Reencontro
revisado em dezembro/2018
O DIA TINHA TUDO PARA ser só mais um na minha vida.
Até ele reaparecer.
Eu o avistei pelo vidro da lanchonete, enquanto servia o jantar de uma mãe e seus dois filhos pequenos. Sua moto estava estacionada do outro lado da rua e ele estava recostado nela casualmente, os braços cruzados no peito como um desses modelos de revista. Vestia jeans rasgado, camiseta branca e jaqueta de couro. O cabelo castanho desgrenhado pelo vento só o deixava ainda mais adorável.
Devo ter paralisado por alguns segundos pois, quando voltei a mim, a senhora a quem eu servia me olhava preocupada. Forcei um sorriso amarelo para ela, deixei na mesa o último prato que ainda segurava e voltei correndo para a cozinha, me jogando contra a primeira parede que encontrei, tentando desesperadamente me impedir de desabar.
Ele tinha voltado. Mais uma vez ele tinha voltado para a cidade, e eu sabia o porquê.
Era por mim.
Ele sempre voltava por minha causa.
— Melissa? – Edd, o cozinheiro, apareceu na minha frente enxugando as mãos num pano de prato – Está se sentindo bem? – ele tinha o mesmo olhar preocupado que a mulher que eu tinha servido segundos antes.
— Está sim, Edd. – garanti, controlando minha respiração – Foi só um mal-estar, mas já passou.
Sorri para ele, tentando o convencer de que não havia nada errado ao mesmo tempo que passava a mão na minha saia para afastar vincos imaginários, um claro gesto de nervosismo que sempre havia me acompanhado.
— Você está pálida! É melhor se sentar. – meu colega insistiu, puxando uma das banquetas na minha direção, mas eu a recusei educadamente.
— Estou bem, de verdade. Preciso voltar ao trabalho ou vou tomar bronca do Sr. Brown.
Edd me olhou como se fosse protestar, mas ficou em silêncio. Ambos sabíamos o quão incompreensivo o nosso gerente podia ser.
— Se você precisar de qualquer coisa, é só me falar. Tenho comprimidos para dor na mochila. – disse, e voltou para seus próprios afazeres.
Edd era um cara legal, sempre disposto a ajudar, mas não havia nada que ele pudesse fazer naquele caso. Eu precisava enfrentar a situação sozinha.
Respirei fundo, alisei a minissaia do uniforme de garçonete uma última vez e voltei para o salão. Passei pelo balcão e troquei algumas palavras com Ashley, a outra garçonete, e ela me disse que a mesa 4 tinha pedido mais café. Com um aceno de cabeça, peguei a garrafa térmica e comecei a tremer. Para chegar até onde a mesa 4 estava, precisaria passar na frente de todas as janelas que davam para a rua.
"Melissa, você está agindo como uma idiota!", me recriminei antes de começar meu caminho pelo salão.
Não havia muitas ruas no centro onde ele pudesse estacionar. Não havia sequer uma grande rodovia estadual passando pelas redondezas. Danbury, Connecticut, era um lugar no meio do nada e tinha sido justamente por isso que ele tinha se mudado para Nova Iorque anos atrás. E, se ele tinha se dado o trabalho de vir até aqui, naquela esquina quase esquecida da cidade onde havíamos crescido e ele tanto odiava, era porque sabia exatamente onde me encontrar.
Mantive meus passos firmes e não olhei para o lado, mas podia sentir os olhos dele em mim. Pareceu demorar éons para que eu conseguisse chegar até a mesa 4. Quando finalmente servi o café para os dois homens que conversavam animadamente sobre o jogo de baseball que passava na tevê, soube que não havia mais como protelar.
Fechei os olhos e segurei a respiração. Levantei o rosto, olhei para frente e lá estava ele! Olhos azuis brilhando como estrelas, o rosto queimado de sol. Seu semblante sério abriu-se em um raro sorriso sincero quando me viu, e então ele piscou para mim.
Me peguei gargalhando nervosamente, e os dois homens que eu servia me olharam desconfiados, achando que era deles que eu ria. No fim do corredor, o Sr. Brown me observava. Eu precisava me controlar.
Pedi desculpa aos dois homens e, antes de me afastar, olhei uma última vez para ele do outro lado da rua e dei de ombros. Ele balançou a cabeça, lançou-me um sorriso torto e trocou o peso do corpo do pé direito para o esquerdo. Dei as costas para o vidro e voltei para o balcão, minha cabeça girando em todas as direções ao mesmo tempo.
Ainda estava tudo ali.
Depois de todo esse tempo, ele ainda me fazia sentir como se eu estivesse em queda livre.
As horas seguintes demoraram a passar. Ele permaneceu sentado na moto, parecendo não se importar em ter que esperar por mim e eu segui tropeçando nos meus próprios pés enquanto lutava para continuar meu trabalho e sentia seu olhar acompanhando cada pequeno movimento meu. Vez ou outra, ouvia clientes comentarem sobre o cara sexy da moto do outro lado da rua. Ah, se elas apenas soubessem...
Quando finalmente deu meia noite e o último freguês saiu, o Sr. Brown declarou o turno encerrado e nós fechamos a lanchonete. Geralmente, Ashley me dava carona até em casa e eu a ajudava na gasolina no final do mês, mas não hoje. Nós duas nos despedimos ainda no pequeno banheiro de funcionários quando decidi ficar por ali mais uns minutos sozinha. Precisava pensar. De uma forma ou de outra, aquilo não ia acabar bem. Nunca acabava.
O Sr. Brown fazia a contabilidade do dia no balcão quando me senti preparada para deixar a segurança do vestiário dos funcionários e uma brisa gelada de primavera me envolveu no instante em que botei o pé na calçada, mas eu não estava com frio. O olhar dele em mim era tão intenso quanto o sol do meio dia. Queimava-me. Derretia-me.
Antes mesmo de trocarmos qualquer palavra, antes mesmo que eu me aproximasse o suficiente, ele se adiantou e me puxou para ele. Envolveu minha cintura com um dos braços fortes e, com a mão livre, pegou a minha e a levou aos lábios, num gesto cavalheiresco mais apropriado para um filme antigo.
— Oi. – ronronou, roçando os lábios de leve na minha pele.
Ouvir aquela voz rouca depois de tanto tempo era algo indescritível. Uma descarga de adrenalina percorreu meu corpo e eu estremeci. Ele percebeu e me apertou um pouco mais contra o peito musculoso. Quando olhei para cima, para seus olhos, ele sorria satisfeito com o efeito que tinha causado.
— Você sumiu. – falei sem pensar. O sorriso dele morreu e ele me soltou, mas não se afastou.
— Você me mandou sumir, lembra? – respondeu sério.
Sim, me lembrava.
E tinha sido por bons motivos.
Mas não diria em voz alta o que ele queria ouvir.
— Desde quando você faz algo que não seja o que você quer? – provoquei, e o seu característico sorriso sarcástico tomou conta de seu rosto.
— Não tente jogar a culpa pra cima de mim. – ele rebateu, me envolvendo novamente nos braços – A estrada de Nova Iorque para cá tem a mesma distância que a daqui para Nova Iorque.
— Você está sugerindo que eu deveria ter te visitado? – perguntei retoricamente, gargalhando diante da ideia absurda, jogando a cabeça para trás e deixando meu pescoço exposto no processo. Ele não perdeu tempo. Encostou os lábios úmidos e suaves na minha clavícula e beijou o local, deixando um rastro de fogo por onde quer que tocasse, o que me fez gemer.
Não sei de onde tirei forças para o afastar, mas o fiz. Eu o empurrei com força e dei dois passos para trás. Quando olhei novamente para ele, vi apenas mágoa.
— Já cometemos esse erro quatro vezes. – eu o lembrei, me obrigando a não sentir comovida por sua expressão – Não tem porque existir uma quinta vez. E você não tem o direito de vir aqui sempre que quer pra bagunçar minha vida e depois ir embora como se nada tivesse acontecido.
A risada que escapou de sua boca foi fria, quase cínica. Ele colocou as mãos na cintura e olhou para o céu estrelado antes de virar-se novamente para mim.
— Eu continuo voltando porque sinto saudades de você, Mel. – esclareceu, sério – E eu sei que você também sente saudades de mim. Mas eu ir sempre embora, isso é obra sua! – afirmou, cheio de convicção, apontando o indicador na minha direção.
— Minha?! – levei minhas duas mãos ao peito de forma dramática. Era a minha vez de ficar indignada. – Foi você quem decidiu que esse lugar era pequeno demais! Foi você quem resolveu que largar tudo era o melhor para nós dois sem sequer me perguntar o que eu queria para a minha vida!
Toda a raiva que nem sabia que ainda existia dentro de mim aflorou e tive vontade de o estapear. Cada noite que passei em claro. Cada momento em que vivi tendo esperanças de que ele voltasse. Cada maldita vez que chorei de saudades. Tudo! Tudo pesava em mim e tive certeza que estava prestes a desabar uma segunda vez, mas me mantive firme. Não iria chorar. Não! Eu não mostraria a ele o quanto me importava!
Por alguns instantes, nós ficamos ali, um medindo o olhar do outro em meio à rua deserta, nenhum capaz de dar o braço a torcer. Sempre que me perguntavam a razão de nós dois não termos dado certo, eu respondia que era por causa da distância, mas não era verdade. O motivo real estava ali para quem quisesse ver. Orgulho.
— Não vim até aqui para brigar com você. – ele disse por fim, num tom conciliador. Deu um passo na minha direção e estendeu a mão como se me convidasse a estar novamente em seus braços.
Eu deveria ter ido com Ashley.
Melhor, eu deveria tê-lo mandado embora e depois ter ido para casa.
— Sei que não. – admiti, aceitando sua mão e deixando que ele me envolvesse num abraço. Passei meus braços pela cintura dele e senti quando ele relaxou ao perceber que eu não iria resistir ao que sentíamos. Pelo menos não naquela noite.
— Deixa eu te levar para casa. – pediu, e eu assenti. Ele sorriu, pegou minha mão e me guiou até sua moto.
Nós conversamos um pouco sobre as novidades da cidade no caminho até meu minúsculo apartamento na avenida principal. Não que fossem muitas, mas aquele era um assunto seguro no meio do campo minado que era o nosso relacionamento. Por várias vezes, eu o peguei olhando para mim pelo retrovisor, os olhos brilhando cheios de expectativa. Doía demais em mim, muito mais do que queria admitir, saber que antes daquela noite acabar eu quebraria não só o coração dele, mas também o meu, pela milésima vez.
Eu o observei estacionar a moto quando chegamos ao nosso destino. Já na calçada, ele pegou a chave da minha mão e, como o perfeito cavalheiro que sempre fora, abriu a porta para mim. Era tarde, e eu subi as escadas na frente dele em silêncio para não perturbar os vizinhos. A luz do corredor se acendeu automaticamente bem em frente à minha porta e, quando ele levou a mão até a fechadura para a abrir, vi a marca branca que um anel havia deixado em seu dedo anelar direito brilhando como se fosse revestida de neon.
Aquela marca...
Aquela marca era de uma aliança de noivado.
Me recusei a acreditar que ele pudesse ter mudado tanto ao ponto de vir me procurar estando com alguém, que seria capaz de retirar o anel do dedo achando que daquela forma poderia me enganar. Nem esperei que entrássemos no meu apartamento direito para tirar satisfação.
— Você deixou alguém em Nova Iorque? – perguntei, batendo a porta atrás de nós e o encarando para ter certeza de que não perderia nenhuma mudança em seu rosto, por mais sutil que fosse, que pudesse denunciar se ele estava mentindo para mim. Mas ele apenas abaixou a cabeça e deixou que seus ombros caíssem.
— Eu tinha alguém até semana passada. – confessou, esfregando inconscientemente o lugar onde a aliança ficava, toda sua atenção presa em um ponto qualquer no chão – Mas não deu muito certo.
Engoli em seco. Passado o choque de ciúmes por saber que ele amara outra mulher, percebi que não estava mentindo. Podia dizer só de ver a culpa em seu rosto. Fosse lá o que tivesse acontecido, ele se considerava culpado.
— Foi por isso que você veio? – quis saber, sem ter certeza se queria ouvir a resposta. Ele levantou o rosto para me mirar, o desejo ardendo em cada músculo seu, e me prendeu contra a parede do corredor.
— Vim por que não consigo tirar você da minha cabeça. – disse num desabafo desesperado, a respiração quente e entrecortada queimando cada centímetro que tocava da minha pele.
— Eu também não. – admiti.
Nós nos beijamos, nos perdendo completamente um no outro, a nossa existência se resumindo às mãos dele me despindo e me acariciando em meio aos lençóis amarrotados da minha cama. Horas depois, quando os primeiros indícios de luz do novo dia se mostraram no céu, ele se levantou para beber um copo de água e eu o observei desfilar pela minha cozinha completamente nu.
O trabalho na oficina o tinha deixado mais musculoso e bronzeado. Havia novas tatuagens também, destaque para um M cheio de arabescos e de tamanho considerável que tinha sido desenhado com muito capricho sobre seu peitoral esquerdo.
Não podia me permitir pensar o que aquilo significava, mesmo que no fundo eu já soubesse. Ele estava encostado na bancada da cozinha quando me aproximei, ainda meio insegura, e toquei a minha inicial gravada em sua pele, deixando que a ponta do meu indicador deslizasse pelo contorno elaborado.
— Mel, você só precisa dizer uma palavra. – ele sussurrou, deixando o copo de lado e me abraçando na sequência. O momento que eu mais temera desde que o tinha visto na porta da lanchonete havia chegado.
— Não faz isso. – pedi, sentindo a angústia se espalhar por todo o meu ser.
— Eu preciso. – ele insistiu, a expressão um espelho da minha própria – É por isso que estou aqui.
— Por favor... – implorei, jogando meus braços em volta de seu pescoço e escondendo meu rosto ali. Ele lutou comigo por um instante, segurando minha mãos com delicadeza, puxando-as para baixo, até conseguir nos separar, até que nossos olhares estivessem novamente presos um ao outro.
— Vamos tentar de novo? – pediu, metade de si transbordando de esperança, a outra metade desolada por saber qual seria a minha resposta.
— Você sabe que não vai dar certo. – eu o lembrei, sentindo as lágrimas forçando o meu frágil controle, ameaçando vir à tona – Nós já tentamos de todos as formas possíveis e só conseguimos nos machucar!
— Eu sei... – foi o que ele respondeu. Suspirou fundo uma, duas vezes, a realidade se encaixado dentro de si, tomando o lugar dos planos que ele havia feito para um futuro onde nós dois voltássemos a ficar juntos, e então me soltou. Pegou sua calça jeans no chão e começou a vesti-la, um pouco mais agressivo naquele movimento do que era necessário. – Nós éramos jovens, Mel. Muito jovens. – ele disse, a amargura exposta em cada palavra – Eu mudei. Você mudou. Ambos aprendemos muita coisa desde a última vez. – garantiu, passando a camisa branca pelos ombros e a puxando por sobre o torso – Pode não ser assim para você, mas é pra mim. – ele parou, engolindo em seco antes de continuar – A cada dia que passa eu tenho mais certeza de que é você, Mel. Eu não posso impedir meu coração de te amar.
As últimas palavras saíram como um desabafo desesperado e eu fraquejei, uma enchente de lembranças me invadindo enquanto o observava parado do outro lado do cômodo, me observando também, ansioso para saber o efeito que suas palavras causariam. Mas eu não podia ceder, não quando me lembrava de cada briga, cada vez que havíamos nos machucado, cada vez que quase havíamos nos tornado inimigos. Eu não suportaria viver em um mundo em que ele me odiasse, e foi aquela determinação em nos manter como estávamos que ele viu.
— Sempre irei respeitar sua decisão, sabe disso, não é? – disse triste, me puxando para ele uma última vez e me beijando com paixão. – Só não me peça que nunca mais volte para ver se você mudou de ideia. – sussurrou, os lábios ainda tocando os meus.
— Você não seria você se respeitasse as regras. – provoquei e ele sorriu um de seus maravilhosos e raros sorrisos sinceros. Bufou de leve, tentando voltar a vestir a máscara de sempre, mas não conseguiu. Derrotado, ele encostou a testa na minha por um instante e correu os dedos pelas minhas costas nuas.
— Se cuida. – pediu.
— Você também. – sussurrei, a voz embargada, sufocada.
Ele se afastou, primeiro dois passos, e nossas mãos ainda unidas penderam entre nós. Senti seus dedos escorregando dos meus até que ele deu outro passo para trás e nossa conexão se perdeu. Ele pegou a jaqueta de couro no chão e saiu, batendo a porta atrás de si, sem se deixar olhar nem uma vez para trás. Eu fiquei de pé no meio do apartamento, envolta apenas em um lençol, ouvindo os passos dele descendo as escadas.
Tive vontade de chorar.
Era sempre assim quando ele ia embora.
Foi quando percebi que sempre tinha sido ele. Por mais que eu tentasse negar, eu também o amava. Louca e desesperadamente.
Por mais que desejássemos, não podíamos apagar os erros que havíamos cometido um com o outro no passado. No entanto, em uma coisa ele tinha razão: nós não éramos mais os jovens selvagens e ávidos de antes.
Corri para a janela, a descoberta daquele novo indício pulsando loucamente nas minhas veias junto do medo de que ele já tivesse partido. Empurrei a cortina de qualquer jeito e o alívio me invadiu quando o vi parado ao lado da moto, ainda nem sequer com o capacete na cabeça. Abri a janela e gritei:
— Tommy! – ele olhou para mim, cheio de expectativa, passando a mão nervosa no cabelo, e eu precisei tomar fôlego. Se eu dissesse as palavras, não poderia voltar atrás. – Talvez... só talvez... quando você voltar... eu tenha mudado de ideia.
Ele sorriu, o alívio visível mesmo de onde eu estava no segundo andar, e desviou o olhar para os próprios pés, sem saber como lidar com o que sentia. Vestiu o capacete e se sentou na moto. Só então olhou novamente na minha direção.
— Acho que vamos nos ver em breve. – disse de volta.
Ouvi o ronco do motor quando ele deu a partida. Tommy acelerou duas vezes, acenou para mim e foi embora. Eu fiquei o observando ir diminuindo gradativamente à medida que se afastava, até que desapareceu completamente.
Fechei a janela e voltei para a cama, inundada com o cheiro dele. Um sorriso bobo tomou conta de mim e se perpetuou pelo resto da semana, fazendo com que as pessoas me perguntassem qual era o motivo de tanta felicidade.
Era porque ele não ia demorar a voltar.
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