente para carregar facilmente com as mãos. Flora foi na frente, então Carla disse a seguinte frase para Ohana:
-Aproveite o tempo lá Stitch... Em breve você volta para aproveitar a nossa companhia. Você sabe que no fundo, é quebrada demais para tentar ter uma vida perfeita e normal...
Aquelas palavras não deveriam ter importância para Ohana, mas tiveram. Ela caminhou e olhou para vários lugares no orfanato... Ela não iria sentir falta dali, mas queria se lembrar do cenário.
Podia não ser uma paisagem bonita para se colecionar, mas se Carla estivesse errada, seria a memória de um obstáculo vencido, um cenário para sua superação e passado... Passado... Essa definição caía muito bem.
(...)
Na saída, Ohana colocou sua pequena caixa de pertences no porta-malas do carro. Evan não acreditou que a menina só tinha aquilo, mas não quis constrangê-la. Ela se sentou no banco de trás, segurou seu pequeno rádio firmemente e viu Flora acenar, com um sorriso e lágrimas nos olhos.
O carro começou a se movimentar e quando entraram na pista, o silêncio reinou no ambiente. Violet estava desconfortável com o "climão" e orou para que desse tudo certo com o amigo.
Evan apenas observou a menina pelo espelho retrovisor e tentou acreditar que tudo daria certo... A ficha de que agora ele era pai de uma menina de quase 17 anos ainda não tinha caído.
O celular de Evan tocou, mas ele não atendeu. Ele sabia que era Sara, preocupada com Evan. Ele só dizia que estava resolvendo algo importante, mas não contava o que era.
Ele tinha ficado quase o dia todo ajudando Violet no processo de adoção, o que não tinha sido nada fácil... O problema é que sua esposa ainda não sabia de nada disso.
-Eu sei que é complicado e muito repentino Ohana, mas... – Ele começou a falar- Espero que possa se acostumar com a ideia de que agora tem uma família, e que tudo vai ficar bem...
Ohana não respondeu, como sempre. Na verdade, nem olhou para ele. Ela encarava a janela fixamente, observando as árvores passando e os últimos raios de sol contrastando com os galhos.
Várias perguntas sondavam sua mente, nenhuma delas possuía resposta ainda. Mas a ideia de ter um lar, era de certa forma muito agradável...
Lar... Essa palavra soava tão bem quanto o som de um violino em um dia de chuva, disso Ohana não tinha dúvidas.
"Buraco negro"¹- Expressão citada no capítulo um. Usada pelas crianças do orfanato para definir uma sala onde elas ficavam de castigo quando aprontavam. Eles podiam ficar lá por horas, tudo ia depender do grau de sua ação. As luzes eram apagadas, forçando as crianças a pensar e sentirem medo o suficiente para não querer mais praticar o mesmo erro.
É importante dizer que Deus não nos trata assim. Ele não nos amedronta e castiga, nos jogando no escuro, para que sintamos medo... Ele brilha sua luz sobre nós, nos mostrando quem realmente somos e quem devemos ser... Não tenha medo do Papai, Ele te ama e te conhece de verdade.
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