Capítulo 3- A voz
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"A questão é que Deus nunca parou de falar. Ele apenas diminuiu o tom de voz para aumentar a sua atenção e sua curiosidade. Deus sempre tem algo a dizer, mas você precisa aprender a ouvir...".¹
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Ohana só foi liberada no fim do outro dia, ela ficou feliz com isso, por ter ficado mais tempo ali. Evan queria ter certeza de que ela ficaria bem e também ficou com pena dela, porque qualquer um conseguia ver que ela não queria voltar para o orfanato.
Ela tinha parado de tossir e não estava mais sentindo dor, então Flora veio acompanhada da diretora do orfanato para que ela fosse liberada. A diretora não gostava da menina, mas era uma lista muito grande de pessoas que não gostavam de Ohana, então isso já não era relevante.
Evan se despediu e Ohana apenas acenou de volta. O doutor sentiu um aperto no coração, e até pensou na possibilidade de adotá-la, mas a esposa nunca iria aceitar...
Ele e Sara já tentaram ter filhos, mas a esposa era estéril. Já haviam falado sobre adotar, mas sua mulher desistiu. Essa história machucava muito, principalmente a Sara, que sempre quis ser mãe e se sentia culpada por não poder dar isso ao Evan.
Ela orou muitas vezes. Durante anos ela chorou, gritou, prometeu mudar e ser uma cristã melhor, porém nada aconteceu. Ás vezes é assim, parece que as respostas nunca chegam, mas elas vem... Talvez de maneiras inusitadas, mas no fim são até melhores do que o que pedimos.
Para ela, seria estranho adotar... Ela queria poder carregar aquela criança durante nove meses ou pelo menos presenciar seu nascimento... Sara se sentia egoísta por pensar assim, mas era uma ferida profunda demais para entender sozinha. Não podemos julgar as pessoas tão facilmente, pois a dor do outro nunca vai ser como a sua dor, e vice versa.
(...)
Ao chegar no orfanato, muitos ficavam olhando para Ohana. A diretora disse que quando ela melhorasse, iria ficar de castigo por ficar subindo em árvores como uma criancinha.
Flora levou a menina até o quarto. As outras meninas estavam lá, olhando torto para Ohana. A professora fez questão de dar uma bela encarada nelas, para que não aprontassem.
Ela escondeu o rádio embaixo do travesseiro, para a menina poder escutar as músicas e as notícias. Saiu e suspirou bem fundo... Ela queria poder fazer mais, porém isso estava fora de seu alcance.
-Eu achava que o Stitch tinha caído de uma nave espacial, não de uma árvore... – Carla disse as outras meninas riram.
Ohana pegou sua toalha e suas roupas e decidiu tomar um banho quente, que era um dos poucos privilégios que se tinha ali.
Depois de tomar banho e se vestir, ela se olhou no espelho do banheiro. As meninas sempre diziam que ela era feia e esquisita, mas a jovem não pensava assim... Na verdade, olhar para si mesma, era como olhar para a mãe, pois as duas se pareciam muito. Ohana não tinha fotos, nem recordações de sua mãe, apenas pesadelos e memórias pela metade.
Ela olhou para os seus cabelos encaracolados, sua pele não muito clara e seus olhos castanho-escuros.
Sua mãe dizia que Ohana era brilhante como o verão, profunda como o outono, forte como o inverno e linda como a primavera.
Algumas lágrimas brotaram em seus olhos, ela então lavou o rosto e tentou se recompor. Ela podia até se sentir triste e chorar frequentemente, mas nunca pensou em desistir de sua própria vida. Acho que muitos esperavam isso, acharam que ela não aguentaria tanto tempo, mas a mãe dela tinha razão, Ohana era forte como o inverno e nunca desistiu de esperar por uma estação melhor.
(...)
Quando Ohana voltou, as meninas já estavam dormindo e desta vez, não tinham feito nenhuma gracinha. Tudo parecia tranquilo, até cair uma chuva realmente forte. Tempestades a apavoravam, pois foi assim que a vida dela foi por água abaixo.
Ela colocou os fones no volume máximo e tentou não prestar atenção nos ventos fortes lá fora, nem na água que batia com violência no telhado. Ela só conseguiu sintonizar em uma estação, que era uma rádio cristã... Naquele momento, nem importava o que era, contanto que fosse uma distração. A voz do era de um jovem, dava para senti-lo sorrindo durante as palavras:
-"Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas; e elas me conhecem;
assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas.
Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco. É necessário que eu as conduza também. Elas ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor.
Por isso é que meu Pai me ama, porque eu dou a minha vida para retomá-la.
Ninguém a tira de mim, mas eu a dou por minha espontânea vontade. Tenho autoridade para dá-la e para retomá-la. Esta ordem recebi de meu Pai" (João 10:14-18)...
Ele continuou:
- Ás vezes é difícil ouvir a voz de Deus em meio a tanta confusão ao nosso redor, na verdade, é ainda pior quando várias outras vozes gritam dentro de nós o tempo todo... A questão é que Deus nunca parou de falar, Ele apenas diminuiu o tom de voz, para aumentar a sua atenção e sua curiosidade. Deus sempre tem algo a dizer, mas você precisa aprender a ouvir.
Ohana não esperava ouvir aquilo, mas parecia ter sido diretamente para ela. Uma música começou a tocar e ela tentou prestar atenção na letra:
"O sozinho e ferido, cansado e faminto que estão no escuro
Em terras longínquas e mares distantes, a luz ressurgirá...
Pois Ele é a voz que fala ao coração
Sobre esperança e um futuro além do que se pode ver
E o Reino vem aos que esperam o Desejado das nações
Em Seu nome a terra treme
O reino vem...
(Arrais- A voz)²
A música continuou e Ohana chorou junto com a chuva, pois ela desejava ter esperança também e queria ouvir essa voz, talvez ela silenciasse todo o caos que havia em seu interior.
(...)
Naquela noite, Evan tinha voltado para casa, totalmente distraído em seus pensamentos. Ele cumprimentou a esposa, jantou, contou sobre o seu dia e tentou não demonstrar seu abatimento.
Ele não conseguia parar de pensar na menina Mali, pois queria saber se ela estava realmente bem e se ficaria tudo bem com ela.
-Evan, o que foi?- Sara perguntou, enquanto eles meditavam na bíblia antes de dormir, como sempre faziam.
-Nada... Quer dizer, é só que... – Ele tentou completar a frase, mas sabia que a esposa não ia entender.
-Não me diga que ainda está pensando naquela paciente, a Ohana... – Ela suspira, não muito feliz- Evan, já falamos sobre isso, você não pode ficar com pena de todos os seus pacientes. Sei que sempre quisemos ter filhos, mas assim não dá...
-Eu sei, mas é diferente Sara... - ele olha atentamente para ela- Eu sei que estive com ela por apenas dois dias no hospital, mas ela é uma menina muito especial, que não merece sofrer mais...
Sua esposa estava ficando zangada com a história, ela fechou a bíblia e tentou não perder a calma.
-Ela não está abandonada, tem pessoas que cuidam dela. Você tem que seguir em frente e cuidar dos outros pacientes- Ela diz sendo sincera e olhando nos olhos dele. Pois a mão no rosto de Evan e completou- Você é um homem incrível, com um coração enorme... Mas precisa aceitar que nem tudo é tão simples...
Ele sabia que não adiantava argumentar com ela, e dava para entender o porquê. Seria muito difícil começar a criar uma menina de 16 anos, com vários traumas, problemas de comunicação interpessoal e com um passado mais profundo do que podiam imaginar. Evan ficou em silêncio e observou a chuva lá fora.
Depois de um tempo, eles dois foram dormir. Porém, mesmo tentando de todas as maneiras, ele não conseguia cair no sono de jeito nenhum. Ele virava de um lado para o outro, mas não conseguia.
Sara já tinha dormido à muito tempo, mas Evan estava quase ficando maluco. Ele olhou para o relógio e já eram 3:00 A.M!
Ele decidiu se ajoelhar para fazer uma oração, implorando para conseguir dormir, mas quando ele terminou de orar, aí que realmente ficou inquieto.
Ele começou a andar no quarto, de um lado para o outro e o barulho de seus passos eram abafados pelo barulho forte da chuva.
Será que sua oração não tinha funcionado? Será que Deus não estava ouvindo, ou...
-Pai, acho que já me deu a resposta... – Ele sussurrou.
Ele sabia o que a esposa pensava, sabia que teria sérios problemas. Mas se era isso que Deus queria, era isso que ele ia fazer.
Evan correu, pegou sua jaqueta, calçou a primeira coisa que viu pela frente (As pantufas cor de rosa, da esposa) e foi para o carro, sem nem ligar para a chuva que o deixava encharcado.
Ele não tinha um plano definido, na verdade, sabia que ia parecer um maluco batendo na porta do orfanato, usando pijama e pantufas humilhantes, pedindo para adotar uma menina que todos julgavam ser problemática.
Então, ele se lembrou de uma antiga amiga, que lhe devia um favor.
(...)
Violet era uma assistente social muito dedicada e naquele momento, dormia como uma criança. Ela morava sozinha em um bairro não muito longe do de Evan. Eles se conheceram na faculdade, pois os dois frequentavam os cultos que os jovens faziam naquela época.
Eles faziam cursos diferentes, mas ele ajudou a amiga a passar nas provas finais. Violet ficou muito grata e disse que se algum dia ele precisasse de ajuda, poderia chamá-la... A qualquer hora.
O problema é que ela não esperava que esse pedido de ajuda batesse em sua porta, durante a madrugada, usando pantufas cor de rosa e totalmente encharcado.
Ela o encarou com dificuldade, pois seu subconsciente não tinha acordado ainda.
-Preciso cobrar aquele favor... – Ele riu, tremendo de frio, mas com um propósito queimando em seu coração.
¹A frase apresentada no início do capítulo foi baseada em uma pregação do Deive Leonardo, sobre Samuel (Nome: A voz que devo ouvir).
²A música citada está no vídeo do capítulo.
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