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Vim, Vi e Sobrevivi

31 de dezembro de 2020 em São Paulo

O despertador havia me acordado às seis e quinze, porém mantive meu corpo na cama até que o sol começasse a invadir a janela de meu quarto, que devido ao verão, estava aberta. Levantar era uma necessidade, mesmo que indesejada. O fiz insatisfeita, desejando que aquele dia passasse o mais rápido possível, mas os meus vizinhos não pareciam tão negativos quanto a esse dia, uma vez que conversavam alto e ouviam o álbum do Nando Reis com Ana Vitória no Spotify — pude reconhecer graças aos anúncios.

Meus planos para esse dia se resumiam em: comer a lasanha da Sadia que estava fazendo aniversário em meu freezer e ir dormir pouco após o Luan Santana cantar no especial da Globo. Nada de especial. Ah, teria de processar uma boa desculpa para que André compreendesse que eu não iria em sua casa hoje. Nossa última briga seria uma boa justificativa, mas iria apenas criar mais um problema que não queria ter de lidar no dia de hoje, por isso, a aglomeração seria a minha justificativa.

Caminhando pela cozinha ouvi o miado fino de Klein, o gato amarelo que ganhei assim que me mudei para São Paulo, "É bom que você não fica sozinha... E ganha responsabilidade, gatos dão trabalho...", foi o que minha avó me disse quando me entregou o gato dois dias antes de retornar à Fortaleza. Eu não queria um gato. Na verdade, eu não queria nada que me desse responsabilidade se não, eu mesma — há dias em que gostaria de não ser responsável nem por mim mesma —, mas como minha família tem medo de que eu engravide, acreditaram que me atribuindo responsabilidades, eu a evitaria de todas as formas possíveis.

As lembranças da minha aprovação no Instituto Federal eram deliciosas. Tão gostosas, e me causavam um sorriso tão grande, que evitava lembrar sempre por receio de corrompê-las... Minha mãe havia escrito "IFSP" na minha testa e "BIO" nas minhas bochechas, eu havia dado risada enquanto sua mão trêmula marcava minha pele negra, mas era tanta emoção, e lágrimas que nada atrapalhou aquele momento. Minha avó fez um post no Facebook cheio de emojis, estava muito orgulhosa, afinal, iria seguir sua profissão: professora. Minha mãe queria que eu fizesse Direito, coisa de oficial de justiça, mas algo dentro de mim fazia que meus olhos se abrissem mais e meu cérebro focasse exclusivamente nas provas e explicações da minha avó. Biologia era um imã para mim, e a educação pública era uma grande paixão que minha avó havia incutido em mim — além da costura.

Mas minha avó nunca me veria de beca e segurando meu diploma da faculdade. Minha avó nunca mais me veria, e a última vez em que a vi, se é possível considerar, fora em um caixão indo de encontro com o solo. Uma cerimônia de vinte minutos... Mais uma vítima, mesmo respeitando todo o distanciamento social e tudo estipulado pelos Órgãos de Saúde, da pandemia. Minha mãe também teve, assim como eu, mas apenas minha avó foi para o hospital.

O desespero era tamanho que fiz promessa, rezei todas as noites — incluindo terços e todo tipo de oração para Santos que encontrei na Internet —, acendi velas, mas de nada fora útil, minha mãe me ligou às uma da manhã em uma terça, e no momento em que o celular tocou, eu soube o que havia acontecido.

— Merda de ano. — Resmunguei enquanto prendia o cabelo afinal, o calor de São Paulo não dá brechas. Às lágrimas, minhas fiéis companheiras de quarentena, já formava círculos disformes na camiseta rosa fúcsia do meu pijama de gato. André devia ter sido meu maior companheiro, mas, infelizmente, estou crendo que nosso relacionamento será mais uma vítima da pandemia.

Alimentei Klein enquanto pensava no que comer de café, na geladeira não havia nada de interessante, como sempre. Estava com vontade de cuscuz paulista — a mãe de André sempre faz quando vou visitá-lo —, mas tive de me render a pão de cachorro quente na frigideira com margarina. Pouco depois de abrir os dois quartos da casa e todas as portas e janelas, no intuito que o ar circulasse, me sentei na pequena área coberta de chão de caco, estava em paz, sentido o sol das dez ir de encontro a minha melanina. Até que André me ligou.

"Oi amor."

"Oi, dormiu bem?" Disse já de pé, caminhar enquanto falava ao telefone era irracionalmente necessário.

"Sim, acabei de acordar. Fiquei jogando com os meninos até tarde." Rimos.

"Como sempre, né, André."

" de férias até o ano que vem, gata."

"Que piada de tio..." Sorri. Não sabia ao certo se era o efeito que ele causava em mim, ou pela piada estúpida.

"Você vem hoje? Minha mãe até comprou carne de porco pra te agradar, capaz de ficar seca, mas sabe comê... Ela é doida por você."

"Ah, é que... Sabe..."

"Não quer vir, Júlia, esse é o papo?"

"Vai me deixar falar?!"

"Se sem palavras é porque se esquivando."

"Quantas pessoas vão?"

" caçando justificativa mesmo, hein, maluco."

"Que caçando justificativa o quê, não quero pegar Covid de novo."

"Só a gente. Eu, você, minha mãe, meu pai e os meus irmãos."

"E a namorada do Pedro?"

"Vish, veio no maior papinho, que nem você... Aí porque vai aglomerar e não sei o que..." Forçou uma voz aguda para ficar igual à Flávia. "Chata pra caralho, sabe como ela é"

"Deixa ela..."

"A mina é chata, você mesma já disse isso."

"Já falei que não gosto quando você fala mal dela pra mim..."

"Júlia, sem enrolação, papo reto aqui. vem ou não?"

"Acho melhor não..."

" bom, Júlia, tranquilo. Depois a gente se fala." Resmungou com mágoa e desligou.

Saco. André sempre fica bravo quando não faço o que quero. Acho que só está aprendendo agora que o mundo não é movido em prol de si. Admito que tive que resistir ao desejo de comer carne de porco e não mandar mensagem para ele, mas a ideia de me reunir me desagradava; realmente, ele estava certo, não era sobre o número de pessoas, visto que frequento a sua casa, no mínimo, uma vez na semana, mas era outra coisa. Algo que eu não sei descrever, algo que esse ano trouxe e permitiu que se instalasse, irritantemente, dentro de mim.

Meus pensamentos de remorso foram dispersados pelas mensagens de minhas colegas e da minha família no WhatsApp que faziam o círculo vermelho ao lado do ícone aumentar numericamente. Ri com algumas mensagens e passei a tarde trocando palavras despidas de seriedade, era bom abstrair o desconhecido, ainda que soubesse que teria de lidar com ele.

Fui desperta da minha realidade paralela quando minha barriga se mexeu. Novamente, me arrependi de não ter ido à casa de André, seu pai, com certeza, passou em alguma padaria e comprou mais coisas do que o necessário, quase fiquei com remorso e mágoa, mas como a nossa quase briga não havia vingado, e ele estava teclando comigo o dia inteiro, o remorso logo deu espaço ao meu subconsciente me chamando de preguiçosa.

Não havia nada de interessante na cozinha, mas isso não me impediu de ficar alguns minutos encostada na pia pensado no que comeria. Água e gelo eram as opções que fez ou outra retornavam a minha mente, "Pra ser magra assim, deve beber água e chupar gelo..." me lembrei da minha mãe comentando sempre que a Vitória Strada era protagonista de uma novela. Mas eu não queria ser magra como ela, por isso substitui meu pijama por um vestido vermelho florido e decidi ir em busca de qualquer processado na rua de casa.

Desci as escadas sorrindo, mesmo que ninguém fosse perceber através da máscara amarela. Apesar de não ser recomendado, minhas mãos deslizavam pelo corrimão de alvenaria e o sol que atravessa o prédio por meio do vidro na porta da frente me acalentavam. Estava um dia lindo, o verão em São Paulo era diferente de Fortaleza, mas ainda sim o contraste do sol com o cimento da rua me fascinava... E, segundo André, fora isso que fizera com que ele se apaixonasse por mim, a forma como eu via as coisas e meus olhos brilhavam. "Não consigo entender como ninguém nunca se apaixonou por você, porque eu estou...", confessou quando fomos no Ibirapuera no dia vinte e três de maio do ano passado.

O pequeno barulho entre a aliança em minha mão direita e as moedas de cinco centavos, porque, obviamente, haviam me devolvido cinquenta centavos na menor moeda possível, me causaram o sorriso e me dispersaram, dessa forma, não conferi o troco do salgadinho que havia comprado.

Subi novamente as escadas escorregando a mão pelo corrimão, mas a primeira coisa que fiz ao chegar em casa foi lavar as mãos e higienizar, além da embalagem do Fofura, a maçaneta. O sol estava começando a se despedir do último dia do ano, mas o ar abafado ainda preenchia todo o apartamento. Fui a cozinha e enquanto o filtro enchia meu copo d'água, entrei no Youtube e coloquei a primeira indicação que me pareceu coerente, estavam depois de alguns vídeos sobre jogos online e informações toscas, porque minha mãe e meu namorado deixam as coisas logadas no meu e-mail, e em poucos segundos a voz de Henrique e Juliano preencheu a sala.

Me atirei no sofá, ignorando o celular, o deixando com a tela acessa enquanto comia as coisas sentada de uma forma que, com certeza, me daria dores na coluna. Liguei a TV quando o cheiro de fritura invadiu a minha casa, nada como morar em apartamento...

Laços de Família, com a idiota da Camila, foi a imagem que se formou no aparelho. Qual a obsessão da Globo com as novelas do Manuel Carlos? Fala sério, um enredo pior que o outro e todas as protagonistas se chamam Helena, o que para mim, é falta de criatividade... Outro ponto positivo em passar as tardes na casa de André, já que estudamos de manhã, era reclamar de todas as novelas que estão passando no momento com a sua mãe. Filha que rouba namorado da mãe, burra que deixa o filho com um psicopata obsessivo e uma maluca obsessiva pelo marido traficante... Se manter em isolamento já é uma tarefa difícil, mas a Globo fez questão de torná-la quase impossível com a seleção de novelas.

Quando o ato de levar a mão cheia de salgadinho a boca se tornou um quase martírio, deixei de lado o resto e escorreguei o corpo pelo sofá, meus olhos pesavam e um cochilo não me prejudicaria em nada, visto que eu não tinha plano algum para o dia de hoje ou amanhã. Quando me ajeitei no sofá, porque dormir com as pernas espalhadas iria me render uma dor desnecessária, senti, provavelmente pelo excesso de cansaço e saudades da minha família, o carinho que minha avó sempre fazia ao chegar do trabalho, e eu estava dormindo no sofá da sala após o cursinho. Não sei como, porque essa época me esgotou, mas eu sempre a ouvia pendurar a chave ao lado da porta, e depois minha mãe chegar; meu corpo apenas se permitia ser abraçado pelo cansaço e desfrutar do mundo dos sonhos ao saber que elas estavam ali comigo.

Todavia, os dedos da minha avó não eram reais e a conversa delas nunca foi ouvida. O único som que invadia meus tímpanos era o da novela, que fora aos poucos abafado e minimizado pelo pesar dos olhos.

Abri os olhos já ouvindo alguma música. O show da virada já havia começado e eu tinha dormido mais que o esperado. Ok, Júlia, não é só porque ninguém irá te ver que não precisa se arrumar. Eu estava certa, como sempre digo, e depois de algum tempo, estava com um short branco e uma blusa curta vermelha, havaianas ornavam as vestimentas, e o meu segundo day after permitiu que minha autoestima reverberasse e o divertidamente responsável por ela capturar algumas fotos e publicá-las no Instagram, até porque ninguém sabia ou saberia como o dia estava se arrastando.

Finalmente Luan Santana era o cantor responsável e eu estava sentindo o vento, novamente. Me apoiei no muro da varanda, apoiando o celular ao meu lado, mesmo com receio dele cair na casa vizinha. Apesar da minha única expectativa para esse dia ter sido construída em cima de ouvir um dos cantores que sempre acompanhei, os vizinhos, que estavam fazendo churrasco, falavam alto e me forçavam a negar todo o meu redor. Estavam me obrigando a olhar para dentro e compreender tudo que havia acontecido naquele ano.

De início, não foi a reflexão mais agradável e desejada, mas a noite escura e os prédios da Paulicéia desvairada eram um convite irrecusável aos pensamentos.

Sorri ao lembrar do início do ano. Fortaleza estava linda, e todas usávamos branco, pulamos oito ondas, porque segundo a minha avó, uma a mais dedicada apenas a agradecer às bençãos do ano passado. O primeiro de janeiro foi fenomenal. Janeiro voou junto com o verão, efêmero como as chuvas, mas ardente como o sol, a marca da felicidade estava em mim assim como a do biquíni.

Em fevereiro voltei a São Paulo, admito que senti falta do sufoco e complexidade da cidade grande. Adorava ir às grandes avenidas e observar a movimentação dos carros, tantas pessoas, tantas coisas e apenas uma constância: a necessidade de viver, não podemos parar. A terra da garoa não para — na verdade para com qualquer chuva, e nem garoa com tanta frequência, mas eu não iria contrariar paulistanos que acreditam, veementemente, não terem sotaque. O final do mês me embalou com a rotina da faculdade e a presença de André como uma constância risonha na minha vida. Vídeo chamadas voltaram em cena, e minha avó estava se adaptando a tecnologia. Fevereiro teve ainda uma das minhas grandes paixões: carnaval, ah, as cores, o sol, as músicas, a alegria, o estar junto, a magia da vida em sorrir.

Março. O início do pesadelo. A palavra Corona vírus começou a se integrar ao nosso vocábulo e o primeiro fechamento foi decretado pelo governador. Sem aulas, com medo. Um mundo de descobertas. Adentramos num admirável mundo novo em que não havia aprendizado e dogmas hipnopédicos, apenas as falácias que qualquer conhecimento científico derrubaria.

Os outros nove meses... Nove meses que corresponderam a um lapso no espaço tempo. Se nos fora tirada a vida? Ao contrário, fomos abençoadas com ela, mas não sei se podemos dizer que Deus nos presenteou com algo nesses meses.

Há uma dicotomia que me persegue: ódio e gratidão. Devo ficar satisfeita por não ter morrido...? Todavia, enterrei a minha avó, logo, estou dentre as famílias que integram as estatísticas que os jornais exibem todos os dias... Não sei essa resposta e essa dúvida se apossa de mim de uma forma que nunca acreditei ser possível, essa dúvida e ausência de resposta fazem com que eu me desconecte de mim mesma e coloque tudo que acredito como conhecimento parcial.

Queria que a reflexão fosse tão rápida quanto uma tormenta e as chuvas de verão, mas o clima dentro de mim estava indeciso e parecia querer se perdurar como as secas. Havia algo seco dentro de mim, incapaz de florescer novamente, visto que a semente, Dona Rosana, não estaria mais me vendo de longe. "Filha, quando eu morrer — disse olhando pela porta da cozinha numa noite estrelada — vou virar uma estrela para cuidar de você." "Mas isso ainda vai demorar, vó, e muito..."; mas não demorou, a vida parecia um borrão sem ela e todas as memórias se bagunçavam e espalhavam, uma grande parte de mim havia sido arrancada violentamente e não havia peça de reposição, tinha de aceitar ser um item incompleto enquanto me arrastava pelo chão da casa sempre que a tristeza esmurrava a porta do meu coração, entrava e se instalava como uma inquilina inconveniente.

Não havia muito a ser dito sobre os meses em que vesti máscara, carreguei álcool em gel e evitei aglomerações, as palavras me deixavam, apenas os sentimentos dúbios e o franzir das sobrancelhas se apresentavam. Ainda estou aprendendo a processar tudo que ocorreu, isso se um dia isso for possível. Minha frequência cardíaca se acelerou e ficou irregular quando tudo que reprimi tocou-me da forma mais crua, me tornando impassível; era a hora de analisar tudo que escondi embaixo do meu tapete emocional crendo que, dessa forma, seguiria com maior facilidade e menos problemas — ledo engano, pretender que algo não existe, não o anula e desintegra, apenas o fortifica e exponencializa sua intensidade.

Um ano que perdi. Era o que reverberava na minha cabeça, as vogais soando com maior peso do que deviam ter, as memórias me chicoteando, pois eu as olho com saudades e com receio de ter aproveitado pouco o tempo em que tudo parecia ser mais colorido. Elas já estavam ali presentes, encharcando minha camiseta, novamente, ignorando todas as regras de educação pois se acomodaram sem que eu permitisse. Flashes de diversos momentos foram reproduzidos no automático, sem que eu escolhesse vê-los, ou quais seriam. Esse ano provou não ter a mínima educação e provocar em nós as reações mais adversas e improváveis; não me lembro de ter ciência desse efeito colateral ao brindar sua chegada.

A voz masculina cantando cessa, e com isso, sou desperta do meu universo particular e paralelo. Giro Jornalismo, cinco minutos para o novo ano. Cinco minutos para que, por algum motivo acreditamos que teremos novas chances e tudo será resetado, como se pudéssemos deixar para trás tudo que nos constituiu e integrou por um ano. Ri amargurada, a risada se arrastou mais do que eu gostaria, meus lábios volumosos se contorciam e eu não conseguia distinguir o que sentia e o que era o fato gerador de tantos sentimentos paradoxais.

Respirei fundo na tentativa de raciocinar nos últimos minutos do ano. Veja bem, se ano passado, em que passei a virada sorrindo e satisfeita fora dessa forma, imagine se eu passar a virada chorando... A última coisa que desejo nesse momento é dar sorte para o azar, como diria minha tia.

Desviei o olhar para a tela que acendia repetidas vezes com mensagens de André, quando meus dedos tocaram a lateral do celular para que eu pudesse desbloqueá-lo com a digital na parte traseira, o som alto da música do vizinho de cima emudeceu todos meus músculos, me congelando como se algo estivesse sendo reposicionado em mim.

"Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado: Deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado
Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro"

Meus olhos se tornam órbitas em que meu universo colidiu com a letra da música como se a pauta fosse direcionada a mim. Uma inspiração longa se tornou meu novo ritmo, fazendo com que meus pulmões se deliciassem com uma oxigenação melhor. A música logo encontrou seu ritmo e eu sussurrava a letra involuntariamente.

Meus olhos se fecharam e eu forcei minhas pálpebras. Um sorriso inundou minha face, ainda havia esperança.

Irracionalmente e ilogicamente, ou como nomeia o álbum dessa música, apenas uma alucinação podia ter transmutado uma mágoa em revolta em esperança. Mas é aí que reside a graça humana, na possibilidade de modificação de como eventos são vistos, para que seu reflexo seja positivo e novas sensações sejam extraídas deles. O som alto de Belchior apenas fazia com que meu coração encontrasse a caixa torácica, lembrando-me que estou viva. Entrelacei meus dedos, confortando-me sempre fiz.

A temperatura gelada do colar de prata, cujo pingente era de coração e carregava a foto de minha avó, também me lembrou que estava viva. As luzes da cidade de pouco mais de doze milhões de habitantes cravaram a vida como uma memória perpétua. O caco contra meus membros, localizados nas extremidades, me lembraram que o sangue ainda circulava em minhas veias, independentemente das dores que marcaram minha alma num ano tão dogmático, mesmo sendo composto por incógnitas insolucionáveis, como esse. A brisa que apesar de remeter a gelidez, era constituída de ar quente, lembrava-me que ainda havia cor em meu rosto.

Sorri, inicialmente sem exibir os dentes, mas esse cresceu e fez com que uma gargalhada florescesse junto a esperança de dias melhores, que com certeza viriam. Eu estava viva, por isso, era inexorável a crença de algo seria melhor e que um futuro, que estava a menos de um minuto de girar todos os relógios com um último dígito diferente na data. Uma substância preencheu meu corpo à medida que senti meu sangue se tornar mais quente. Um calor engoliu e imobilizou todo o medo, receio, angústia e ira que eu estava sentindo para com os anos quase gemelares.

Os vizinhos iniciaram a contagem enquanto eu observava o céu atenta, sorrindo, crendo em dias melhores, com a esperança sendo semelhante ao DNA de cada célula minha, visto que apenas conseguia sintetizá-la.

A contagem regressiva iniciada no dez era pano de fundo para a voz forte, que imperava em minha mente e que havia produzido uma onda fluída de esperança, fé e felicidade repentina.

"Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado: Deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado
Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro
Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro"

"Tenho sangrado demais" começou junto com a contagem regressiva deles, e assim que os poucos fogos invadiram o céu da grande cidade, as lágrimas invadiram-me como a rebenta de uma represa, agora, de felicidade, de esperança de dias melhores, de uma crença que nada abalaria o que eu acreditava: dias melhores, que fora meu único, e fervoroso, pedido à Deus e ao universo.

"Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro" foi a primeira frase que disse em dois mil e vinte um. A proferindo como uma sentença que não cabia recurso, minha felicidade era trânsito em julgado e a minha esperança, cláusula pétrea de minha constituição.

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