Sunflower
Para todos os corações que nos dias cinzentos, permanecem verdes e azuis.
Abri os olhos sem encontrar com a visão do teto do meu quarto. Eu ainda estava, de algum modo, dentro da minha cabeça. Imerso num finzinho de sonho, feito último gole de café que não quer se desprender da xícara. Não sabia que sonho tinha tido, mas sabia com quem era. Aquele que era protagonista de todos os meus sonhos.
Havia no ar uma brisa diferente. Raios discretos de sol que penetravam a cortina há muito tempo lacrada, formavam um polido arco multicolorido em meu rosto. Tudo estava como sempre, mas senti vontade de mover os móveis alguns centímetros do lugar, porque sentia que aquele dia seria um pouco mais meu que a maioria deles.
Finalmente a realidade me toma. A decoração de copos vazios e sujos da Starbucks, Vans jogados no canto da parede, e é claro, a montanha rochosa de travesseiros que me engole por pura pena de me ver mais uma vez sozinho naquela cama.
O banheiro está quente como Londres não costuma ser. E só então curvo meus olhos de minha imagem borrada no espelho para meu celular sobre a pia. São 11:46. Por um segundo meus troféus de VMA'S na casa de minha família em Doncaster não valem de nada, porque eu me sinto um completo vagabundo inútil, só e fracassado.
Mas no próximo segundo uma notificação toma conta da minha tela.
SUNFLOWER – HARRY STYLES
Esbaforido aperto o Play. Meus olhos distantes encontram o espelho e posso ver exatamente quando as primeiras gotas de água salgada se empoçam nos meus cílios. Só o timbre de sua voz faz aquelas bolhas de champagne se desmancharem dentro de mim.
Mas não é apenas isso. Aperto o play pela segunda vez com os olhos arregalados, tentando convencer a mim mesmo de que não estou ficando louco. Há algo ali.
Algo que faz meus olhos correrem para a escova de dentes em minha mão.
...
Minha mãe sabia que eu jamais me inscreveria. Preencher um longo formulário para ter a chance de ser humilhado em rede mundial? Muito obrigado, mas não. Mas minha mãe sabia o que fazer — ela sempre sabia o que fazer — e me inscreveu em segredo, retirando de mim todo o ar arrogante de quem se sente capaz de estar ali. Eu era apenas um bom filho, que jamais diria não a um desejo de minha mãe. Então eu fui.
E agora estava a ponto de romper minha bexiga. Há sei lá quantas horas preso naquele labirinto fumegante de sonhos. Quando finalmente chamaram meu número, eu corri a procura de um banheiro ou quem sabe um lugar deserto com uma moitinha. Eu não estava em condições de escolher.
— Oi! — Disse, ofegante ao passar pela porta do banheiro que sei lá por que acreditei estar vazio, e dar de cara com outro garoto.
Não sei se ele se assustou com minha entrada apressada, mas ele reagiu como se tivesse sido pego pela mãe vendo pornô. Mas ele não estava fazendo nada obsceno. Estava com sua escova cor-de-rosa entredentes. Ao me ver, cuspiu apressado e tímido. Tentou rodar e pressionar qualquer botão na torneira, mas ela era acionada por sensor de movimento, e quando ele descobriu era tarde demais, havia espirrado água para todo lado, inclusive bem na minha camiseta.
— Oops!
Eu era do tipo que metia o dedo do meio facilmente, e andava com alguns palavrões engatilhados na ponta da língua. Mas o garoto era bonito e desastrado, e ser babaca com ele seria como gritar com um bebê. Levei a coisa na esportiva, mas nada de crédito para mim, eu não estava sendo altruísta, estava meio envolvido por algo nele.
— Tudo bem. Você parece... uma pilha de nervos.
Ele respirou fundo e suspirou.
— Vou fazer a audição daqui a pouco... eu achei que tivesse calmo. Disse para mim mesmo que estava, mas então comecei a pensar que estava com bafo, e mesmo os jurados ficando há metros de distância... não consegui me conter, e aqui estou eu! — Ele abriu os braços de modo teatral, e voltou a tamborilar os dedos sobre a pia.
Sei que é odioso fazer isso, mesmo assim seguro de leve os dedos dele.
— Você tem uma bela voz, mesmo conversando e surtando. Vai dar tudo certo.
Ele sorriu e agradeceu. Eu queria muito continuar aquela conversa, mas não tinha muito para onde seguir com aquilo sem que minha bexiga explodisse. Corri para o mictório mais distante porque não havia portas entre eles, e eu sabia que não devia abrir o zíper da calça e colocar o negócio todo para fora do lado daquele garoto fofo.
Desatei o botão. Escorreguei o zíper e puxei a cueca da forma mais sutil possível. Tentei tapar tudo com as mãos enquanto mirava perfeitamente o centro do vaso, — um dos poucos momentos onde eu queria ter nascido uma garota, poucos mesmo porque acredite, eu respeito e temo a coisa toda da menstruação e gravidez e menopausa, mas uma garota jamais estaria com as mãos enfiadas na calça, vendo outra garota incrível pelo espelho — mas não aconteceu nada. Vi o garoto caminhar para fora pelo espelho e finalmente senti que agora tudo daria certo. O alívio era tamanho que me fez fechar os olhos. Ouvi passos perto de mim, mas tudo bem, xixi é a coisa mais normal para se fazer num banheiro, contanto que não houvesse um garoto perfeito do meu lado.
Quando abri os olhos de novo, era exatamente o que estava acontecendo.
Ele estava no mictório ao lado, eu me assustei e digamos que... perdi o volante por uma fração de segundos. Vi quando gotinhas acertaram o tênis dele. Quis morrer bem ali.
— Ai, que vergonha! Me desculpa pelo amor de Deus?
Levei uma mão até o rosto para me esconder, mas acabei dando mais visibilidade para as minhas partes baixas. Segundos constrangedores se passaram onde eu tentava não checar o instrumento dele.
— Tudo bem. Eu voltei porque não quero ficar apertado na audição e... queria te pedir desculpas. De novo.
— Não faça isso. Eu... me desculpa mesmo! Sou um imbecil.
— Não é nada. Meu nome é Harry.
Ele finalizou o processo. Fechou o zíper e me estendeu a mão.
Eu fiz a mesma coisa, e apertei sua mão, ciente de que devia estar com nojo, mas não estava nem um pouquinho. Na verdade, estava satisfeito e empolgado.
— Eu sou o Louis. Deixa que ajudo você.
Passei meus dedos pelo sensor escondido sob a torneira para evitar um segundo tsunami.
— Obrigado. Você é fofo. Vai fazer a audição ou já fez?
— No futuro.
— Eu não consigo parar de pensar que molhei sua camisa.
— Relaxa, eu molhei o seu tênis também. — Tentei rir, mas a piada não saiu tão boa quanto parecia na minha cabeça.
— Ninguém vai ver meu tênis, assim como meu hálito. Veste isso! É meu suéter da sorte, sabe? Eu quero que ele dê sorte para você.
Harry me enrolou numa jaquetinha cinza e cumprida que eu jamais vestiria por conta própria, mas até que não ficou nada ruim.
— Não precisa disso... Opa, eu adorei!
— Ficou lindo. Er... eu tenho que ir.
— Tenho que te devolver essa coisa depois!
— A gente se vê por ai! — Ele berrou e saiu tropeçando nos próprios pés.
— É, eu espero que sim...
...
Naquele dia fiquei me perguntando se ele era sempre desastrado daquele jeito. Hoje sei que sim. Harry sempre teve dificuldade com cadarços, pisos lisos e a gravidade.
Estou na porta do meu prédio quando constato pela primeira vez no dia o quanto sinto a falta dele. Sou cuspido pela porta giratória e dou de cara com os 350 acres do Hyde Park. É hora do almoço, mas ainda é o Hyde Park. Abaixo dos 20° vejo um grupo de garotas me olhando, tentando descobrir se me pareço demais com aquele carinha daquela banda, uma mulher animada passeando com meia dúzia de Shih tzus, e é claro, casais. Dedos entrelaçados, olhares fixos e beijos que começam sem aviso prévio.
...
— Vas Happenin, Leãaam??
— Vamos. Pelo menos hoje não falamos sobre cenouras, certo, Tommo?
Puxei a touca preta que estava em minha cabeça, para cima dos meus olhos. Uma forma super madura de lidar com as provocações de Liam e arrancar uma gargalhada desinibida de Niall — coisa que não requeria grandes esforços.
Ouvi os passos dos garotos subindo pela escada, era o fim do nosso terceiro Vídeo Diary. A terceira vez que cinco garotos de altura mediana e muito cabelo, se amontoavam em meia dúzia de degraus para falar bobagens diante das câmeras, se sentindo os novos Beatles com muito, mas muito respeito mesmo.
— Tem alguém aqui? — Estiquei os braços, feito um sonambulo, me certificando de que nem todos haviam subido a escada. Eu sabia que um deles havia ficado. — Suuuuuuun? Você ainda está aqui, não está?
Duas mãos tocaram as minhas. Quase fazendo um high-five duplo, exceto é claro por não haver impacto entre nossas mãos, apenas um toque leve que aos poucos afundou os dedos entre os meus, os entrelaçando de vez. Eu sabia bem quem era.
— Sun? Por que não responde? Ainda com ciúmes pela Mary?
— Não! Porque eu é que vou sair com a Mary. — Respondeu Harry.
— Outch. Me sinto trocado, Sun. — Fiz um biquinho infantil.
— Por ela ou por... mim?
— Ora! Pela única pessoa que faz o meu tipo.
— Então, a Mary come cenouras?
— Eu posso ter mentido para as câmeras sobre meu interesse por garotas que comem cenouras, Sun.
— E... sem câmeras. Qual o seu tipo, Sun? — Senti Harry se movimentando no degrau, se arrastando para mais perto e me chamando de Sun. Um plágio descarado!
— Sunflower.
— Seu tipo... seria um girassol?
— Não! — Ri do modo como Harry entrava no meu jogo. Jogo esse que eu só sabia jogar com ele, e eu adorava mesmo sem saber o que diabos estávamos jogando. — Você quis dizer Sunflower. Você, Sun e eu, Sunflower.
— E qual o seu tipo, Sunflower? — Senti o ar quente que saía da boca dele.
— Bom, não é nada específico demais, mas... talvez... olhos verdes, boca bem delineada, cabelos cacheados e... quem sabe quatro ma-
Os lábios de Harry tocaram os meus no timing perfeito para que eu não tivesse tempo de citar sua anomalia genética e estragar o nosso primeiro beijo. Não sou do tipo que diz "os lábios dele eram mágicos", mas os lábios dele faziam mágica dentro de mim. Abriam portas que eu não tinha as chaves, despertava criaturas que eu nem sabia que viviam por aqui. Deve ser por isso que assim que ele me soltou, me livrei com urgência da touca que vedava meus olhos, encarei o rosto dele meio entorpecido e excitado, o agarrei com minhas duas mãos e voltei a beijá-lo até sentir os lábios adormecerem.
...
Sempre quis beijar Harry. Desde que o conheci surtando naquele banheiro. Mas eu não tive coragem de tomar a atitude. Antes daquele dia na escada, sempre que pensava em beijar ele era como provar uma comida que nunca comi, algo que não conheço o gosto. Eu era imaturo, mas admitia pra mim mesmo o desejo de sugar seus lábios, só que rapidamente me lembrava dos babacas que ficam rindo quando você está comendo algo diferente, algo que muitas pessoas não gostam, e das piadas de mau gosto que fazem quando você gosta daquilo que eles não gostam.
E depois que provei, eu tive a consciência expandida sobre mim mesmo. Me apaixonar por Harry foi muito além da coisa mais maravilhosa que me aconteceu, foi como subir 300 mil degraus na escada do autoconhecimento e no modo de ver a vida. Amar Harry justificou meu desinteresse clássico por meus poucos namoros anteriores, me mostrou que além de um meninão que sabia arrancar algumas gargalhadas, eu podia fazer mais, ser mais, tomar conta de outro alguém, me jogar na frente da bala de alguém.
A gente se beijou em diversos cantos, esquinas, boxers de banheiros, sob os lençóis de nossas camas, mas não falávamos sobre o porquê escondíamos as coisas. Até um dia onde subitamente Harry deu o primeiro, o segundo e o terceiro passo. Como se ponderasse sobre o dia estar quente, ele disse "Sou gay. E amo você. Quero você. E não quero pela metade, como um quebra cabeça com peças faltando. Eu quero tudo."
A coragem e convicção daquele garoto de dezessete anos fazia eu me sentir como um velho repetente, preso em espiral no terceiro ano do ensino médio anos a fio. Decidi que o próximo grande passo partiria de mim e chamei Harry para morar comigo. Claro que eu não estava pronto para as duas respostas possíveis, então primeiro comprei uma mansão, depois conversei com Anne, preparei um jantar — e quero frisar minha tamanha dedicação naquele frango recheado — maravilhoso e só então chamei Harry.
Infelizmente, não posso dizer que vivemos felizes para sempre.
...
— Je vais au cinéma avec mon copain et ma famille. Je vais au cinéma avec mon copain et ma famille. — Dizia Harry, cambaleando pelas ruas de Paris com os punhos retorcidos e as palmas das mãos para cima, do modo mais equilibrado possível para alguém que havia tomado quase uma garrafa inteira de vinho tinto.
— Ainda não acredito que você disse aquilo!
— Vão levar um tempo para traduzir o que eu disse.
— Talvez só percebam depois que a entrevista for publicada. Tomara que não cortem, você fica sexy falando francês.
— Tenho outra pra você. — Harry se debruçou em minha direção e me segurou pelos ombros até sua boca estar em meu ouvido. — Allons-nous faire l'amour dans notre chambre?
Meu francês se limitava à Bonjour e Bonne nuit, mas bastou os sussurros de Harry para eu saber que aquele havia sido um convite para sexo. E graças a cidade de Leeds, hoje não teríamos nada daquela tensão da nossa primeira vez.
...
Balanço a cabeça, afastando aqueles pensamentos das noites que passei com Harry para longe, me vejo de volta caminhando sozinho por Londres, paro na calçada e com as sobrancelhas arqueadas me pergunto o que estou fazendo, para onde estou indo.
Talvez seja mesmo apenas uma música.
Atravesso a porta da Starbucks e ouço o sino soar como um "bom dia, Louis", porque aquele lugar pra mim é a cozinha da minha casa. Kate, a garçonete ruiva me pergunta se quero o de sempre, mas hoje não. Peço um café puro e forte, algo que me agite, que me segure pelo colarinho e me faça saber o que estou fazendo.
— Oi! Meu Deus! É você mesmo?! Eu posso fazer uma foto?
Tantos anos se passaram, mas os fãs ainda conseguem reconhecer meu rosto inexpressivo e colocar um sorriso grato nele.
— É claro que sim!
Tenho que segurar o IPhone dela e bater eu mesmo a foto, pois a garota não para de tremer. Aproveito de sua emoção para inclinar a câmera, afinal não quero jamais transparecer que sou alguns centímetros menor do que ela.
— A sua música... eu tô muito nervosa e não sei como explicar, nem quero tomar seu tempo, mas... Olha só, essa é a Alicia. — Ela esfrega o polegar pela tela do celular, para que a câmera deslize e eu possa ver a foto na sua tela inicial. É ela com o braço esticado para bater uma foto no espelho, dela beijando uma outra garota.
— Formam um casal foda! — Digo com um sorriso apertado na boca.
— Terminei com ela, porque vamos pra faculdade em breve e além do mais, meus pais jamais aceitariam.
Estou piscando com cara de idiota, porque não faço ideia do que dizer além de "a vida real sempre tem os piores finais possíveis." Mas como no Senhor dos Anéis, aquele não era o final oficial e ela continua a falar.
— Mas ontem você... lançou essa música e... eu me vi, daqui dois anos batendo de porta em porta em alguma república em... Cambridge talvez e dizendo pra ela que éramos jovens demais pra saber que tínhamos tudo. — Ela respirou fundo e um sorriso brotou em seu rosto. — Então, eu fui ontem mesmo.
— Qual o seu nome?
— Elisa.
Não sabia como dizer um obrigado do tamanho que ela merecia. Talvez se eu escrevesse com glacê num daqueles bolos de 30 metros que estão no Guiness Book. Segurei Elisa pelos ombros, torci para que ela não tivesse percebido a umidade nos meus olhos e a puxei para um abraço apertado. Sabia que deveria significar muito pra ela, mas ela provavelmente jamais saberá o quanto eu precisei daquele abraço.
— Obrigado... — Digo, ainda sem conseguir me desfazer do abraço.
A fama tem duas faces, mas dizer que é como os lados de uma moeda não é uma analogia muito verdadeira. Quem me dera poder escolher sempre o lado da carinha sorridente e deslumbrada dos fãs, sempre com um punhado de palavras mágicas na boca. Mas a fama é como aquelas imagens de ilusão de óptica. Como aquela do vestido azul ou preto. Ora você vê azul, ora preto, ambos bem na sua cara.
E depois dos abraços de fãs, sai da Starbucks com meu café inglês e senti um flash bem na minha cara. Um passo para trás. Retinas queimando. Pálpebras fechando. Existe um mito de que paparazzis escolhem uma vítima e a persegue por aí. Mas de novo, não é bem assim que acontece. Antes de ontem, não haviam flashes. Mas ontem lancei uma música, e aos olhos de minha gestão foi como um satanista desfilando numa igreja. Então agora, eles vão mandar paparazzis sedentos por uma manchete sensacionalista, já consigo imaginar a capa: "Ex-1D curte ressaca na Starbucks.".
Não é fácil ser um dos integrantes da One Direction. E não vou dizer "principalmente sendo eu", porque eu seria muito egoísta e mesquinho se fizesse isso. Cada um de nós tem sua própria cruz marcada por ferro em brasa em nossa pele. Ser de uma boyband que alcançou tanto sucesso, é como morar numa cidade pequena, onde absolutamente todos te conhecem, não por quem você é de verdade, mas pelo rumor mais constrangedor e absurdo que conseguiram espalhar com o seu nome.
Aperto o passo para sair da trilha daquela câmera e quando consigo, estaciono na calçada com as costas coladas em uma vitrine qualquer. Só me dou conta de que tirei um cigarro do bolso, o isqueiro de outro e o ascendi, quando inalo a nicotina. Primeiro sinto o alívio, e então a raiva. Nunca fui fã de verdade de cigarro. Mas há alguns anos, eles acharam que cairia bem no personagem. Acho que me fazia parecer um eterno adolescente rebelde entorpecido pela luxúria que a fama alimentava. Ascendi tantos cigarros para ser fotografado e gerar alguma distração, que tomei gosto pela coisa. Eu os odeio por despertar o vício em mim, e me odeio por ter cedido. Eu havia dado o click, e agora eles tinham conseguido colocar um vírus no meu sistema.
— Taxi! — Estendo o indicador, para sinalizar que preciso de um carro e não estou disposto a perder mais meio minuto esperando um Uber. Entro no carro negro. O motorista não dá a partida e me olha com uma sobrancelha arqueada.
— Precisa apagar o cigarro, senhor.
— É claro, sinto muito. — Dou um último trago. A saideira. E apago o cigarro na embalagem do meu café. Num impulso jogo tudo na lixeira mais próxima. Esse sou eu desistindo do meu café pela metade, só pra resolver tudo mais rápido.
— Para onde vamos, senhor? — Ele me olha por cima do ombro.
Abro a boca para dar o endereço do meu apartamento. Fugir me parece certo. Mas a vida prega peças com a nossa cara, faz você se perguntar se existe alguém brincando com nossos sentimentos, testando nossas atitudes, apostando algumas libras para saber até onde vamos e quanto aguentamos até sermos completos covardes.
O taxista gira a chave e liga o rádio. Ouço o radialista anunciar. E agora, o lançamento do ex-one directioner, Harry Styles. Sunfloooower! Me pergunto até quando vão ignorar o fato de que entramos em hiatos e não nos tornarmos exs. Embora eu e Harry sim possamos usar esse termo deprimente. Olho pela janela e descubro que a vitrine onde me apoiei, era a entrada de um museu. Lugar esse em que fui uma única vez acompanhado pela mesma voz que invade o carro nesse momento.
Um sinal dos tempos.
...
— Que mal tem em me dizer onde estamos indo?
— "Saber quando se deve esperar é a grande chave para o sucesso"!
— Será que já não alcançamos sucesso demais, não Hazz?! — Nem precisei concluir a frase pra saber que tinha falado merda. Harry parou na calçada e me olhou. Me olhou como se olhasse para a sessão de verduras e legumes do mercadinho, ponderando qual a melhor salada para ser servida como acompanhamento. Pena que comigo a dúvida era outra: Continuar aquela conversa ou me ignorar totalmente.
— Você só precisa de uma surpresa e com urgência. — Ele sorriu meio a força. Tinha um sorriso tão bonito que a maioria nem notaria a diferença.
Agradeci à Deus por Harry ter escolhido a segunda opção.
— Tem razão. Quem você havia citado? Gandhi? Dumbledore?
Tentei buscar um rumo mais leve para a conversa, e ele sorriu. Harry sabia que eu detestava modinhas, mas não se pode odiar algo sem assistir e ler tudo três vezes.
— Xavier Maistre. Li num livreto no aeroporto de Paris e não sei por que nunca mais esqueci. Lembra da nossa primeira vez em Paris?
— É claro que sim.
Eu lembrava muito bem da nossa primeira ida à Paris. Nossa primeira e última entrevista de casal. Só eu e Harry na cidade do amor em clima de lua-de-mel. Sei que na cabeça de Harry, as lembranças acabam por aqui, mas comigo a história foi diferente. Minha memória ignora o fato de que dois anos nos separam daquele dia, pois lembro como se fosse ontem. Havíamos bebido vinho, a chuva nos pegou no meio do caminho, mas optamos por caminhar com água empossada nos sapatos, chegamos ao hotel e podíamos torcer nossas roupas encharcadas, mas por influência do álcool, da incidência de Paris sobre nós — onde cada passo era como seguir uma trilha de pétalas de rosa — acabamos nus sobre a cama, com as roupas emboladas no chão. Quando nos dispersamos, Harry quis tomar um banho e eu disse que já estava a caminho, então meu telefone tocou. "Simon Cowell" apareceu no topo da tela, atendi confuso, porque Simon não era do tipo que te liga as duas da manhã, mas do tipo que marca uma reunião e de forma estratégica diz o que precisa objetiva e calmamente até que você diga sim, tope e assine tudo o que ele deseja. Mas talvez aquele fosse só o Simon que conheci até aquele dia, porque quando atendi o telefone, eu podia ouvir as bufadas irritadas e até sentir quando ele perdia o fôlego entre toda sua revolta. "Seus bostinhas. Quem vocês pensam que são? Você tem ideia de quanto aquela maldita entrevista me custou?". Até ali eu só consegui ficar com os olhos estatelados, pensando que ele apenas estava de porre, Simon nunca tinha levantado a voz pra mim antes, sempre foi um maldito ambicioso, mas "seus bostinhas"???!! Então ele continuou. "Eu sempre gostei de você, Louis, mas achava que você era mais inteligente. Se quer continuar com esse joguinho, vamos jogar. Eu só te prometo uma coisa: a próxima capa que seu namoradinho vai estampar vai ser ao lado da garota mais linda, jovem e influente do mundo. Chega de senhoras de meia idade. Chega de ser bonzinho com você." Ouvi o bip da chamada encerrada, minhas mãos tremiam de raiva, aquele era o velho Simon, o que dizia que gostava de mim, mas dessa vez nada de "eu só quero te ajudar, faço isso por você". Ele era venenoso e manipulador, naquela noite me senti como se um buraco tivesse sido aberto no chão, o homem que dizia ter as rédeas do nosso futuro me odiava, me manipulava e o pior de tudo era que mesmo sabendo que ele queria me fazer sentir culpa, eu sentia culpa.
Harry nunca soube dessa ligação, mas Simon? Ele cumpre o que promete.
— É aqui. Sinta-se em casa.
Voltei à 2014 com o som da voz de Harry me apontando, com um sorriso que não cabia em seu rosto, a porta do National Gallery bem no centro de Londres. O lugar estava deserto e embora aquilo já se tornara rotina, estar num museu daquele tamanho em plena Trafalgar Square e não ver uma mísera alma viva caminhar ou guardear os corredores, era definitivamente como pisar num cenário pós apocalipse zumbi.
— É lindo, Sun. — Disse avaliando um pouco do lado interno, mas também checando pelo vidro da porta de entrada se não havíamos sido seguidos ou se não estávamos sendo fotografados.
— Essa sessão está repleta de fotografia. E você, meu amor, sabe como eu amo fotografia!
— O seu ícon do twitter não nega!
Fiz ele rir. Me odiei um pouco menos por não estar prestando atenção no interior da galeria.
— Sabia que depois que coloquei aquela foto, 1/3 das fanfics Larry tem um Harry fotógrafo ou um Harry adolescente que ama tirar fotos de paisagens urbanas?!
— Elas sempre acertam!
— Se isso fosse uma fanfic, nós faríamos amor bem na frente da polêmica Virgem das Rochas de Leonardo DaVince.
— Aquele ali? Porque não posso dizer que ficaria à vontade com minha bunda de fora bem na frente daquelas criancinhas.
— Vai ficar ainda mais incomodado se souber que aquele bebê ali é Jesus. Mas, se serve de consolo, sua bunda realmente deveria estar numa galeria de arte.
— Sun...
Beijei ele e beijei com tudo. Jesus e seus amiguinhos crianças que me perdoem, mas, o meu marido era um homem sexy de cachos recém crescido que reservou uma galeria de arte e agora queria meu traseiro exposto ali apenas para ele.
Não que eu me orgulhe de desejar estar dentro das fics que nossas fãs escrevem, mas preciso desabafar um segredo: essas histórias muito criativas e bem gráficas, as vezes se tornam fantasias e as vezes, eu disse as vezes, nós as realizamos.
E era assim, com qualquer assunto aleatório que acabava em piada que Harry conseguia desanuviar meus pensamentos, eu voltava pra ele como aqueles desenhos animados voando pela trilha do aroma de torta. Por isso eu o pedi em casamento. Porque embora todos pareciam ir e vir, Harry se tornou a única constante da minha vida.
Havia um cantinho — definitivamente distante das obras importantes — que me dava a impressão de ser improvisado, montado às pressas em dez minutos por um estagiário magricela super dedicado, mas atrasado e muito incompetente. Nele havia um trono — que infelizmente não era do tipo Game of Thrones — vermelho com cara de realeza, a frente de um fundo escuro de tecido. Há cerca de dez passos à frente desse cenário, estava uma tela em branco meio torta, colocada sobre um tripé que Harry precisou consertar para ficar na altura correta para ele.
— O que diabos você está planejando?
— Que você vai ser um bom garoto. Se sentar, fazer uma pose e ficar quieto. Assim como a Rose fez.
— Mas com as roupas?
— Infelizmente.
— Okay... embora eu prefira dar as ordens do que receber. Mas me diz, por que isso? E por que agora?
— Porque você... parece uma pilha de nervos. Precisa ficar parado um pouco, relaxar. Mas você odeia meditação e tudo mais que acalma. Então, só fique parado. Além disso, preciso treinar porque quero pintar um quadro para o casamento da Tia Jay.
— Okay, já entendi. Vou fazer isso antes que use todos os meus pontos fracos.
Meio emburrado me sentei no trono. Até que todo aquele exagero acolchoado não era má ideia, pareciam mãos massageando minha bunda e eu até que gostei muito. Harry estava checando as tintas à óleo e organizando o material, quando meu celular começou a vibrar. Primeiro pensei que seria Lottie surtando com uma nova fic onde agregavam ela e Gemma como lésbicas perfeitas uma para a outra, ou quem sabe alguma das gêmeas me indicando looks para shows, — porque elas eram novas demais para saberem que eu mal escolhia minhas cuecas — sabia que Fizzie não deveria ser, porque ela só aparecia quando o motivo era importante. Fizzie e eu somos iguais.
Na minha tela li "Eleanor Calder" e bufei no mesmo instante. Não que eu detestasse Eleanor, mas eu detestava o motivo e a circunstância em que ela entrou em minha vida. Eleanor era a sobrinha mimada de um dos chefes da minha gestão. Em algum momento decidiram que eu precisava de um namoro de fachada e acho que ele não tinha nada a perder investindo entre algumas aspas, na carreira da sobrinha. No começo era só ela aparecer que eu me armava, como um porco espinho, mas agora somos amigos, ou algo como colegas de cela. Estamos presos e não há como fugir.
Eu estou aqui. Os paparazzis estão aqui. Onde diabos você está?
Revirei os olhos pesadamente. Havia me esquecido um daqueles desfiles sem graça de "oi, sou hétero pra caralho, podem confiar". Mas quem se importa? O Simon com certeza porque é o próximo nome que leio no meu celular.
Me informaram que você está atrasado. Sabe o que vai acontecer se não aparecer.
Coloquei meu celular no vibratório e o enfiei entre minha coxa e a poltrona. Harry começou a me pintar. O celular vibrou outra vez.
Louis, pelo amor de Deus. Os paparazzis vão embora, me diz onde está e nós vamos até aí. São só cinco minutos e pronto. O Simon não vai perdoar essa.
E mais uma vez.
Okay, filho. Vou refrescar sua memória porque gosto de você. Vai mesmo gostar de que o próximo passeio com uma namorada seja do seu maridinho? Porque caso tenha se esquecido, vocês se casaram. SEM a minha benção. E eu não fiz nada, porque gosto de você. Mas se não aparecer em dez minutos, diga ao Harry que estou trazendo a próxima garota e que ela não será tão legal quanto a última.
— Sunflower? Você não está sorrindo! Como vou pintar seu sorriso assim?
— Me perdoa, Sun...
...
O taxista puxa o freio. Com certeza estamos em algum sinal, mas na verdade não... é o meu destino final. Não sei como tive coragem de dar esse endereço a ele.
— Está entregue, senhor. Chegamos em Princess Park.
Senti um frio ingênuo na barriga, um sussurrar desesperado como quando me disseram "É oficial. Você comprou o Doncaster Rovers", mas logo após me perguntar o que diabos eu estava fazendo, eu tinha uma lista muito boa com argumentos.
1. Eu não sou um egoísta desgraçado que esquece as origens.
2. Eu queria mesmo ajudar o time porque amo futebol.
3. Eu tinha dinheiro pra fazer isso sem falir no dia seguinte.
4. Eu AMO aquele time.
Sobre estar de volta em Princess Park, eu já não podia dizer muita coisa. Talvez o número 4 funcione aqui também. Se você trocar Princess Park por Harry. Se pensar que foi com ele que dividi a casa que estou encarando pelo vidro do carro. Casa esta que não entro há dois anos, mas fui incapaz de me desfazer. Casa esta que vive trancada como a fábrica do Willie Wonka, mas que aos meus olhos mais parece uma gaiola cheia de cadeados que guarda minhas mais bonitas e complicadas lembranças.
— O senhor pode... dar uma volta no quarteirão por favor, ou talvez duas?
O taxista é educado demais para negar, e ele sabe que vou pagar, então tudo acabará bem. O motor ronca e eu volto a respirar no ritmo certo.
...
Harry está deitado de lado se olhando fixamente no espelho cumprido do nosso quarto. Ajeitando o próprio cabelo longo e fazendo poses como se decidisse como pretendia ser fotografado num photoshoot ousado no futuro. Enquanto isso, eu estou tenso, são tempos difíceis e eu não sei como ele não consegue perceber isso.
Para mim, até o ar do mundo parece rarefeito. Para mim, há um zumbido constante no ouvido, os dias estão cinzentos e há cartazes sensacionalistas sobre o fim pairando pelos móveis da casa, pelos postes de luz da rua, pelos semáforos desligados.
Hoje é dia vinte e cinco de março de dois mil e quinze. Há algumas semanas descobrimos que a aliança entre Simon Cowell e a Sony está com os dias contados. Na verdade, o contrato chegará ao fim em dezembro desse ano, o que os renderá muitos dias de negociação, mas sabemos que Simon não consegue colocar a cabeça no travesseiro e dormir porque a Sony recusou oficialmente a proposta de renovação.
Caso não consiga a renovação, Simon perde parte considerável dos direitos que tem sobre nós, e como somos sua galinha dos ovos de ouro, ele jamais vai deixar que isso aconteça sem colocar todas as suas garras para fora. Não é como se ele andasse sumido nos últimos dias, na verdade, Simon já está agindo e até onde sei, ele já ultrapassou os limites da ética e do respeito há muito tempo, mas agora será pior.
Uma vez que cogitamos os cinco pela primeira vez termos algum tipo de liberdade em nossas mãos, era questão de tempo até alguém usar o termo "solo", mas eu engoli a seco quando essa pessoa foi Harry. É claro que todos já pensamos nisso, e também é claro que sempre soa como traição, então ninguém fala em voz alta, mas quando fizemos nossas audições era essa a nossa intenção então é bobagem ignorar.
— Amor, o que acha de pedirmos um japonês?
Quando me preparo para encarar Harry ironicamente, sinto o celular vibrar, não uma ou dez vezes, mas, umas dez mil vezes! Tem algo de errado acontecendo.
— Li uma lista de benefícios do sushi e acho que devíamos viver a base de sushi.
São tantas notificações que meu celular trava e eu não consigo ver nenhuma, sou praticamente o Harry Potter tentando pescar uma carta vinda da chaminé.
— Na verdade, acho que vou fazer um photoshoot nu com sushis pelo corpo. O que você acha?
— Você não é a Lady Gaga e... puta que pariu! O Zayn saiu da banda...
— O quê? Claro que não saiu. Nós saberíamos.
Apenas inclinei o celular para Harry.
— Manchete sensacionalista. E dai?
— E dai que o Simon confirmou tudo. Ele já foi a público. É oficial.
— Tem algo errado, talvez seja uma nota falsa ou...
— Harry, já chega! Para de fingir que não estamos... eclodindo! Eu tenho que sair. Não saia de casa!
Apanhei um punhado de roupas e fui me vestindo no caminho até a porta, me joguei no carro, disquei para Zayn e só consegui contato com sua caixa postal.
Desde que Simon recebeu a negativa por parte da Sony, eu podia ver fumaça saindo por suas orelhas. Logo ele arrumou uma estratégia. Já que não conseguiria uma espécie de indenização absurda por parte da Sony, queria fazer a One Direction lucrar de um jeito novo. Simon nos ofereceu a proposta de entrarmos em hiatos. Na prática, estaríamos livres dele e de seu exército de sanguessugas, mas no papel ainda estaríamos ativos e interligados como traços do DNA de uma pessoa em coma induzido. Ou seja, teríamos liberdade provisória para fazer o que quisermos individualmente, Niall poderia tocar um violão e cantar folk, Liam poderia ter dançarinas, Harry usaria as roupas e os batons que sempre sonhou, mas eu e Zayn, não é que não gostássemos dessa ideia, mas fomos os primeiros a dizer não.
Entendi logo de cara a ideia de Simon. Aprendi como ele funciona há algum tempo, um misto de poder e dinheiro, e as vezes compensa perder um pelo outro. Simon não tinha como lucrar com a One Direction em 2015. Não no ano em que seu contrato ruiria, não no quinto ano de uma banda que já alcançou o seu sucesso. Mas se entrássemos no famigerado hiatos, com um novo contrato assinado, ele teria a garantia de que um dia voltará a lucrar as nossas custas, como uma apólice de seguros.
Mais uma vez Simon nos usava, mais uma vez ele dizia que estava fazendo o melhor para nós, porque gostava muito da gente, como filhos. Mais uma vez era mentira. E quando expliquei para Zayn o que Simon pretendia, ele também disse não. Me lembro dele dizer "vamos cortar o mal pela raíz, vamos até o fim". Zayn e eu nos tornamos a resistência, tramávamos silenciosos sobre como resistir ao Simon, como conseguir o melhor acordo possível para todos os cinco a longo prazo, enquanto é claro, a mídia usou nossa aproximação para dizer que éramos colegas de drogas.
Apenas mais um plano do Simon para boicotar a imagem da banda.
Por isso agora lendo todas aquelas notícias e vendo o choro dos fãs, tudo o que preciso é falar com Zayn, gritar com Zayn, socar Zayn se preciso. Não acredito que além de abandonar a banda, ele me deixou sozinho numa luta que travámos juntos!
...
Perdi as contas de quantas voltas o taxista deu.
Não tinha mais forças para seguir sozinho, peguei meu telefone e tive vontade de ligar para minha mãe, porque ela sempre sabia o que fazer. Mas há três anos, já não posso mais fazer isso. Não sei se a saudade ou simplesmente o modo como éramos parecidos, mas começo a chorar porque penso imediatamente em ligar para Fizzie.
Quando desço do táxi, não estou mais em Princess Park. Não posso ligar para elas duas, mas sei onde posso ir para visitá-las. A única vantagem de cemitérios, é que não preciso me preocupar com paparazzis.
Sentado sobre a grama, estou prestes a desabafar sobre o meu dia quando uma mão toca meu ombro e diz:
— Sabia que te encontraria aqui.
...
Alguns dias haviam se passado e o mais perto que eu continuava de Zayn era sua caixa postal. Aquilo me atormentava tanto que acabei desabafando no twitter e isso gerou uma das piores brigas virtuais que já me envolvi, porque amo Zayn, mesmo sem entender sua decisão.
— Você pode apagar o cigarro? Essa é a nossa cozinha, e eu queria conversar com você.
Apaguei o cigarro.
— Obrigado! Eu não quero chatear você, e sei que isso vai chatear você. Mas, já pensou que se aceitarmos essa proposta, teremos alguns anos para escrever músicas sobre a gente, contar pras pessoas que amam nós dois que... a gente ainda se ama!
— Não merecemos alguns anos, Harry. Nós merecemos nossas vidas inteiras.
— Eu sei mas... eu tô cansado de brigar, Louis.
— Você não tá brigando, Harry. Você tá pensando em fotos, comidas saudáveis e em colocar mais mensagens escondidas. Pelo amor de Deus! Olha só pros seus braços, nós literalmente parecemos páginas de um livro aberto, nós criamos ursos que deixam migalhas gays por onde passam! A que ponto chegamos, Harry?
— Eu sei, mas temos a chance de sei lá... tomar fôlego, sabe? Fazer dessa pausa um balão imenso de oxigênio, onde nós podemos agir naturalmente por ai até que se torne impossível que alguém acredite nessas máscaras que inventaram para nós dois.
Meu celular vibrou. Simon.
Quer mesmo o fim do contrato? Venha até minha sala. Vamos resolver isso agora mesmo. De uma vez por todas.
— Ou eu posso conseguir oxigênio ilimitado para você.
Beijei Harry e sai. Não tinha o que discutir. Nós dois estávamos certos.
...
— Zayn! Meu Deus! Ninguém te seguiu até aqui? Como me achou?
— Boa tarde, Louis. Eu tô bem, obrigado por perguntar!
— Caralho... eu não te vejo em Londres há anos! Alguém morreu? Por isso está aqui?
— Não! Mas é bom saber que você continua louco e paranoico. — Ele se sentou ao meu lado na grama. — Vi a foto que divulgaram sua, na Starbucks e aí pensei "conheço meu amigo, ele tá muito na merda".
— Dai você pegou um jatinho e me rastreou hackeando um satélite? — Ri até os dentes começarem a aparecer.
— Uma boa história, mas na verdade eu já estava na cidade.
— E nem entrou em contato!
— Estou fazendo isso agora. Eu sinto muito... — Zayn aponta com a cabeça para o nome Felicity. — Queria ter estado aqui, queria que fosse diferente.
— Você está fazendo isso agora.
— É estranho ter meu melhor amigo só dentro da tela do celular e é estranho ter meia dúzias de palavras que nunca podemos tocar.
— A vida é estranha, Zayn.
— Eu quero que saiba o que realmente aconteceu.
— Eu sei. Você- — Ele me interrompeu bruscamente.
— Por favor, não diz "queria ser um garoto normal de 22 anos"!
— Como eu ia dizendo, você... não saiu. Você foi estrategicamente cortado da banda por alguém sem escrúpulos que queria acabar com a gente, um por um, e que é muito competente quando quer ilustrar ameaças.
Zayn estreitou os olhos e eu tive a impressão que as rugas na sua testa ficariam para sempre ali.
— Como você... quem te contou?
— O Simon nunca usa uma carta só.
— Então...
Esperei Zayn fazer todas as suas anotações mentais sobre cada coisa que fiz e disse que ele sabia que não parecia eu no comando das coisas. E ele foi rápido.
— Sinto muito por você ter sido crucificado como traidor, quando só queria cuidar de cada um de nós.
Zayn me abraçou e disse que fomos todos crucificados em algum momento.
...
Eu estava na larga mesa da cozinha, sozinho. Harry bateu a porta antes de sair dando fim a nossa briga mais recente. Eu pude ouvir o motor do carro roncando faminto. A casa cresce a cada minuto que passa sem ele por perto, e o silêncio sussurra em meu ouvido que talvez ele nunca mais volte.
Tudo o que tenho comigo é um papel rabiscado e uma caneta de tinta preta. Eu não consigo me desligar do furacão em nossas vidas, e Harry não suporta mais isso. Por isso, escrevo uma canção para ele, uma que diga que no final do dia ele é tudo o que eu quero. Escrevo ELE em letras garrafais enquanto posso escolher o gênero.
Desde que tudo começou, muitos nos disseram "não", "vocês estão malucos?". Me lembro de uma vez em que usaram a metáfora "não servimos salada num rodízio", e demorei um tempo para entender que eu e Harry éramos uma tigela de salada, mas eles diziam que nossas fãs queriam caixas e mais caixas de pizza. Quando descobrimos que mesmo negando nosso envolvimento pessoal e amoroso, algumas pessoas percebiam que nós éramos um casal, ficamos maravilhados, foi como ganhar uma partida de futebol sendo carregado pelos gritos da torcida. Aquilo mudou tudo. Haviam pessoas que acreditavam em nós, e nós queríamos poder responder a eles. Nossas primeiras ideias foram absurdas de românticas e de radicais, tatuagens complementares, indiretas no twitter e em algum momento, até ursos cheios de referências gays nós criamos. Minha preferida: letras de música cheias de significado.
Naquele dia, sem saber o que dizer, fiz uma letra de música assim para Harry.
Quando ouço o ruído no trinco da porta, meu coração dispara. Canto o refrão para Harry. "At the end of the day you're the one that I want at the end of the day.". E como se a cena fosse ensaiada, ele se aproxima de mim e eu me levanto até estar na pontinha dos pés e começar a guiar Harry, fazendo de nossa cozinha o único salão de dança onde, Harry tropeça e gargalha, mas eu o aparo e o beijo, e tudo fica bem.
Dois anos mais tarde:
Dessa vez sou eu quem chego na nossa larga cozinha e Harry me pede para fechar os olhos porque ele tem uma surpresa. Ele está nervoso e embola as palavras, mas eu mal consigo achar fofo, porque também estou nervoso pelo que vou dizer.
A coisa toda acontece mais rápido e simples do que parece possível.
Eu abro os olhos que estão ardendo pela pressão que faço para manter as lágrimas quietinhas ali dentro, como foi combinado. Harry saca um pacotinho tão pequeno entre as mãos, que mesmo de olhos abertos não entendo do que se trata.
— Eu quero plantar sementes com você.
O pacotinho era um simples plástico cheio de sementinhas de girassol, eu sei disso porque Harry desenhou um girassol à mão bem no canto do papel que acompanha o saquinho, mas o papel é de uma clínica de fertilização humana.
Harry quer um filho. E eu também quero. Mas não se pode fazer um pacto com o diabo e esquecer as consequências, um dia ele volta. Você tem que pagar.
— Desculpe. Eu me atrasei porquê... eu pedi o nosso divórcio.
Pronto. Estava feito. Vi Harry cair no mesmo chão que dançamos.
...
— Simon te ameaçou?
— "Se deixar o Harry livre, eu também o deixo livre".
— Porra... por isso ele tem conseguido mudança de contrato, tour...
— Calça de cintura alta, batom, esmalte. Tudo que ele sempre quis.
— Não tudo... — Zayn me encara com o lábio torcido.
— Não tem uma música dele que não conte uma história que está aqui... — Aponto o indicador pra minha cabeça e depois pro coração. — Ou aqui.
— Você tem feito a mesma coisa. Deu pra perceber. Todos perceberam.
— Era um jeito de dizer o que não podíamos falar. Harry dizia que quem nos amasse como somos, teria o suficiente para entender as mensagens nas músicas. Então, entre o tempo e a distância, começamos a escrever sobre nós, para nós.
— E a foto na Starbucks?
— Quando lancei Too Young, eu estava pedindo perdão, mas não só isso.
— Tava pedindo pra ele voltar?
— Sim. Tentei até marcar um reencontro. "Faz dois anos que não te vejo", "Agora finalmente podemos conversar", "Antes que eu deixe o momento escapar".
— Acha que ele entendeu?
— Ele lançou Sunflower hoje...
— Não era assim que ele te chamava?
— Sim. E assim como Too Young, são nomes de música do Post Malone. Fala sobre o dia em que tudo acabou. Sobre dancehall que era o que mais ouviamos na nossa última viagem, na Jamaica. Sobre sentir saudade e sobre querer se beijar na mesa da cozinha... hoje à noite. E hoje fazem exatos dois anos que estivemos juntos. — Como quem acorda de um transe, encaro Zayn com a expressão menos tensa agora. — Acha que eu to maluco, né? É só uma música sobre uma flor, não é?
Zayn tira o celular do bolso e digita alguma coisa. Rapidamente, ele sorri e me mostra a tela do celular, que está logado no twitter, onde ele pesquisou as palavras chave "too young" e "sunflower". Vejo os primeiros tweets da tela.
"OMG SUNFLOWER VOL.6 É COM CERTEZA PARA O LOUIS"
"louis e harry conversando em TY e Sunflower. somos uma piada p vcs?"
"FODA-SE. MEU LARRY SE AMA E SÓ ISSO IMPORTA"
...
Agora mesmo
Zayn me despeja em Princess Park. Ele literalmente me manda sumir de dentro do carro. Nem me dou ao trabalho de olhar para trás. Vou até o portão.
O silêncio nunca mais foi embora dessa casa. Por isso coloco Sunflower para tocar no alto falante do celular, cato todas as minhas lembranças pelo caminho. Quando chego até a cozinha, a mesa larga continua vazia.
Começo a chorar. Larry não está vivo. Está acabado. Harry não vem.
Me debruço na mesa e vejo caído no chão uma sementinha de girassol. Com certeza caiu do plástico quando Harry o amassou e foi embora da minha vida.
Pego a sementinha e meu celular vibra no mesmo momento.
Zayn me enviou um link de um vídeo.
Quando abro vejo as capas de Walls e Fine Line juntas, as frases se revezam e quando escuto me desespero porque sei que isso é o mais perto que vou chegar dele.
Está escuro quando minhas lágrimas secam.
Abro a porta, como há anos fiz com a portinha do banheiro do XFactor e de novo, Harry está do outro lado. Dessa vez ele não se assusta. Ele caminha até mim.
— Desculpe. Eu me atrasei porquê... pedi pra anularem nosso divórcio.
— Sun...
Devolvo a semente de girassol para as mãos de Harry e ele me beija.
Nós dois dizemos sim.
...
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