Capítulo 6
Auradon dormia.
À medida que se aproximavam do centro do reino, mais pessoas encontravam adormecidas a um qualquer canto. No pátio, junto à escola de Auradon, diversos alunos tinham adormecido nas cadeiras, muitos deles a meio de uma refeição. Rhiara prensou os lábios; quanto mais magia Audrey usava, pior seria para ela. A preocupação instalou-se no coração da princesa, a qual procurou afastá-la, focando-se no que tinham de fazer.
- Estão todos a dormir. - constatou, perplexa - Todos eles.
- Não consigo chegar ao Ben. - disse Mal, com o telemóvel na mão.
- Nem ao Doug. - Evie prensou os lábios, preocupada - Nem à Dizzie.
- Nem à Jane. Não há rede. - constatou Carlos.
- Bem, ninguém pode dizer que a Audrey não é esperta... Pelo menos quando lhe convém. - completou Rhiara, encolhendo os ombros.
Os olhos verdes de Mal pousaram nela, desconfiados. A filha da Rapunzel engoliu em seco, compreendendo o seu erro. A história que lhes contara era que nunca pusera os pés em Auradon, nem conhecia ninguém. A forma como acabara de falar de Audrey poderia levá-los a perceber que, na realidade, conhecia Audrey melhor do que ninguém. Sendo uma pessoa atenta e desconfiada por natureza, Mal parecia ter pressentido a sua mentira desde que a conhecera, embora tentasse disfarçar; talvez para não ir contra Evie, a qual parecia estar a criar uma bonita amizade com Rhiara.
Perspicaz, a morena pigarreou, esboçando um sorriso amarelo ao dizer:
- É o que parece, do que se tem visto.
- Aquela é a Escola de Auradon? - questionou Celia, chocada.
- Sim, quando todos acordarem, vais adorar. - respondeu Carlos, sorridente.
A menina soltou um entusiástico "Sim!". Rhiara parou, também ela observando a escola. Apesar de já la ter entrado, era diferente ver o edifício de fora e em plena luz do dia. Carlos tinha razão; com os seus alunos e professores acordados e a interagir entre si, a Escola de Auradon deveria ser um lugar fantástico. A menina baixou os olhos, cabisbaixa. Como desejava um dia percorrer aqueles corredores, frequentar as diferentes aulas e... Fazer amigos. Viver. Aprender tudo o que pudesse para, um dia, conhecer o mundo inteiro.
- És muito sortuda. - murmurou para Celia, que a olhou com estranheza.
Harry preambulava por ali, os olhos azuis e o sorriso ligeiramente louco surgindo no seu rosto à medida que se aproximava de um dos rapazes adormecidos. Desenvergonhado, retirou a carteira do bolso do rapaz, enquanto dizia para o ar:
- Acredito que mereço uma compensação pelos meus músculos, a minha perspicácia e o meu papel neste esforço.
- E eu não acredito que, de onde vens, isso se chama "compensação" em vez de "roubo".
Rhiara ergueu uma sobrancelha, aproximando-se dele de braços cruzados. O pirata girou o gancho à frente do seu nariz, provocador ao dizer:
- Eu posso partilhar, bela dama dos olhos verdes.
- Tu não tens vergonha nenhuma na cara, pirata. - retorquiu a morena, soltando uma risada ao arrancar-lhe o dinheiro da mão e colocando-o no bolso do rapaz que fora roubado - Comporta-te, Gancho.
Harry pegou-a pela mão, girando-a suavemente até ela parar à sua frente, as mãos apoiadas no seu peito. Fitou-o, ligeiramente ofegante, vendo um sorriso mais sincero brotar nos lábios do rapaz.
- Como me comportar estando acompanhada com a mais doce e extrovertida dama de Auradon?
A princesa riu, sentindo-se confortável naquele abraço. Uma sombra tomou conta do seu rosto ao aperceber-se do que fazia. Harry franziu o sobrolho ao vê-la afastar-se bruscamente, os cabelos castanhos quase o atingindo no rosto quando ela lhe deu as costas.
As lágrimas acumularam-se nos olhos esmeralda de Rhiara, o coração batendo descompassado no seu peito. Estava a começar a gostar demasiado daquelas pessoas. Evie estava a tornar-se uma boa amiga, Mal era o tipo de pessoa que Rhiara se via facilmente a admirar pela sua coragem e atitude, Carlos era bondoso para ela desde o primeiro minuto, Uma fazia-a pensar em Eugene, com o seu sarcasmo e a sua postura, Gil e Jay pareciam ser excelentes rapazes e Harry...
O pirata. Tinha mesmo de haver um pirata naquela aventura?
A morena sacudiu a cabeça, engolindo o choro. Não só nunca mais os veria, como estava a mentir-lhes desde o primeiro segundo que os conhecera. Eles não mereciam isso.
- Estás bem? - questionou Evie, colocando-lhe a mão no ombro.
Rhiara olhou para ela, assentindo. Por instantes, pensou em contar a verdade, admitir quem era e porque estava ali. Depois, recordou-se da estranha jovem que apanhara a observá-la na ilha. Pensou em a Rapunzel, como ela ficaria se algo acontecesse à sua querida filha. Engolindo em seco, esboçou um sorriso fraco, assentindo na direção da filha da Rainha Má com toda a convicção que conseguiu.
- Para onde vamos agora? - perguntou, tentando disfarçar a sua angústia o melhor que pode.
Evie sorriu-lhe de volta, sem notar a sua tristeza. Parecia que confiava tanto nela que acreditaria em qualquer coisa que lhe saísse pela boca, o que deixava Rhiara a sentir-se ainda mais culpada.
- Para o castelo. Vamos à procura do Ben.
A morena mordeu o lábio inferior.
Tinha outro problema em mãos.
Ben.
- Olá, menina que cheira a Sol. - cumprimentou Dude, o cão de Carlos.
Rhiara franziu o sobrolho.
- De onde é que tu apareceste?!
O castelo estava mergulhado no silêncio. Mal chamava por Ben, o medo bem presente na sua voz. Não por ela, mas por algo ter acontecido ao rapaz que amava. À medida que percorriam os corredores à procura dele, a preocupação de Rhiara aumentava. Conhecia Ben à anos, era o único amigo além de Audrey que tinha antes de fugir de Corona e, embora fosse dar-lhe na cabeça pela pouca consideração que tivera para com Audrey, continuava a preocupar-se com ele.
- Não acredito que ela transformou pessoas em pedra. - murmurou Rhiara para si própria, pensando nos pais - Só espero que eles tenham conseguido fugir de Auradon antes deste caos se instalar...
- Ben! - gritou Mal, exasperada.
- Por aqui. - disse Dude, cheirando o ar.
- O Ben pode estar a dormir. - disse a filha da Maléfica, suspirando.
- Ou foi transformado em pedra. - retorquiu Celia, vendo a sua boca ser tapada pela mão de Evie.
- Ben! - voltou a chamar Mal.
- Apanhei um cheiro. Perfume muito forte, fácil de seguir. - comentou o cão, sentado à espera deles - Sigam-me!
- Ótimo, Dude! - exclamou Jay, satisfeito com o pequeno canídeo.
- Também sou ótimo a dar mimos. - respondeu Dude.
- A sério? Nunca tive um animal de estimação. - comentou Gil, observando Dude com curiosidade.
- Nunca? - perguntou Rhiara, fitando o rapaz - Nem um lagarto? Um caracol? Não há animais na ilha?
- Há muita coisa em falta na ilha, querida. - respondeu Uma, de braços cruzados - Esperem!
O grupo estacou, fitando a filha de Úrsula. Esta aproximara-se da parede, os dedos roçando na parede, onde marcas de garras eram visíveis.
- Alguma hipótese daquilo já estar assim? - perguntou Carlos, apontando para um quadro pendurado na parede, o qual fora cortado ao meio.
- Sigam-me! - voltou a dizer Dude.
Rhiara deixou-se ficar para trás, os dedos roçando as saliências na parede. Prensou os lábios, uma ideia surgindo na sua cabeça.
- Transformaste o Ben no Monstro, sua parva? - murmurou a morena, embora sorrisse ligeiramente - Nunca mais cresces.
Quando eram crianças, costumavam brincar à Bela e o Monstro. Era a história favorita de Ben e, para o agradar, também era a de Audrey.
Claro que não havia dúvida quem era a Bela e quem era o Monstro.
- Irónica. - murmurou Rhiara, limpando uma lágrima nostálgica que escorria pela sua face.
Caminhou na direção que os restantes tinham tomado, atenta a qualquer sinal de Ben. Adentrou na sala onde os dois grupos estavam, a qual estava vazia, a não ser pelas armaduras perfeitamente alinhadas nos seus lugares. Rhiara observou o lugar. Ao longe, Harry tocava nas espadas dos cavaleiros de metal, com Jay perto de si, atento a qualquer movimento do pirata.
Não confiavam uns nos outros, pensou Rhiara. No centro da sala, Uma e Mal provocavam-se, as duas líderes mais parecidas do que conseguiam ver. Evie subira para cima de um estrado colocado no meio da sala, os olhos castanhos vasculhando a mesma, enquanto a filha de Úrsula e a filha da Maléfica lançavam farpas uma à outra, distraídas.
- Acho que estamos a ser desafiados. - comentou Harry, pousando a mão no braço de Uma, que o ignorou.
A frase do pirata chamou à atenção de Rhiara, cujo sobrolho se franziu ao ver uma das armaduras mexer-se. Mal e Uma discutiam, como de costume, indiferentes aos objetos que começavam a ganhar vida.
- Meninas! - chamou Rhiara, retirando apressadamente a sua frigideira da mochila.
- Temos uma situação a acontecer aqui. - continuou Harry, os olhos azuis fixos nos cavaleiros.
- Gostas de um príncipe, Mal? - questionou a voz de Audrey, o fumo rosa esvoaçando em redor da cabeça da armadura - E que tal um cavaleiro andante? Ou cavaleiros?
As armaduras movimentaram-se, as espadas desembainhadas apontadas para o grupo. O fumo rosa espalhou-se entre elas, a voz de Audrey sibilando:
- Olhem que lindinhos... Unidos para derrotar a vilã. - soltou uma risada maléfica- Pena que existe uma cobra a rondar... e não sou eu.
- O que... - começou Uma, calando-se bruscamente.
Os cavaleiros atacaram.
- Harry, cuidado!
O pirata baixou-se, a tempo de se desviar da espada de uma das armaduras encantadas. A frigideira de Rhiara acertou na cabeça da mesma, a qual recuou alguns passos, atarantada. A raiva começava a borbulhar no interior de Rhiara. As palavras de Audrey ressoavam-lhe ao ouvido, uma e outra vez, provocando-a, atormentando-a, enervando-a.
"Existe uma cobra a rondar... e não sou eu"
Cobras. Audrey sabia perfeitamente que Rhiara odiava cobras e fizera essa analogia propositadamente. Como ela ousava?
- Eu preciso de uma distração! - pediu Mal, ofegante.
Rhiara rosnou baixinho. Num movimento ágil, girou a frigideira entre os dedos, apontando-a às armaduras andantes.
- AUDREY! - gritou, enquanto os restantes rodeavam Mal, protegendo-a - Mas será que nunca mais deixas de ter outros a fazer o teu trabalho sujo?!
- Cala-te, insolente! - ouviu a voz de Audrey guinchar, proveniente de uma das armaduras - Tu não sabes de nada!
- Ah eu sei muita coisa, minha mimada idiota. - continuou Rhiara, as bochechas rosadas de irritação - Primeiro o Ben, que fazia tudo aquilo que tu querias quando éramos mais novos! Parecia um cachorrinho! Depois esse tal Chad, por todas as flores mais bonitas, como é que sequer achas esse cabeça oca útil para alguma coisa?! Agora escondes-te atrás de magia?! Magia?! - uma risada debochada escapou-lhe dos lábios - Não tens pedalada para usar magia, docinho.
- Pelo menos eu não tenho medo de a usar, queridinha. - provocou a voz maliciosa da outra, cujo riso maléfico fez Rhiara se sentir ainda mais irritada.
- Eu não tenho medo é de usar esta frigideira na tua cara, princesinha.
As armaduras atacaram-na num movimento único, forçando Rhiara a agachar-se, fugindo às mãos metálicas dos seus mais recentes inimigos. Nesse instante, Uma e Mal aproximaram-se, cada uma desferindo um golpe com a sua espada ao mesmo tempo, a força e o poder das duas combinado espalhando-se pelas armaduras e electrificando-as. As palavras de Mal ressoaram, aproveitando a distração de Audrey para agir:
- Armadura, forte e verdadeira, faz este metal dançar!
Os cavaleiros imobilizaram-se. Hipnotizante, Mal moveu as ancas, numa dança como se de uma serpente se tratasse. Rhiara arregalou os olhos, chocada ao ver as armaduras imitarem-na, espelhando-a. A filha da Maléfica desceu do pódio, deixando Uma tomar o seu lugar. A energia vibrante da dança e da música que o grupo cantava era inebriante, forçando Rhiara a sorrir, baixando a frigideira. A seguir, Carlos tomou o lugar da filha da Úrsula. As armaduras, submissas, tinham desistido de lutar, imitando os movimentos dos demais com entusiasmo. Enquanto Rhiara se encostava à parede mais próxima para descansar, um dos cavaleiros fez o mesmo, imitando-a e fazendo-a rir.
Confusos com tantos movimentos e sobrecarregados pelos feitiços a que estavam sujeitos, as armaduras caíram ao chão com estrondo. O grupo começou a gritar e a sorrir, as divergências de lado por brevíssimos instantes. Afastada, Rhiara observou-os, sorrindo satisfeita.
- Estás a jogar um jogo perigoso... - a fumaça cor de rosa envolveu-a, venenosa - Alguém anda a fazer de conta que é aquilo que não é... - sibilou a voz de Audrey ao seu ouvido, embora um pouco mais alto do que deveria.
Rhiara bufou.
- Antes isso do que fazer de conta que sou uma cabra.
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