Capítulo 2- Paisagens
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"Porque as circunstâncias podem ferir, mas se você escolhe ver o lado bom de tudo, começa a valorizar coisas que poucos conseguem enxergar...".
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Quando Ohana acordou, ela estava no hospital. Não se lembrava muito bem do que havia acontecido, mas seu corpo estava doendo.
Ela analisou tudo e não viu nada engessado, isso era um bom sinal, certo? Só haviam vários curativos e algumas suturas no braço e na perna. Ela olhou para o lado e encontrou Flora, sorrindo.
-Você vai ficar bem. Você caiu da árvore, não quebrou nada, mas levou alguns pontos porque os galhos acabaram ferindo alguns locais na sua perna e no seu braço... Você quase me matou de susto! - Ela repreende a jovem com o olhar, mas logo sorri novamente- Como se sente estando fora do hospital?
Ohana ri e aponta seu polegar para baixo. Ela se lembrou de que pediu para que Deus tirasse ela do orfanato, mas não pensava que fosse daquele jeito.
Ela começou a se lembrar de tudo que havia acontecido e começou a procurar seu rádio desesperadamente, ela havia caído junto com ele. Será que havia quebrado? Será que alguém tinha tirado dela?
-Está procurando isso?- Flora levanta o rádio na mão. Ohana conseguiu respirar novamente, cheia de alívio. Porém, ao mover sua cabeça, sentiu uma profunda dor no pescoço.
-Acho melhor não tentar fazer isso... - Um médico entra no quarto. Ele aparentava ter uns trinta anos, ou mais, e era alto. Seus cabelos escuros, com uns fios brancos mesclados, combinavam com a barba curta. Ele tinha um sorriso amigável e um jeito descontraído.
-Por que não, doutor?- Flora perguntou.
-Ela não sofreu nenhuma lesão séria, mas como ela caiu de uma altura considerável, é bom que não faça movimentos muito bruscos, ou pode acabar lesionando alguma parte do corpo, como a coluna. Ela vai ter que ficar aqui por mais um dia, em observação.
Ohana não sabia se aquilo era bom ou ruim. Ah, vamos ser sinceros, ela só queria dormir em uma cama quentinha, sozinha e longe das meninas do orfanato.
-Você está sentindo dor em mais algum lugar além do pescoço?- O médico perguntou. Ohana não disse nada, como de costume. Ele não entendeu o silêncio dela, então Flora disse:
-Eu acho que ela está com o corpo bastante dolorido.
Ohana tossiu bastante e isso fez seu corpo doer mais ainda, ela não estava surpresa, pois passou a noite toda no chão, tremendo de frio e respirando ar gelado.
O doutor virou Ohana com cuidado e colocou o estetoscópio em suas costas.
-Sua respiração está muito forçada e é perigoso até desenvolver uma pneumonia- Ele disse preocupado- Você esteve exposta a muito frio?
Ohana não respondeu, deixando o médico confuso novamente.
Ele pediu para analisar a garganta dela. Viu que não havia problemas visíveis, será que ela era muda?
-Você é a mãe dela?- Ele perguntou para a professora.
-Não, não... - ela disse, mesmo que quisesse muito responder o contrário- Trabalho no orfanato, aonde a Ohana vive.
Ele entendeu, ela era órfã. Imaginou que a situação não fosse tão boa como se esperava. O médico tentou não demonstrar pena, então apenas contornou o assunto e olhou o nome dela na ficha...
-Ohana Mali... Que nome interessante! Eu gostei.- diz sorrindo. A menina gostou disso, pois era a terceira vez que alguém elogiava o nome dela, contando com sua mãe e com Flora- Meu nome é Evan...
A menina apenas o olhava tranquila, ela não queria sorrir para um desconhecido.
Evan estava muito intrigado com aquilo, por isso chamou Flora para falar com ele lá fora, longe da garota.
-Ela tem algum problema de fala?
Flora riu.
-Não... Bom, não exatamente- Ela começou a explicar- Eu acredito que os acontecimentos na vida da Ohana acabaram causando feridas e traumas que nunca cicatrizaram. Desde que chegou ao orfanato, eu nunca ouvi sua voz e ela nunca diz absolutamente nada.
-Como é no orfanato? Zombam dela? Eu imagino que essa tosse dela não tenha sido um simples resfriado ocasional- Ele diz.
A professora respira fundo e diz:
-É muito difícil para ela, todos a rejeitam e dificultam sua vida. Eles não entendem o quanto a Ohana é especial, ela toca violino como ninguém! É inteligente, talentosa, realmente incrível...
-Deve ser difícil para ela passar tantos anos em um lugar e sofrer tanto... Mas, o que aconteceu com os pais dela?
Flora resumiu um pouco a história de Ohana, ela tinha acabado de ser contratada quando a menina chegou no orfanato, as duas criaram um laço muito forte com o tempo. No início foi bem mais difícil, pois Ohana não queria contato com ninguém. Ela era muito nova, mas já carregava mais peso em suas costas do que muitos adultos.
Evan ficou triste com a história da menina, ele entendia um pouco como era ser rejeitado pelos pais, mas nem de longe sua história se comparava com a da menina Mali.
Eles entraram novamente e Ohana estava dormindo de novo. Ele conversou com as enfermeiras sobre o que deveria ser feito para cuidar da menina e precisou voltar para atender os outros pacientes.
-Cuidem bem dela- Ele sussurrou para as enfermeiras- Podem dar algo do meu estoque de sobremesas na ala dos médicos.
Ohana ouviu o sussurro de sua professora, dizendo que voltaria assim que pudesse. Por mais que tudo estivesse doendo, ela teve uma boa noite e sono, depois de dez anos de pesadelos e brincadeiras de mal gosto.
(...)
Quando o dia amanheceu, Ohana acabou acordando antes de qualquer enfermeira ir vê-la. A luz da janela refletia em seu rosto e pela primeira vez em muito tempo, ela viu uma paisagem quase perfeita: Pinheiros, com um céu colorido pelos primeiros raios de sol.
A neblina estava sumindo aos poucos entre as árvores e isso fez a menina sorrir. Ela respirou fundo para tentar sentir o vento refrescante que soprava, mas as janelas ainda estavam fechadas.
Ohana tentou aproveitar aquilo, antes de voltar a ver os muros desgastados do orfanato. Bom, ela não podia reclamar, pelo menos ela tinha um teto para morar. O lugar não era perfeito, mas eles tentavam cuidar de todas as crianças que chegavam e das que nunca conseguiam sair.
Ela gostava de colecionar memórias bonitas e paisagens que já tinha visto. Ohana já esteve em muitos lares adotivos, então por mais que as famílias a rejeitassem em algum momento, ela sempre guardava uma imagem em sua mente. Por exemplo:
1- A primeira família adotiva só queria uma menina fofinha que pudesse preencher o vazio que sentiam, mas eles não ficaram satisfeitos com uma menina calada e estranha. Ohana não se lembrava mais de seus rostos, mas ela lembrou do lindo lago que viu no caminho.
2- Na segunda vez, a família até que era legal, mas não suportava o fato de Ohana ficar sempre calada e nunca retribuir nenhum gesto de bondade. Ela lembra que eles tinham um lindo jardim com borboletas lindas. Ela gostava de borboletas, pois borboletas eram silenciosas e mesmo assim conseguiam trazer cor a qualquer lugar.
Nos outros lares, aconteceram as mesmas coisas. Algumas famílias eram extremamente rudes e a deixavam de castigo por horas, até desistirem dela. Outros só queriam uma empregada, mas logo desistiam por causa das despesas...
Ohana se concentrava em não guardar apenas lembranças ruins, assim, agora ela possui memórias de lindos campos, jardins, rios e lagos... Porque as circunstâncias podem ferir, mas se você escolhe ver o lado bom de tudo, começa a valorizar coisas que poucos conseguem enxergar.
Em meio ao silêncio do hospital, ela começou a pensar no que tinha pedido á Deus. Será que Ele havia entendido direito? Bom, ela não sabia, mas agradeceu por pelo menos ter uma vista boa da janela.
-Toc, toc. – Ela ouviu uma voz na porta, era o Dr. Evan. Ele estava segurando uma bandeja com o café da manhã do hospital. Ohana não entendia o porquê de ele mesmo ter trazido, mas ela estava realmente com fome.
Ele colocou a bandeja na mesinha do lado da cama e se sentou na poltrona, no canto da sala.
-Bom dia, senhorita Mali. Teve uma boa noite de sono?- Ele perguntou. Logo se lembrou que a menina não iria responder, então limpou a garganta e disse: - Espero que esteja se sentindo melhor... Logo poderá voltar ao orfanato.
Aquelas palavras fizeram o coração de Ohana doer um pouco, ela não queria voltar. Por isso, olhou fixamente para a janela, tentando guardar na memória aquela paisagem, o máximo possível.
O Dr. Evan percebeu isso e imaginou que a menina não queria voltar. Ela era tão jovem e já tinha passado por tanta coisa... Ele orou a Deus pela menina, a história dela ficou martelando em sua mente por bastante tempo no dia anterior.
-Você quer que eu ligue a TV?- Ele perguntou, mas ela não respondeu, apenas continuou olhando para a janela. Ohana não costumava assistir televisão. As crianças do orfanato podiam assistir a programação que era preparada para eles, mas Ohana sempre aproveitava esse tempo para ir á biblioteca.
O médico queria muito que ela dissesse algo, mas não ia forçar, então ele precisava entender o que ela queria.
-Você quer que eu abra a janela?- Ele perguntou. Isso fez com que Ohana finalmente olhasse para ele, e o doutor entendeu isso como um sim.
Ele sorriu e abriu a janela. O ar estava um pouco gelado, mas finalmente Ohana respirou bem fundo e sentiu paz.
-Você está aí!- Uma mulher muito bonita entrou sorrindo pela porta, e beijou a bochecha do Dr. Evan. A moça tinha cabelos loiros e parecia ser poucos anos mais nova que Evan.
-Essa é a minha esposa, Sara... – Ele diz apresentando-a - E essa é minha paciente, Ohana Mali...
-Olá Ohana...- Sara disse sorridente, mas ficou desconfortável ao não receber resposta. Evan percebeu isso e sussurrou no ouvido da esposa: - Lembra da menina de quem eu tinha falado?
Sara abriu a boca como quem diz: "Ahhhhh tá". Evan havia conversado com ela sobre a menina, sobre tudo o que Ohana tinha vivido, ela também se comoveu com a história, mas não queria que o marido se envolvesse tanto nisso.
Ohana não tinha escutado o que ele havia sussurrado, mas não ficou incomodada, ela estava acostumada a ter pessoas falando dela o tempo todo.
-Você vai ter tempo de ir á igreja hoje, querido?- A moça perguntou.
Ohana percebeu que os dois eram cristãos, ela não entedia o porquê de estar sempre cercada por essas pessoas, os cristãos estavam em toda parte!
-Eu queria muito... Mas eu tenho plantão hoje á noite. No próximo culto estarei livre, estou com muita saudade de lá. – Ele respondeu sorrindo, a esposa dele retribuiu o sorriso e se despediu de Ohana.
Ele ajudou Ohana a se sentar devagar, sem se machucar e a observou comer seu café da manhã. Ele lembrou o que a professora havia dito sobre Ohana tocar violino, então ele pegou o celular e projetou um vídeo na televisão, era uma orquestra completa.
Ele viu os olhos de Ohana brilharem e ela sorriu ao ver a orquestra. Ele ficou satisfeito por ver a menina sorrindo pelo menos uma vez.
Ele então conversou com Deus em silêncio, dizendo:
"Pai, tu conheces cada um de nós e tenho certeza que o seu amor por essa menina é maior do que eu consigo entender... Por favor, prepare uma família de verdade para ela e desperte novamente sua voz... Seja feita a sua vontade".
Aquilo foi importante, porque Deus sempre escuta as orações, mesmo as mais simples. Nem sempre ele responde da maneira que queremos, mas ás vezes só nos falta usar as palavras certas... Pedir que a vontade d'Ele seja feita sempre foi, e sempre será a melhor decisão.
(...)
Durante o dia, Ohana assistiu pessoas passeando pelos corredores, pois a porta estava aberta. Enquanto escutava a música que passava na TV, ela imaginava a história de cada um presente ali no hospital.
Ela viu pessoas sorrindo, pessoas chorando, viu pessoas correndo e outras andando lentamente... Ohana percebeu que não é justo julgar as pessoas usando um padrão único, pois elas são como instrumentos musicais: todos possuem timbres diferentes, mesmo que estejam tocando a mesma canção.
Flora ficou um tempinho com ela, mas depois teve que voltar. Ela viria buscar Ohana no dia seguinte para voltar ao orfanato, já que a menina estava melhorando com a ajuda dos medicamentos.
As enfermeiras entravam o tempo todo para ver se ela estava bem, elas falavam sobre várias coisas e eram gentis com a Ohana. Até deram sobremesas gostosas, ela nem sabia que o hospital tinha esse tipo de comida. No fim do dia o Dr. Evan voltou para examiná-la novamente.
Ela estava bem melhor, podia voltar no dia seguinte e ficar de repouso. Bom, ela sabia que isso não ia acontecer, pois suas colegas de quarto não a deixariam em paz.
-Ohana... – Evan chamou a atenção dela- Eu sei que você não gosta de falar, mas que tal você responder algumas perguntas? Pode apenas fazer algum sinal.
Ela confirmou com a cabeça, pois queria saber aonde ele queria chegar. O médico ficou feliz, era a primeira vez que Ohana respondia com um gesto, ela quase o ignorou nas outras vezes.
-Ótimo... Ah... – Ele sorriu, mas começou a pensar. Ele tinha muitas dúvidas, mas nem sabia as perguntas ainda. Ohana achou aquilo bem engraçado.
Evan batia o dedo indicador na bochecha duas vezes para pensar, a menina tinha percebido isso de manhã quando ele foi levar a comida. Era uma mania engraçada também.
-Você está no ensino médio? Bom, eu sei que vocês tem aulas no orfanato, não é como em uma escola, mas acredito que você estude as matérias do ensino médio, certo?
A menina confirmou, movimentando a cabeça positivamente.
-Você já sabe o que quer ser fazer quando for adulta? Uma profissão?
Ela negou. Ohana gostava muito de tocar, mas ela não sabia bem o que poderia fazer no futuro.
-Bom, você ainda tem tempo... – ele sorriu- Ohana... Você acredita em Deus?
Essa pergunta era um pouco subjetiva, pois Ohana não sabia exatamente o que pensar a respeito. Sua ausência de sinalização fez Evan levar isso como um talvez...
-Bom, talvez um dia você confie completamente. Afinal, a gente não escuta você, mas Ele escuta... Agora, que tal uma piada, eu não gosto de ver meus pacientes com uma cara tão fechada.
Ohana deu de ombros, ela não costumava rir facilmente, mas ele podia tentar.
-Deixa eu pensar... – Ele disse, batendo o dedo indicador duas vezes na bochecha, de novo- Já sei! Você sabe por que os nerds nunca vão ao hospital?
Ohana negou com a cabeça.
-Porque eles nunca ficam de recuperação! - Ele disse e começou a rir muito da própria piada, a menina ficou quieta, sem esboçar reação.
-Puxa, público difícil... - Ele suspira, com vergonha- Vou procurar outra na internet...
Ele se estica para pegar o celular na mesa e quase cai da cadeira. Ohana prende o riso.
-Ha há! Finalmente você riu!- Ele disse rindo também.
Uma enfermeira o chama, dizendo que ele precisava ir urgentemente em outra sala. Ele saiu e Ohana ficou sozinha novamente, ela ficou pensando sobre as poucas horas que faltavam para ela voltar e tentou se lembrar das paisagens bonitas que já viu, uma por uma.
A menina fechou os olhos para tentar se concentrar, mas acabou dormindo e pela segunda vez em anos, ela não teve pesadelos... Talvez as coisas estivessem mudando de algum jeito.
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